Autores: Allan Duarte Milagres Lopes e Nathalia Alice Milagres de Menezes Ferreira (*)
Se determinada pessoa crê que sofreu uma lesão ou que se encontra na iminência de sofrê-la, poderá resolver-se amigavelmente com o suposto agressor. Havendo, entretanto, resistência deste ou daquele, poderá o interessado provocar a atividade estatal jurisdicional, possuindo razão ou não. Eduardo Couture afirma que é direito do “demandado” o comparecimento perante o tribunal, o que significa dizer que, mesmo valendo-se do Direito de Petição (artigo 5º, XXXV, da CR/88), não haverá um vínculo de exigibilidade entre autor e réu, sujeitando este à vontade daquele. Admite-se, então, com Eduardo Couture, que, até a existência da coisa julgada, impera-se a incerteza.
Ambas as partes, dessa forma, almejam uma resposta decisória do Estado; ao Estado-Judiciário é exigido um pronunciamento de mérito satisfativo (artigo 4º do CPC/2015), seja através de um julgamento antecipado (parcial ou total) ou não (de mérito). Entretanto, antes do réu opor-se — através da contestação — à pretensão do autor, o CPC/2015 pretendeu, na visão de Luiz Guilherme Marinoni, “estimular a solução consensual dos litígios (art. 3º, §2º), concedendo à autonomia privada um espaço de maior destaque no procedimento”.
Dessa forma, o artigo 334 do CPC/2015 estabeleceu que, “se a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for o caso de improcedência liminar do pedido, o juiz designará audiência de conciliação ou de mediação com antecedência mínima de 30 (trinta) dias, devendo ser citado o réu com pelo menos 20 (vinte) dias de antecedência”. O autor será intimado por meio do seu advogado, e o réu deverá ser citado (artigo 238, CPC/2015) para comparecerem na audiência inaugural.
Da leitura do artigo 334, parágrafo 4º, do CPC/2015, infere-se que a realização da audiência inaugural é obrigatória, admitindo-se, todavia, a sua não realização somente “se ambas as partes manifestarem, expressamente, desinteresse na composição consensual ou quando não se admitir a autocomposição” (artigo 334, parágrafo 4º, I e II).
Conquanto tenhamos admitidos em outros trabalhos, escorados na doutrina de Luiz Guilherme Marinoni, que se deve fomentar o diálogo e os comportamentos cooperativos e não agressivos dos sujeitos processuais, de modo a reconhecer que, “muitas das vezes, a decisão judicial não é a solução mais adequada”, considerando “o modelo multiportas de composição de litígios”, devemos refletir sobre duas situações das quais concordamos serem hipóteses em que se dispensa a designação da audiência inaugural, em virtude da (parcial) desarmonia entre a Lei de Locação de Imóveis urbanos (Lei 8.245/1991) e o CPC/2015 e a incompatibilidade da autocomposição, respectivamente, nos procedimentos comuns cujas pretensões sejam o despejo por falta de pagamento e o despejo por denúncia vazia.
O artigo 4º da Lei 8.245/1991, que disciplina a locação de imóveis urbanos, ratifica um dos princípios que norteiam o Direito Contratual: pacta sunt servanda; “as convenções contratuais devem ser cumpridas”.
Nos dizeres de Sílvio Venosa, “fixado o pacto para um prazo determinado, ambas as partes contam com o exaurimento desse prazo, no mínimo, pois assim foi convencionado”. Logo, considerando aquele dispositivo, não pode o locador desfazer a locação e reaver o imóvel antes do término do prazo contratual, salvo se, dentre outras alternativas, ajuizar um procedimento (comum) pretendendo o despejo em razão da falta de pagamento de aluguel e demais encargos (artigo 9º, III, da Lei 8.245/1991).
Dessa maneira, ajuizado o procedimento judicial de despejo por falta de pagamento pelo locador, o artigo 62, II, do mesmo dispositivo, faculta ao locatário e fiador “purgar a mora e evitar a rescisão do contrato desde que efetuem, no prazo de 15 dias, contados da citação, o pagamento de débito atualizado, independente de cálculo e mediante depósito judicial”.
