Autor: Ricardo Campos (*)
Na última sexta-feira (30/6), o parlamento alemão aprovou um projeto de lei para melhorar a aplicação da lei nas redes sociais, a Netzwerkdurchsetzungsgesetz – NetzDG. Especialmente após as eleições americanas e o Brexit ficou claro para a classe política alemã e para a sociedade social a necessidade de se debater os ganhos e riscos da imersão no mundo digital. Entretanto, sem uma análise da correlação entre transformação social acarretada pela internet nos últimos anos e o meio internet em si, não há como compreender a necessidade da lei alemã.
Nos últimos anos, os modernos meios eletrônicos exerceram uma profunda modificação nas relações cotidianas. Esses meios não só mudaram a forma como comunicamos uns com os outros, como também a maneira com a qual nos informamos, como lidamos com o trabalho, como consumimos e como somos diagnosticados etc. A nova realidade digital foi sem dúvida uma das mais importantes forças de transformação do presente modificando igualmente todos os campos da vida como economia, sociedade, política e direito.
Nesse contexto de profunda transformação nas esferas da democracia, política e sociedade moderna é que se situa a proposta de lei encaminhada pelo ministro da Justiça Heiko Maas, que culminou com a aprovação no parlamento alemão na última sexta-feira. A nova lei da internet alemã Netzwerkdurchsetzungsgesetz vem justamente tentar dar um contorno legal para a nova sociedade digital — ou ao menos onde hoje ela se articula — e assenta-se sobre dois pilares fundamentais: um mecanismo de sanção e um sistema de compliance.
Quanto ao mecanismo de sanção, redes sociais, como Facebook, Twitter e Youtube terão de apagar “conteúdo manifestamente criminoso” dentro de 24 horas após a indicação. Em casos menos claros é fornecido um período de sete dias; dada violação pela redes sociais desse mandamento, as penas podem chagar em até 50 milhões de euros.
Um primeiro problema que surge nesse contexto advém do fato de que as empresas da Internet — Facebook, Twitter e Youtube — são, assim, ela próprias obrigadas a decidir sobre a ilegalidade do conteúdo, o que de certa forma fora até então era reservado aos tribunais públicos. Fala-se nesse sentido em privatização da aplicação e execução da lei.
Para os casos limítrofes, por sua vez, onde não há como se identificar claramente se a noticia é falsa, a lei prevê um instituto semelhante ao já consolidado no direito administrativo alemão da “regulação autoregulada” no instituto da proteção mediática de menores (Jugendmedienschutzes). Entretanto a composição desse grêmios para a regulação de casos limítrofes ainda não está completamente regulamentada.
O outro pilar da lei Netzwerkdurchsetzungsgesetz estabelece regras de compliance para as redes sociais. A lei prevê a exigência de relatórios regulares sobre como as redes sociais têm lidado com conteúdos criminais, além de uma gestão interna de reclamações e finalmente a nomeação de um representante legal da empresa no país. Além disso, a lei torna possível às vítimas da violação de direitos da personalidade obter os dados perante as prestadoras de serviços (redes sociais) através de medida judicial.
A transição para o mundo digital por meio das tecnologias de informação e comunicação trouxe consigo enormes desafios para a democracia moderna. Sem dúvida, a comunicação digital viabiliza um ganho de acessibilidade e de interatividade inegáveis para viabilização da democracia moderna. Pontua-se nesta feita, o papel central da Internet na propulsão da liberdade de expressão. A Internet tem se revelado uma ferramenta indispensável ao fenômeno de networking democrática, sobretudo por propiciar simultaneamente um significativo aumento tanto no número de atingidos quanto nas possibilidades de participação destes.
Existe porém uma outra dimensão desafiadora da transformação acarretada pela internet. Ela inaugura uma nova forma de influencia e configuração da esfera pública. Para entender essa nova configuração a que a sociedade moderna se expõe é preciso fazer uma breve tomada histórica acerca do surgimento da esfera pública moderna. Esta somente pode ser compreendida, como bem demonstra John Brewer, na passagem da corte para cidade.
A possibilidade de articulação de assuntos comuns em sociedades privadas, clubes ou cafés onde interesses diversos ligados à arte, literatura, política e economia eram tematizados livremente numa forma cada vez mais impessoal decentraliza a vivencia da „estética da corte“.
Contudo, o crescimento das organizações e sua forma de geração de conhecimento social frente a essa sociedade mais baseada na interação de indivíduos, transformou profundamente a esfera pública. A geração de conhecimento e debates, antes focados na interação dos participantes em clubes e cafés, passa a ser articulado em grandes corporações. Editoriais de jornais, revistas de grande circulação e mais tarde a televisão foram os meios organizacionais através dos quais a transformação da esfera pública centrada em indivíduos e espaços deu lugar a uma esfera pública centrada em organizações.
