Sanha persecutória vulgariza conceito de improbidade administrativa

Autor: Odasir Piacini Neto (*)

 

Em tempos de “operação lava-jato”, combate incessante à corrupção (nas suas mais variadas formas), de clamor público pela condenação implacável dos corruptos, a consequência oriunda dessas “circunstâncias” nos parece ter ultrapassado a seara penal, a “sanha persecutória” também tem desaguado no âmbito das ações civis de improbidade administrativa.

Na prática, o que temos visto é que todo e qualquer ato ilícito, ou, ainda, qualquer irregularidade funcional praticada por servidor público, tem sido equiparada a atos de improbidade administrativa, o que, por sua vez, não se mostra adequado.

As irregularidades funcionais possuem meio próprio para ser apuradas, quais sejam: sindicâncias e processos administrativos disciplinares, a exemplo do que dispõe o regime jurídico único dos servidores públicos da União, Lei 8.112/1990 (artigos 143-182), sendo certo que não são todos esses atos que podem ser equiparados a atos de improbidade, fato que tem ocorrido nos dias atuais.

Tanto é assim que, utilizando mais uma vez a Lei 8.112/1990[1] como parâmetro, a figura da improbidade é estabelecida como um instituto autônomo, capaz de gerar a demissão do servidor, não se confundido com as demais proibições funcionais descritas no artigo 117 do aludido diploma legal.

Nesse contexto, é pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial no sentido de que ilegalidade/irregularidade não é sinônimo de improbidade administrativa e a ocorrência daquela, por si só, não configura ato de improbidade. Nesse sentido pede-se vênia para citar os ensinamentos de Pazzaglini Filho:

Indaga-se, agora, toda violação da legalidade configura ato de improbidade administrativa?

Claro que não, pois, se tal premissa fosse verdadeira, qualquer ação ou omissão do agente público contrária à lei seria alçada à categoria de improbidade administrativa, independentemente de sua natureza, gravidade ou disposição de espírito que levou o agente público a praticá-la.

Ilegalidade não é sinônimo de improbidade administrativa e a ocorrência daquela, por si só, não configura ato de improbidade administrativa.

É imprescindível à sua tipificação que o ato ilegal tenha origem em conduta desonesta, ardilosa, denotativa de falta de probidade do agente público.

O vocábulo latino improbitate, como já assinalado, tem o significado de “desonestidade” e a expressão improbus administrato, quer dizer, administrador improbo desonesto ou má-fé.

E essa desonestidade pressupõe consciência da ilicitude da ação ou omissão praticada pelo administrador e sua prática ou abstenção, mesmo assim, por má-fé (dolo).

Portanto, a conduta ilícita do agente público para tipificar ato de improbidade deve ter esse traço comum e característico de todas as modalidades de improbidade administrativa: desonestidade, má-fé, falta de probidade no trato da coisa pública.

(…)

Assim, os atos ilegais que não se revestem de inequívoca gravidade, que não ostentam indícios de desonestidade ou má-fé (…) não configuram ato de improbidade[2]. (grifamos)

Por sua vez, o colendo Superior Tribunal de Justiça possui reiterados entendimentos[3] no sentido de que mera ilegalidade, pura e simples, não revela improbidade administrativa, na exata medida em que esta é uma categoria de ilícito mais grave, acentuadamente reprovável. A ilegalidade, por si só, não acarreta a incidência da lei de improbidade administrativa. Nesse sentido:

