Entendimento amplo de domicílio eleitoral pode gerar distorções para democracia

Autora: Ana Luísa Leite de Araújo Marques (*)

 

Domicílio eleitoral como condição de elegibilidade
Para que o cidadão possa ser candidato a cargo eletivo é necessário preencher os pressupostos constitucionais e infraconstitucionais, denominados condições de elegibilidade. Assim sendo, o direito de votar (ius singulii) seria pressuposto do direito de ser votado (ius honorum), sendo seu antecedente lógico e cronológico.

As condições de elegibilidade estão previstas na Constituição Federal de 1988 no 14, § 3º:

§ 3º – São condições de elegibilidade, na forma da lei: I – a nacionalidade brasileira; II – o pleno exercício dos direitos políticos; III – o alistamento eleitoral; IV – o domicílio eleitoral na circunscrição; V – a filiação partidária; VI – a idade mínima de: a) trinta e cinco anos para Presidente e Vice-Presidente da República e Senador; b) trinta anos para Governador e Vice-Governador de Estado e do Distrito Federal; c) vinte e um anos para Deputado Federal, Deputado Estadual ou Distrital, Prefeito, Vice-Prefeito e juiz de paz; d) dezoito anos para Vereador.

Como bem conceitua José Jairo Gomes:

O substantivo feminino elegibilidade retrata as ideias de cidadania passiva e capacidade eleitoral passiva. Conforme o sufixo da palavra indica, é a aptidão de ser eleito ou elegido. Elegível é o cidadão apto a receber votos em um certame, que pode ser escolhido para ocupar cargos político-eletivos. Exercer a capacidade eleitoral passiva significa candidatar-se a tais cargos. Para isso, devem ser atendidas algumas condições previstas na Constituição Federal, denominadas condições de elegibilidade. Em suma, é o direito público subjetivo atribuído ao cidadão de disputar cargos público-eletivos.

Ou seja, seguindo a linha do nobre doutrinador acima citado, a elegibilidade seria equivalente à capacidade eleitoral passiva, sendo a aptidão a ser eleito. Porém para ser eleito é necessário, conforme já mencionado, o preenchimento de certos requisitos, dentre eles o domicílio eleitoral.

A definição de domicílio eleitoral para fins de inscrição do eleitor, no entanto, não é expressa no texto constitucional, sendo feita no Código Eleitoral em seu artigo 42, parágrafo único:

Art. 42. O alistamento se faz mediante a qualificação e inscrição do eleitor. Parágrafo único. Para o efeito da inscrição, é domicílio eleitoral o lugar de residência ou moradia do requerente, e, verificado ter o alistando mais de uma, considerar-se-á domicílio qualquer delas.

Conforme explica Piazzollati o termo seguiu uma técnica definida por sinonímia:

Verifica-se que a definição de domicílio, na lei eleitoral, seguiu a técnica definitória por sinonímia, a qual, segundo o Prof. Luís Alberto WARAT, “… permite mostrar a significação, correlacionando o termo cujo sentido se desconhece com outro que tem para o receptor uma significação clara” (A definição jurídica. Porto Alegre: Atrium, 1977. p. 4 ). Como o legislador não estava seguro de que o termo “residência”, tradicional do Direito Civil, fosse suficientemente claro, definiu-o mediante o sinônimo “moradia”, que a seu juízo seria melhor entendido.

O tema demonstra grande importância prática, pois a Lei 9504/97, com alterações dadas pela Lei 13165/15, estabelece, em seu nono artigo, a necessidade de o candidato possuir domicílio eleitoral na circunscrição que deseja concorrer ao cargo eletivo pelo prazo de, pelo menos, um ano antes do pleito.

A circunscrição, a saber, nas eleições presidenciais, será o País; nas eleições federais e estaduais, o Estado; e, nas municipais, o respectivo Município.

Domicílio eleitoral versus domicílio civil
O domicílio eleitoral não se confunde, no entanto, com o domicílio civil. Este é conceituado, em curtas linhas, como o local onde é estabelecida a residência definitiva ou onde se exerce atividades profissionais, vejamos:

O domicílio civil, para ser caracterizado, leva em conta dois requisitos: um objetivo e outro subjetivo. O primeiro diz respeito a circunstâncias que não são influenciadas pela vontade do indivíduo. Trata-se apenas do lugar propriamente dito, ou seja, é o local físico, a residência. O segundo requisito – subjetivo – envolve a vontade de permanecer de modo definitivo naquele lugar objetivamente indicado. Logo, é totalmente dependente da vontade, motivo pelo qual é chamado de subjetivo. Portanto, para que haja o domicílio civil, juntam-se o lugar com a vontade de permanecer definitivamente nele. Essa vontade é o elemento essencial e decisivo para caracterizar o domicílio civil.

