Em 20 anos, Fonaje virou um dos maiores intérpretes das leis 9.099/95 e 12.153/09

Autores: Erick Linhares e Maria do Carmo Honório (*)

 

A Lei 9.099 entrou em vigor no final de 1995 e trouxe muitas inovações que representavam rupturas com o processo tradicional. Na área criminal, as medidas despenalizadoras como transação penal, suspensão condicional do processo e composição de danos possibilitaram uma persecução penal baseada na celeridade, algo até então inédito. Na esfera cível, o pioneirismo também foi marcante: unicidade de procedimento, prevalência da autocomposição, oralidade e celeridade na condução do processo.

Contudo, a lei também trouxe muitas dúvidas que precisavam ser esclarecidas e lacunas a serem preenchidas. Por isso, em maio de 1997, alguns coordenadores estaduais dos recém criados juizados especiais se reuniram em Natal, no Rio Grande do Norte, com o intuito de buscar a melhor interpretação da norma, unificar entendimentos e dar diretrizes aos magistrados que tinham a missão de implantar o novo procedimento no ordenamento jurídico brasileiro.

A princípio com o nome de Fórum de Coordenadores dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do Brasil, o evento tinha – e continua tendo – o objetivo de congregar magistrados do sistema de juizados especiais cíveis e criminais dos estados e Distrito Federal, compartilhar experiências, uniformizar métodos de trabalhos e procedimentos, por meio de enunciados.

Os encontros nacionais eram realizados a cada seis meses, tradicionalmente em maio e novembro de cada ano, até que deixaram de ser apenas de coordenadores, passando a ser de todos os integrantes dos juizados especiais. Esses magistrados entusiasmados com a ideia de prestar tutela jurisdicional de forma simples e rápida, assumiram a tarefa de implantar o novo procedimento e começaram a executar projetos de justiça diferenciada, para a democratização de seu acesso, como os Juizados Itinerantes e similares.

Rapidamente, aquela reunião simples evoluiu para um projeto genuíno de discussão e aperfeiçoamento dos juizados especiais. O nome, então, foi alterado para Fórum Nacional dos Juizados Especiais, o conhecido Fonaje, que se firmou, ao longo dos últimos 20 anos, como um dos maiores intérpretes da Lei 9.099/1995 e, posteriormente, da Lei 12.153/2009.

Objetivando a aplicação uniforme dessas leis em todo o território nacional, o Fonaje editou enunciados, resultantes de ampla e democrática discussão e deliberação dos seus membros, os quais foram aprovados por assembleias gerais, compostas por magistrados representantes dos estados da federação.

Os enunciados são orientações ao aplicador do Direito e, nesse aspecto, se assemelham às súmulas dos tribunais, pois garantem previsibilidade e segurança jurídica. Mas se diferenciam porque o seu descumprimento não gera consequências. Sua autoridade é exclusivamente moral.

Esses enunciados depuraram o texto legal, superaram controvérsias e indicaram a solução mais eficiente para as questões do dia-a-dia. O êxito que alcançaram propiciou o surgimento de uma jurisprudência razoavelmente estável, íntegra e coerente no sistema dos juizados especiais. Algo que apenas em 2015 o legislador previu para o processo comum (artigo 926 do CPC/2015).

Os números traduzem esse sucesso. No Supremo Tribunal Federal são mais de 100 menções em decisões e acórdãos aos enunciados do Fonaje; ao passo que no Superior Tribunal de Justiça são quase 400. E o montante impressiona nos demais tribunais, com a citação de mais de 84 mil referências em sites de jurisprudência. E na base do sistema, nos juizados especiais, o número chega a alguns milhões.

Por isso, para qualquer operador do direito, não é desconhecida a influência que os enunciados do Fonaje exercem. Ela se verifica em todos os ramos e em todos os níveis, sendo responsável por inegáveis avanços na aplicação das leis 9.099/1995 e 12.153/2009.

Por exemplo, o Enunciado Cível 1, ao afirmar que a competência é facultativa, impediu a transferência de milhares de processos das varas comuns para os juizados especiais, o que assegurou a própria sobrevivência do sistema da Lei 9.099/1995.

Já o Enunciado Cível 62, que trata da competência das turmas recursais para julgar mandado de segurança contra atos judiciais oriundos dos juizados especiais, colaborou para a consolidação do entendimento que resultou na Súmula 376 do Superior Tribunal de Justiça.

Outro Enunciado Cível importante foi o 161, que restringiu a aplicação do CPC/2015 aos juizados especiais apenas quando houver expressa e específica remissão ou na hipótese de compatibilidade com os critérios do artigo 2° da Lei 9.099/1995. Seu objetivo foi afirmar a autonomia processual do sistema dos juizados especiais e evitar a importação fragmentada de normas do novo Código de Processo Cível, para não descaracterizar o rito especial.

Na área criminal, os enunciados também desempenharam papel de vanguarda. Por exemplo, o Enunciado 34 respaldou a lavratura imediata de termo circunstanciado pela Polícia Militar; embora a matéria ainda seja polêmica, é inegável que ela estimula o combate efetivo à criminalidade de menor potencial ofensivo.