ADMINISTRATIVO.  AGRAVO  INTERNO  NO  RECURSO  ESPECIAL. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA.  ART.  11  DA LEI N. 8.429/1992. ELEMENTO SUBJETIVO.
AUSÊNCIA. REVISÃO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7 DO STJ.
1. A jurisprudência de ambas as Turmas que integram a Primeira Seção do  Superior  Tribunal  de  Justiça  firmou-se  no  sentido  de  ser imprescindível  à  configuração  do ato de improbidade tipificado no art.  11  da  Lei  n.  8.429/1992 a existência de elemento subjetivo doloso, ainda que genérico.
2.  Hipótese  em  que,  segundo  o  Tribunal  de  origem,  não ficou demonstrada  a presença do elemento subjetivo e o suporte probatório constante  dos  autos mostrou-se insuficiente para comprovar a ma-fé dos agentes, ora agravados.
3.   A  desconstituição  de  premissas  fáticas  estabelecidas  pela Instância  a  quo,  à luz do material cognitivo produzido nos autos, esbarra  no  óbice  estampado  na  Súmula  7  desta Corte, visto que demanda  reexame  de  provas,  desiderato  incompatível  com  a  via especial. Precedentes.
4. Agravo interno desprovido.
(AgInt no REsp 1559515/RN, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 27/09/2016, DJe 04/11/2016)

PROCESSO CIVIL E ADMINISTRATIVO. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC. NÃO OCORRÊNCIA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. DEMISSÃO DE SERVIDORA. FALSIFICAÇÃO DE ATESTADO. MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. SÚMULA 07/STJ.
1. O aresto recorrido não está eivado de omissão nem de contradição, pois resolveu a matéria de direito valendo-se de elementos que julgou aplicáveis e suficientes para a solução da lide. Com efeito, o Tribunal de origem apreciou e decidiu a matéria submetida a julgamento. O argumento expendido pelas recorrentes, de que houve omissão e contradição no julgado, demonstra, na verdade, mero inconformismo em relação aos fundamentos da decisão.
2. Com base no contexto-fático probatório, entendeu não ter restado configurada a conduta descrita no artigo 11 da Lei de Improbidade, o que afasta a pretensão de que sejam aplicadas as sanções do inciso III do artigo 12 do mesmo texto legal. Infirmar essa premissa, demandaria revolver as provas dos autos, o que esbarra no óbice da Súmula 7/STJ.
3. A decisão atacada concluiu pela ausência de autoria da servidora na falsidade do atestado médico, tomando por fundamento a situação fática apresentada e as provas técnicas produzidas e colacionadas aos autos, inclusive as provas periciais.
4. A Lei nº 8.429/92 visa a resguardar os princípios da administração pública sob o prisma do combate à corrupção, da imoralidade qualificada e da grave desonestidade funcional, não se coadunando com a punição de meras irregularidades administrativas ou transgressões disciplinares, as quais possuem foro disciplinar adequado para processo e julgamento.
5. Recursos especiais conhecidos em parte e não providos.
(REsp 1089911/PE, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/11/2009, DJe 25/11/2009)

A “sanha persecutória” tem se mostrado tamanha que atos de negligência, que se revestem de inequívoco caráter de culposo, tem sido imputado como atos de improbidade administrativa, o que, frise-se mais uma vez, mostra-se absolutamente inadequado.

Acerca das citadas situações, vejamos o que decidiu o STJ nos autos do AResp 755.082/DF[4], oportunidade em que foi afastada a aplicação de penalidade por improbidade administrativa a perito da Polícia Civil que havia sido acusado de praticar ato de improbidade administrativa por retardar a elaboração de laudos periciais:

Por outro lado, a jurisprudência desta Corte firmou-se no sentido de que “o retardamento ou omissão na prática de ato de ofício não pode ser considerado de maneira objetiva para fins de enquadramento do agente público no campo de incidência do art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa. É preciso que a conduta seja orientada pelo dolo de violar os princípios da administração pública ” (AgRg no REsp nº 1.191.261/RJ, Relator Ministro Humberto Martins, DJe 25/11/2011).
(…)
Nota-se, portanto, que as irregularidades imputadas ao recorrente decorreram de negligência em relação às suas atribuições. Em nenhum momento foi efetivamente demonstrada a presença de dolo, ainda que genérico, do acusado em “retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício” . E fato é que a negligência é modalidade de culpa, não sendo suficiente para a configuração do ato de improbidade administrativa de que trata o art. 11 da Lei 8.429/92