A ideia de domicílio implica a configuração de dois elementos. Residência é o lugar em que a pessoa se fixa (requisito objetivo), ainda que temporariamente. Domicílio é o lugar em que a pessoa se fixa, com vontade de aí permanecer em definitivo (requisito subjetivo).

Para Clóvis Beviláqua o domicílio é o lugar onde a pessoa física, de modo definitivo, estabelece a sua residência e o centro principal da sua atividade.

É pacífica, então, na órbita civil a existência de dois elementos distintos: O elemento objetivo, qual seja, um local fixo e físico (residência) conjugado com o elemento subjetivo que seria a vontade de permanecer definitivamente.

Eleitoralmente, o conceito de domicílio é mais amplo, levando em conta que o vínculo subjetivo do direito civil fora substituído pelo vínculo especial, qual seja, que se guarde com o local escolhido um elo, seja ele familiar, social, afetivo, comunitário, patrimonial, negocial, econômico, profissional ou político. Este requisito precisa, no entanto, estar conjugado ao vínculo objetivo já mencionado do direito civil.

O domicílio no Direito Eleitoral, assim sendo, ganhou uma nova interpretação na órbita jurisprudencial

O sentido da lei eleitoral (do domicílio) começou a sofrer redefinição a partir de decisões que se impressionaram demasiado com o caso concreto e buscaram solução de equidade, deixando de lado a solução normativa.

Para os Tribunais, a mudança se deu para melhor adequar-se à obrigatoriedade de o alistando possuir apenas uma inscrição eleitoral, facilitando assim a comprovação do domicílio, além de permitir que o eleitor possa votar e ser votado onde tenha vínculos reais e não apenas no local de seu domicílio civil.

O posicionamento jurisprudencial quanto ao alargamento da definição de domicílio é posição dominante, vejamos:

[…] 1. A jurisprudência desta Corte se fixou no sentido de que a demonstração do vínculo político é suficiente, por si só, para atrair o domicílio eleitoral, cujo conceito é mais elástico que o domicílio no Direito Civil […] (Ac. de 8.4.2014 no REspe nº 8551, rel. Min. Luciana Lóssio)

[…] Domicílio eleitoral. Abrangência. Comprovação. Conceito elástico. Desnecessidade de residência para se configurar o vínculo com o município. Provimento. 1) Na linha da jurisprudência do TSE, o conceito de domicílio eleitoral é mais elástico do que no Direito Civil e se satisfaz com a demonstração de vínculos políticos, econômicos, sociais ou familiares […] (Ac. de 18.2.2014 no REspe nº 37481, rel. Min. Marco Aurélio, red. designado Min. Dias Toffoli)

[…] Domicílio eleitoral. Conceito elástico. Transferência. Preenchimento dos requisitos previstos no art. 55, § 1º, III, do Código Eleitoral. Não provimento. 1. Na espécie, a declaração subscrita por delegado de polícia constitui requisito suficiente para comprovação da residência do agravado e autoriza a transferência de seu domicílio eleitoral, nos termos do art. 55, § 1º, III, do CE. 2. O TSE já decidiu que o conceito de domicílio no Direito Eleitoral é mais elástico do que no Direito Civil e satisfaz-se com a demonstração de vínculo político, social ou afetivo. No caso, o agravado demonstrou vínculo familiar com o Município de Barra de Santana/PB, pois seu filho reside naquele município […] (Ac. de 5.2.2013 no AgR-AI nº 7286, rel. Min. Nancy Andrighi)

Domicílio eleitoral: doutrina
Doutrinariamente, porém, há divergências quanto ao entendimento utilizado pelos tribunais. Existe uma corrente que entende que o domicílio eleitoral deveria ser igual ao domicílio civil, sendo assim mais restrito. Vejamos o que diz o Professor Joel J. Cândido:

No art. 42, parágrafo único, o Código Eleitoral definiu o domicílio. Definiu mas não conceituou domicílio, o que tem gerado inúmeras controvérsias sobre o parágrafo. Não seguiu a esteira do art. 70 do Código Civil, onde a característica do domicílio é o animus definitivo de morar… A jurisprudência, porém, embora por isso se tenha pago um preço muito caro, reluta em exigir, para caracterizar o domicílio eleitoral, os mesmos requisitos que estão a indicar o domicílio civil… O ideal, a nosso entender, é que o ânimo de permanecer fosse o norte da conceituação – tal como se dá na caracterização do domicílio civil – do domicílio para fins eleitorais, o que a redação atual não impede. Evitar-se-iam, assim, candidaturas alienígenas, ditadas apenas por interesses políticos ocasionais.

