Autor: Juliana Ferreira de Morais (*)
A terceirização é o principal produto do modelo toyotista de produção. Tal modelo de produção se estrutura a partir da redução dos quadros funcionais da grande empresa, a qual expele de seu processo produtivo todos os empregados que exercem funções acessórias ao objetivo do empreendimento empresarial, mantendo apenas aqueles indispensáveis à consecução de sua atividade-fim.
A justificativa desse enxugamento é a de permitir à empresa se dedicar de forma primordial à sua atividade-fim, aumentando a produtividade e a qualidade de seus produtos, à medida em que se vale de prestadoras de serviços especializadas para o desempenho de atividades acessórias à dinâmica de seu empreendimento.
Nesse contexto, os empregados expurgados dos quadros funcionais da grande empresa são recontratados por empresas menores, prestadoras de serviços, responsáveis por registrá-los e remunerá-los, sendo, posteriormente, reaproveitados pela grande empresa, na condição de terceirizados. Acerca desse processo, Ricardo Antunes afirma:
[…] no toyotismo tem-se uma horizontalização, reduzindo-se o âmbito de produção da montadora e estendendo-se às subcontratadas, às ‘terceiras’, a produção de elementos básicos, que no fordismo são atributos das montadoras. Essa horizontalização acarreta também, no toyotismo, a expansão desses métodos e procedimentos para toda a rede de fornecedores[1].
Passadas algumas décadas da adoção da terceirização no Brasil, que se intensificou no cenário social entre nós a partir de 1990, colhem-se resultados desastrosos para os contratos de trabalho, podendo-se citar redução do padrão salarial, maior rotatividade, aumento nos índices de acidente de trabalho, discriminação e desagregação da noção de classe operária dos trabalhadores terceirizados, dentre outros aspectos, todos muito bem analisados no dossiê elaborado pelo Dieese/CUT[2], em setembro de 2011, a respeito dos impactos da terceirização no Brasil.
Diante dos efeitos deletérios da terceirização nos contratos de trabalho, surgem opiniões divergentes dentre aqueles que enfrentam o fenômeno com olhar social. Jorge Luiz Souto Maior defende não caber “ao direito adaptar-se às injustiças e sim servir como instrumento efetivo de combate a todo tipo de redução da dignidade humana”[3]. Prossegue aduzindo que:
Uma terceirização, ou seja, a transferência de atividade que é indispensável à realização empresarial, de forma permanente – seja ela considerada meio ou fim, pouco importa – não pode, simplesmente, transferir-se a terceiro, sem que se aplique a tal negócio jurídico a regra de definição do empregador fincada no artigo 2º, da CLT, isto é, a consideração de que aquele que se utiliza de trabalhador subordinado e que assume os riscos da atividade econômica é o real empregador, sendo este, no caso, evidentemente, a dita empresa “tomadora” dos serviços.
De fato, o arcabouço normativo juslaboral foi erigido a partir do modelo da relação bilateral de emprego, em que o empregador exercia simultaneamente seu papel no plano formal (signatário da CTPS do obreiro) e material (beneficiário direto da mão-de-obra). Ora, a inserção de um terceiro na relação laboral inegavelmente importa em ruptura do paradigma normativo, trazendo “graves desajustes em contraponto aos clássicos objetivos tutelares e redistributivos que sempre caracterizaram o direito do trabalho” [4]
Todavia, não se pode ignorar que a terceirização decorre de um modelo de produção largamente difundido em escala global, com capilaridade em diversos setores da economia. Os efeitos, portanto, de coibir seu uso no Brasil seriam desastrosos, mormente levando-se em consideração a facilidade com que as empresas e os recursos financeiros se deslocam de um país para outro em tempos modernos.
Ademais, cabe lembrar a célebre lição do jurista francês Georges Ripert, de que “quando o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga, ignorando o Direito”[5]. Ora, na atualidade, uma regulamentação excessivamente restritiva, a ponto de considerar ilícita a terceirização em todo e qualquer serviço permanente da empresa por certo perderia a eficácia social e seria sistematicamente ignorada pelos destinatários da norma.
Dessa forma, não sendo possível reverter o fenômeno sócio-econômico da terceirização, cabe ao Direito disciplinar seus efeitos jurídicos, no sentido de restringir de forma significativa a terceirização de serviços, admitindo-a apenas nas atividades-meio, com intermediação de prestadoras de serviços especializadas. Encampando esse posicionamento, o Tribunal Superior do Trabalho uniformizou sua jurisprudência, por meio da Súmula 331.
Da leitura do referido verbete sumular, depreende-se que o critério adotado pelo TST para concluir acerca da licitude ou ilicitude da terceirização foi o de saber se os serviços transferidos à empresa prestadora de serviços se inseriam na atividade-meio ou fim da empresa tomadora de serviços ou cliente.
Na primeira hipótese, segundo a dicção da Súmula 331, a terceirização seria válida, desde que inexistente pessoalidade e subordinação direta com o tomador de serviços. Já no segundo caso, a triangulação afigurar-se-ia ilícita, por representar mera intermediação de mão-de-obra, autorizando o reconhecimento de vínculo direto com o tomador de serviços, salvo no caso de trabalho temporário, bem como de intermediação ilícita de mão-de-obra praticada por ente público, em face da regra inscrita no artigo 37, II, da CF.