Essa transformação da “epistemologia social” influenciou tanto o direito como a democracia. No que toca ao direito, por exemplo, a nova estrutura da esfera pública, tornou possível no caso de uma violação de um direito de personalidade, evocar o direito de resposta no meio através do qual a ofensa fora proferida — seja jornal, revista ou televisão. Assim, institutos para dirimir conflitos e proteção da honra baseados na interação como o duelo[3] passam a perder sentido social com a sociedade das organizações.
Já a democracia moderna parece ser mais um fruto das sociedade das organizações — ou ao menos se estabilizou com ela. Pode-se dizer que no pós-guerra o cerne para o sucesso das democracias ocidentais se assentou em dois pilares organizacionais: (a) grandes partidos políticos — com alguns pequenos em entorno — e como eles eram espelhados nas (b) grandes organizações midiáticas. O caso se repete nos USA (Republicanos/democratas), Alemanha (CDU-CSU/SPD) e no Brasil (PSDB/PMDB/PT) e em todos os casos as organizações midiáticas foram centrais na configuração e (des-)estabilidade das democracias.
Esse modelo das grandes organizações passou a sofrer abalos nos últimos 20 anos, mas especialmente nos últimos anos ganhou forma perceptível em todas as esferas do cotidiano com a introdução massificada de um novo meio: a internet. Direito e democracia não ficaram fora disso.
Por um lado, na política da democracia moderna ocorre de forma nítida uma descentralização da estrutura até então voltada para organizações, e com consequência o sistema representativo vive no advento da nova sociedade de redes uma crise fundacional. Por outro, o paradigma do sistema partidário do pós-guerra assentado em grandes partidos tende à fragmentação. No Brasil, o MBL (Movimento Brasil Livre) é o primeiro interessante produto dessa sociedade de redes: não é um partido, mas tem legitimidade e se acopla a partidos de forma aleatória. A sua vinculação à partidos decorre de um requisito meramente formal do sistema eleitoral brasileiro. A necessidade da vinculação por identidade ou proximidade ideológica — como na sociedade das organizações — tornou-se disfuncional até mesmo para os partidos que recebem membros do MBL, visto a popularidade destes.
Tomemos outro exemplo o da ofensa pública. O direito de resposta — que na sociedade das organizações — devido a sua estrutura — cabia o eficaz desagravo frente a organização ofensora, seja no meio do editorial de um jornal ou revista ou a resposta em um programa televisivo. Esse forma eficaz de sanar — ou ao menos remediar — um dano à imagem perde os contornos de eficácia na sociedade de redes. O meio internet descentraliza as organizações e abre a possibilidade da desinformação planejada ou não planejada em redes socais e blogs, da geração de noticias falsas que em poucas horas ganham proporções catastróficas para os ofendidos. Não se tem um direito de resposta eficaz, pois não se pode invocá-lo frente a uma organização.
Também a teoria do Direito enquanto disciplina corre o risco de se tornar um museu de historia das ideias nesse contexto de transformação social. Em Hans Kelsen, por exemplo, a distinção central entre ser/dever-ser como condição de possiblidade científica do direito frente, por exemplo, à sociologia, seria segundo Kelsen algo dado em nossas consciências. O mundo digital coloca justamente em questão a epistemologia da modernidade em seus moldes da filosofia da consciência e mesmo da virada linguística, onde não mais o objeto do conhecimento é a forma dominante da episteme, mas o reconhecimento de padrões. “Big data” é a nova questão do cotidiano de todos nós e não mais a consciência ou a linguagem. Com isso Hans Kelsen e provavelmente a teoria do direito como um todo se tornam peça indispensável e imprescindível no museu da história das ideias.
Para a esfera pública a transformação é ainda maior. Se anteriormente na sociedade das organizações a informação sobre assuntos públicos era gerada em grandes redações, com muitos profissionais especializados, na sociedade de redes a informação “perde a origem”. De fato a internet abriu a possibilidade de profissionais, que não se enquadravam nas organizações, de “gerenciar” seu próprio público sem a necessidade de associação formal à uma organização. Isso foi um ganho para a pluralidade informacional da esfera pública. Mas por outro lado, patologias experimentadas nas últimas eleições pelo globo em que se constatou que a maior parte da informação acessada era informação falsa preocuparam os que tomam o processo democrático como um processo correlato ao acesso à informação (em detrimento ao acesso à desinformação).
Certamente existem bons argumentos em favor da lei e bons argumentos contra a lei em questão. Mas o simples indício que de um país como Alemanha de forma quase consensual aprovou uma lei exigindo das maiores empresas globais uma adequação maior de seus instrumentos para a estabilidade da democracia moderna, esse “simples fato” deveria sensibilizar o debate brasileiro e sua classe política diante das eleições próximas de 2018, evitando talvez o agravamento ou maiores danos à já profunda crise representativa e e dos partidos políticos na atualidade.
Autor: Ricardo Campos é assistente de docência (“Wissenschaftlicher Mitarbeiter”) na cátedra de Teoria do Direito e Direito Público na Goethe Universität Frankfurt am Main (Alemanha) e responsável pelo tradicional seminário semanal de Teoria do Direito da Faculdade de Direito de Frankfurt.