A mesma posição defende Pizzolatti:

Portanto, quando o Código Eleitoral, no seus artigos 42, parágrafo único, e 55, inciso III, fala em “residência”, definindo sinonimicamente esse termo como “moradia”, não pode o juiz, no exercício da atividade interpretativa – e não atividade legislativa -, enxergar aí “local onde são exercidos os direitos políticos”, “centro das funções sociais”, “centro da atividade eleitoral”, “zona de influência política”, “reduto eleitoral” (expressões utilizadas no Acórdão n. 12.053, do TRE/SC, rei. Juiz Olavo RIGON FILHO), ou ainda “centro das atividades”, “local das relações jurídicas”, “local onde tem o eleitor a vida jurídica” (expressões usadas na Resolução n. 6.868, do TRE/SC, rel. Juiz Anselmo CERELLO), expressões fluidas que, por desbordarem da moldura legal, permitem que o domicílio eleitoral seja arbitrariamente fixado pelo cidadão, bastando que alegue que quer se alistar eleitoralmente em determinado município, embora more noutro, porque tem naquele a sua “zona de influência política” ou o seu “centro de funções sociais.

A preocupação doutrinaria se dá pelo fato de diversos candidatos aproveitarem-se do benevolente entendimento jurisprudencial a fim de efetivamente se candidatarem em local diverso do que de fato tem domicílio por motivos “eleitoreiros”, bem como de “eleitores itinerantes” votarem em locais com os quais não possuem nenhum vínculo real.

No caso dos municípios seria ainda mais grave, pois haveria tanto a possibilidade de prefeitos e vereadores totalmente desconectados com os problemas daquela comunidade conseguirem ser eleitos, como a de eleitores que nada tem a ver com o panorama municipal conseguirem votar:

Entendo que muito bem andou o Código Eleitoral obrigando o cidadão a alistar-se no lugar onde tem o seu domicílio civil. Sendo o eleitorado um só para as eleições federais, estaduais e municipais, se for permitido a cidadãos domiciliados em um município alistar-se como eleitores em município diverso, ou ainda situado em região diferente, quando se tratar da escolha de representantes estaduais e municipais, esses eleitores vão influir em eleições que não lhes tocam de perto, que lhes podem ser até indiferentes.

O vínculo familiar, social, afetivo, comunitário, patrimonial, negocial, econômico, profissional ou político de que trata a jurisprudência é, em última análise, um conceito frágil e facilmente burlável na prática:

O que não se admite é que eleitores sem qualquer vínculo com o município passem a exercer o direito ao voto em comunidades que lhes são totalmente estranhas, neutralizando e até mesmo suplantando a vontade do eleitorado residente no local, consagrando o que já é dito popularmente nas comunidades menores: “[…] o pessoal de fora é que decide a eleição […].

Embora nos pareça mais precária a situação a nível municipal também é delicada a situação dos estados representados por aqueles que nem um vínculo com eles têm:

Essa situação é mais gravosa quando analisada no âmbito estadual, pois a possibilidade de candidatura de uma pessoa que não tenha qualquer vínculo com o estado que representa, fere o processo eleitoral brasileiro, vez que não obedece a representatividade, base do Estado Democrático de Direito. Como o candidato eleito é o representante dos cidadãos circunscritos em determinada região, em respeito ao princípio da moralidade deveria ter seu domicílio residencial coincidente com o domicílio eleitoral. Esse é apenas um dos problemas que são gerados pela falta de objetividade na determinação do conceito de domicílio eleitoral.

Votar em uma comunidade que lhe é estranha ou ser eleito por uma população sem saber sequer seus problemas mais básicos é de fato esvaziar qualquer senso de representatividade democrática que possa existir em uma eleição.

De um lado, temos, na prática, caravanas de eleitores vindo influenciar uma eleição que não lhes toca, movidos muitas vezes por interesses escusos. Do outro, candidatos que nenhuma identidade têm com a população local e que, por vezes, são “convocados de última hora” por suas famílias ou grupos políticos locais para perpetuar-se no poder.

Conclusão
Logo, pode-se notar que o domicílio eleitoral é entendido de forma mais ampla que no direito civil, teoricamente para não impor maiores empecilhos quanto ao exercício do voto. Porém, na prática, tal entendimento gera distorções, pois candidatos que não pertencem efetivamente à comunidade se valem de frágeis vínculos por vezes forjados para se candidatar em local diverso ao que de fato residem, bem como, eleitores de locais diversos votam em lugares com os quais não tem nenhuma familiaridade ou pertencimento.

 

 

 

 

Autora: Ana Luísa Leite de Araújo Marque é advogada eleitoralista pós-graduada em Direito Público pela ESMAPE (Escola Superior da Magistratura de Pernambuco) e pós-graduanda em Direito Eleitoral pela EJE (Escola Judiciária Eleitoral do TRE/PE).

 


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