Note-se, não estamos aqui defendendo nenhum tipo de impunidade, mas apenas a adoção de critérios mínimos e adequados, de acordo com o que efetivamente estabelece o ordenamento jurídico, em especial a Lei 8.429/1992[5] e a Constituição Federal de 1988, para que se possa denunciar alguém pela prática de atos de improbidade administrativa. Quanto à ausência de critérios para aplicação do direito e o perigo decorrente dessa conduta vale a leitura do texto do jurista Lênio Streck: No naufrágio jurídico, quem os tubarões comerão primeiro? Há critérios?[6].

Entendemos que o papel do Ministério Público não pode ser exercido de maneira irresponsável, denunciado por improbidade administrativa todo e qualquer ato ilícito ou irregularidade funcional, pois são drásticas as consequências sofridas por uma pessoa em sua vida pessoal e funcional pelo simples falto de figurar como réu em uma ação civil de improbidade.

Acerca do papel do MP, pelo brilhantismo das colocações, peço licença, mais uma vez, para citar os ensinamentos de Lênio Streck:

Sigo. A infeliz frase “enquanto houver bambu, vai flecha” bem denota o ponto em que chegamos. Quando entrei no MP há 31 anos atrás, no meu discurso de posse recitei um mantra que levei comigo durante mais de 28 anos: a de que o MP era uma coisa diferente, que devia atuar como magistrado, que não tinha lado, o seu lado era a lei e a Constituição, doa a quem doer. Pena que isso venha sendo esquecido. Da judicialização da política chegamos a politização da Justiça. Hoje, imitando agir estratégico, até se distorcem teorias para justificar que “prova é igual a fé ou crença” ou “mesmo não tendo prova, a probabilidade estatística é suficiente para obter a condenação” ou “um conjunto de indícios consubstanciam uma prova do fato imputado”. Vem a calhar o editorial do Estadão de 5.7.2017, quando alerta:

“Seria um equívoco não pequeno se o desejo de combater a corrupção e a impunidade levasse a um descarte paulatino da lógica e das garantias do processo. A delação premiada deve ser instrumento de auxílio à Justiça, e não uma obsessão que faz inverter o ônus da prova, excluir a presunção de inocência e transigir com as condições para a prisão”

No fundo, a coisa se coloca do seguinte modo, já que estamos falando de bambus e flechas: o “fator Target”[1] é sempre perigoso. De novo o editorial do Estadão: “Atirar antes e perguntar depois não é uma boa forma de conduzir processo penal”. Atirar a fecha e depois pintar o alvo, pode até em um primeiro momento significar vitória. Afinal, o atirador nunca erra. O problema é quando o alvo não mais pode ser pintado à vontade. Então a disputa voltará a ser equilibrada.[7]. (grifo nosso)

Note-se que, apesar de estar tratando do processo penal no texto, o raciocínio narrado se amolda perfeitamente, também, às ações civis de improbidade propostas sem um respaldo jurídico mínimo, por questões políticas, por clamor público, ou, ainda, porque o combate à corrupção tem de ser implacável e não poder parar, é certo que não é esse o papel que se espera do Ministério Público.

Esperamos, pois, que os atos de improbidade sejam efetivamente apurados e punidos com as penalidades que lhes são adequadas. No entanto, esperamos, igualmente, que as ações civis dessa natureza sejam revestidas de critérios mínimos jurídicos, devendo acabar-se com a “sanha persecutória”, bem como com a confusão entre os conceitos de ilícito/ irregularidade funcional e atos de improbidade administrativa.

 

 

 

 

Autor: Odasir Piacini Neto é especialista em Direito Previdenciário e advogado no escritório Ibaneis Advocacia e Consultoria.


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