O que se percebe é que tal dispositivo possui sintonia com o revogado CPC/73, em especial com o artigo 285, o qual previa que, “estando em termos a petição inicial, o juiz a despachará, ordenando a citação do réu, para responder; do mandado constará que, não sendo contestada a ação, se presumirão aceitos pelo réu, como verdadeiros, os fatos articulados pelo autor”, ou seja, o prazo de 15 dias concedido coincidia tanto com a possibilidade de purgar-se a mora quanto com a apresentação de resposta — em especial a contestação. Ocorre que, com o advento do CPC/2015, tal sintonia se desfez, já que, efetivada a citação, facultar-se-á ao réu tanto purgar a mora em 15 dias quanto comparecer na audiência inaugural de conciliação ou de mediação, a partir da qual, não havendo acordo, iniciará o prazo para o oferecimento da contestação (artigo 335, I, CPC/2015)
Assim, existente um novo procedimento entre a citação e a apresentação de defesa do réu — a audiência do artigo 334 —, não é razoável facultar ao locatário e fiador purgar a mora em 15 dias, obedecendo o que determina a Lei 8.245/1991, e, posteriormente, comparecer à audiência inaugural, cujo propósito seria dirimir um conflito sobre a realização de um pagamento que aqueles já tiveram a oportunidade de fazer e não o fizeram; não purgada a mora no prazo mencionado, resta imprestável a realização da audiência inaugural, cuja designação com antecedência mínima de 30 dias e máxima indefinida apenas fomentaria e aumentaria a inadimplência dos locatários e dos fiadores, uma vez que estes poderiam aguardar a realização da audiência — cuja espera poderia chegar a quatro meses, por exemplo —, e, frustrada a autocomposição, ganharem mais 15 dias úteis para se justificarem sobre a (im)pontualidade dos encargos, lesando sobremaneira o locador.
Logo, inadmitindo-se a designação da audiência inaugural, resta-se razoável, então, manter-se a concomitância da purgação da mora e da apresentação da contestação, assim como era no CPC/1973, a partir da qual, saneado e organizado o processo, permitir-se-á o julgamento imediato (antecipado) do mérito, o que reduziria a sujeição do locador à inércia proposital do locatário.
Ainda, vale citar outro procedimento que merece a atenção do operador do Direito que nos obriga a repensar a obrigatoriedade da audiência inaugural, ou seja, aquele cuja pretensão é a rescisão contratual, com o consequente despejo, em razão da intenção de retomada do imóvel simplesmente porque o locador, verificando a indeterminação do prazo contratual, não deseja mais a mantença da locação (denúncia vazia). Nesses casos, indeterminando-se o contrato, o locador poderá denunciá-lo por escrito, desde que concedidos ao locatário 30 dias para a desocupação (artigo 57 e artigo 46, parágrafo 2º, da Lei 8.245/1991). “A notificação denunciando a locação autoriza, decorridos seus trinta dias, o ajuizamento da ação de despejo.”
Dessa maneira, cremos que o fato de o locatário notificado não desocupar o imóvel em 30 dias, e proposto o procedimento judicial, resta imprestável a audiência inaugural de conciliação ou de mediação, vez que resta claro que o locador almeja apenas a retomada do imóvel — o despejo do locatário; ausente, portanto, a possibilidade de autocomposição (334, parágrafo 4º, II, CPC/2015). Insistir na audiência inaugural, neste caso, é tratá-la como se audiência de ratificação fosse (Lei 6.515/1977): é perguntar para o locador se ele tem certeza que deseja rescindir o contrato. Não faz sentido, data maxima venia!
Destarte, reconhece-se, como dito outrora, a importância do aperfeiçoamento e aprimoramento das técnicas de resolução de conflito, de modo a retirar o protagonismo das partes e do juiz, destacando a audiência inaugural e os centros judiciários de solução dos conflitos. Contudo, as individualidades dos dois procedimentos expostos acima devem direcionar-nos ao reconhecimento de que a audiência inaugural não será realizada por ser inócua (primeiro caso) e por não admitir a autocomposição (segundo caso), sendo a sua designação pro forma, pois outros mecanismos já foram utilizados na tentativa de fazer desaparecer o conflito.
Autores: Allan Duarte Milagres Lopes é advogado, mestrando em Direito Processual, pós-graduado em Processo Civil pela PUC Minas e presidente da Comissão de Direito Processual da OAB-MG.
Nathalia Alice Milagres de Menezes Ferreira é servidora terceirizada do TJ-MG, conciliadora voluntária no Cejusc de Contagem (MG) e pós-graduanda em Direito Tributário pela Faculdade Milton Campos.