Também merece menção o Enunciado Criminal 126 que obstou o registro, para efeitos de antecedentes, de condenação criminal em caso de usuário de drogas. O Fonaje se alinhou à criminologia moderna e reconheceu que a Lei de Drogas conferiu um tratamento de descarcerização para o usuário e dependente.

Em relação aos juizados da Fazenda Pública, ante a omissão do artigo 4° da Lei 12.153/2009, o Enunciado Fazendário 5 aclarou que é de 10 dias o prazo para recorrer contra decisão que deferir tutela antecipada. Evitaram-se, assim, inúmeros transtornos e assegurou-se a uniformidade de prazo recursal no sistema dos juizados especiais.

Como se vê, o Fonaje cumpre o objetivo de aperfeiçoar os juizados especiais pela uniformização de métodos de trabalho e pela edição de enunciados, conforme previsto no seu Regimento Interno.

Deste modo, é uma das poucas organizações nacionais dedicada expressamente à melhoria de um ramo do Judiciário. É dirigido por um presidente, e na sua ausência ou impedimento pelo vice-presidente, ambos eleitos dentre seus membros para o mandato de um ano, segundo critério de rodízio por regiões da federação, na seguinte sequência: nordeste, sudeste, norte, centro-oeste e sul, o que lhe assegura um caráter de representatividade nacional e uma abertura para os problemas locais.

Tem um secretário-geral que lavra as atas de suas reuniões e organiza a sua memória, e um representante permanente na capital da República, designado dentre os magistrados dos juizados especiais do Distrito Federal.

O Fonaje é um órgão essencialmente transparente, público e democrático; todas as suas deliberações são colegiadas e resultam do diálogo e do consenso, nada é imposto. Se não fosse assim, ele não teria completado 20 anos e não serviria de modelo para outros fóruns similares.

Seus enunciados, por exemplo, têm ampla discussão em grupos temáticos e depois em plenário, basta ler as suas atas, todas públicas[1]. Para propor um enunciado, o interessado não precisa ser juiz, pode ser advogado ou membro do Ministério Público, a quem é garantida voz para a defesa de sua tese (não voto, porque o fórum é de magistrados).

Quem quiser propor um enunciado tem que se inscrever no Fórum de Juizados Especiais e justificar o motivo em um grupo aberto. Após, se habilitado no grupo (que publicamente discutirá e deliberará sobre a pertinência da proposta de enunciado), o texto irá à Plenária, também pública, composta por magistrados de todos os estados (um por unidade da federação).

A aprovação de um novo enunciado requer maioria simples de votos dos membros presentes à Plenária, mas a modificação, alteração ou revogação de algum enunciado exige a aquiescência de dois terços dos presentes na assembleia geral.

Até hoje o Fonaje, nos 41 encontros já realizados, editou 170 enunciados cíveis, 127 criminais e 13 fazendários. Agindo em conjunto e rompendo estereótipos, seus membros conseguiram objetivos que, de outro modo, seriam inalcançáveis, sempre visando um processo justo, simples e acessível.

A arquitetura institucional do fórum permitiu que, além da unificação de entendimento por meio de enunciados, ele passasse a tecer ações estratégicas para perenizar as conquistas da Lei 9.099/1995.

Assim, o Fonaje trabalhou ativamente para a criação do Sistema de Política Nacional Antidrogas e tem atuado em conjunto com a Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor em medidas que prestigiam a solução rápida e eficiente de litígios decorrentes de relação de consumo. Além disso, tem acompanhado constantemente os projetos de lei no Congresso Nacional e os procedimentos no Conselho Nacional de Justiça, quando há interesse dos juizados especiais.

Contudo, mais do que contemplar o que já foi feito, deve-se olhar adiante, combatendo o perigo de retrocesso. Em 1997, a prioridade era fazer os juizados especiais funcionarem. Hoje, o desafio é evitar que naufraguem: é a luta contra a ordinarização de seu rito, contra a precarização (ou a secundarização na estrutura de alguns Tribunais de Justiça) e contra a importação irrefletida de dispositivos do CPC/2015, que podem afastar de vez a chance de manutenção de um sistema de justiça diferenciado no seu modo de proceder, de forma simples e rápida.

Não se pode olvidar que foram as especificidades da jurisdição que elevaram os juizados especiais a um sistema que atende mais da metade das ações que ingressam na Justiça brasileira (55,17%), com menos de um sexto dos recursos financeiros e com apenas 8% dos magistrados com atuação exclusiva[2].

Enfrentar a demanda crescente é um dos desafios a serem superados pelos magistrados. O Fonaje ajuda nessa missão, dando mais racionalidade ao sistema e previsibilidade na aplicação do direito, por meio de seus enunciados.

Por fim, é importante registrar que esses enunciados cíveis, criminais e fazendários são perpassados pela firme convicção de que mais oralidade, mais simplicidade, mais informalidade, mais economia processual e mais celeridade trouxeram reconhecimento aos juizados especiais e, seguramente, garantirão um bom lugar no futuro.

 

 

 

 

 

Autores: Erick Linhares é secretário-geral do Fórum Nacional dos Juizados Especiais (Fonaje), juiz de Direito em Roraima, doutor em Relações Internacionais pela UnB e pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra.

Maria do Carmo Honório  é presidente do Fórum Nacional dos Juizados Especiais (Fonaje), juíza de Direito em São Paulo, mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP e especialista em Direito Constitucional pela Puccamp.


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