Cabe salientar que, em relação à distinção entre atividade-fim e atividade-meio, o Tribunal Superior do Trabalho se inspirou na disciplina legal da própria Administração Pública (Decreto-lei 200/1967 e Lei 5.645/1970), aplicada analogicamente ao setor privado, não havendo falar em atuação legiferante do Poder Judiciário. Com efeito, o § 7º do artigo 10 do Decreto-lei 200/1967 dispõe, in verbis:
Art. 10. A execução das atividades da Administração Federal deverá ser amplamente descentralizada.
[…]
§ 7º Para melhor desincumbir-se das tarefas de planejamento, coordenação, supervisão e contrôle e com o objetivo de impedir o crescimento desmesurado da máquina administrativa, a Administração procurará desobrigar-se da realização material de tarefas executivas, recorrendo, sempre que possível, à execução indireta, mediante contrato, desde que exista, na área, iniciativa privada suficientemente desenvolvida e capacitada a desempenhar os encargos de execução.
Da exegese legal, percebe-se, facilmente, que os entes públicos devem manter a execução direta das atividades de planejamento, coordenação, supervisão e controle — consideradas essenciais ou finalísticas em relação a si —, reservando à contratação indireta via terceirização apenas as tarefas executivas ou acessórias.
A distinção entre atividade-fim e atividade-meio, pois, longe de ser arbitrária, está amparada em aplicação analógica do Decreto-lei 200/1967 e da Lei 5.645/1970, sendo critério de inegável valia, por restringir a expansão desregulada da terceirização.
Embora o critério jurisprudencialmente adotado para diferenciar terceirização lícita da ilícita seja aberto, atraindo críticas por esse motivo, entendemos que tal situação não acarreta nenhum prejuízo social. Ao contrário, trata-se de recurso largamente utilizado pelo legislador ordinário, por meio das cláusulas gerais, conferindo dinamicidade e adaptabilidade ao Direito. Falando a respeito do tema, Flávio Tartuce afirma que “adota o atual Código Civil um sistema de cláusulas gerais, pelo qual por diversas vezes é o aplicador do Direito convocado a preencher janelas abertas pelo legislador, de acordo com a equidade, o bom senso”[6].
Ora, a ausência de delimitação precisa do conteúdo e alcance das expressões atividade-fim e atividade-meio ajusta-se à própria dinâmica do fenômeno sócio-econômico regulado, eis que, a se adotar conceito fechado a respeito da matéria, a disciplina legal rapidamente restaria superada pela celeridade na alteração dos fatos sociais.
Todavia, na contramão dos anseios sociais e abandonando o caminho até então trilhado pela jurisprudência do colendo TST, foi promulgada a Lei 13.429, de 31 de março de 2017, que dispõe sobre as relações de trabalho na empresa de trabalho temporário e na empresa de prestação de serviços a terceiros.
No que pertine à terceirização permanente, da leitura dos artigos 4º-A e 5º-A, caput, da 13.429/2017, constata-se que o referido diploma legal não fez qualquer distinção em relação aos serviços passíveis de terceirização, se inerentes ou acessórios ao objeto social da empresa tomadora, em inegável retrocesso social.
Isso porque a subcontratação de atividades essenciais e inerentes à dinâmica do empreendimento, tal como disciplinado pela Lei 13.429/2017, esvazia completamente a justificativa técnica que tem sido atribuída à terceirização desde os primórdios de sua inserção no sistema capitalista, qual seja, a de aumentar a produtividade e qualidade dos produtos e serviços ofertados ao consumidor, pela dedicação da empresa a sua atividade principal.
A transferência de atividade-fim da tomadora de serviços não encontra outra motivação que não seja a obtenção de lucro com a exploração agressiva do trabalho humano, em nítida locação de mão-de-obra.
Ora, tal situação afronta os mais comezinhos princípios de Direito do Trabalho, encontrando óbice, no plano internacional, na própria Constituição da Organização Internacional do Trabalho (Declaração de Filadélfia), ao estabelecer que “trabalho não é uma mercadoria”[7].
Além disso, a terceirização ampla e irrestrita das atividades do empregador acarreta inegáveis prejuízos para a sociedade e para o Estado, em decorrência do rebaixamento remuneratório acarretado pela terceirização de serviços.
Tal desnível salarial – demonstrado no dossiê Dieese/CUT, em que se apurou que os trabalhadores terceirizados, em 2010, ganharam 27,1% menos que os empregados contratados diretamente[8] — decorre da própria lógica do sistema, eis que, por meio da terceirização, se introduz um intermediário entre empregado e tomador de serviços, intermediário esse que retira sua fatia de lucro justamente do achatamento dos salários dos terceirizados.
Com efeito, a terceirização, pela lógica mercadológica, somente se revela lucrativa para o empresário se o custo da contratação do trabalhador terceirizado for inferior àquele que teria caso o trabalhador fosse contratado diretamente. Desse modo, a fatia destinada à remuneração desse trabalhador terceirizado terá que ser menor que a seria gasta contratando-o diretamente, para compensar a adoção do sistema. Dessa remuneração, já inferior pelas razões explicitadas, ainda é subtraído o ganho da empresa terceirizada, responsável por colocar a mão-de-obra no mercado.
A se admitir a terceirização de atividades-fim da empresa, esse rebaixamento salarial — próprio da dinâmica mercadológica da terceirização —, se estenderia para um número cada vez maior de trabalhadores, desaquecendo de forma catastrófica o mercado de consumo interno.
Com efeito, os empregados terceirizados também exercem o papel de consumidores dos produtos oferecidos no mercado pelas grandes empresas, retroalimentando, assim, o sistema capitalista. Por conseguinte, a redução dos níveis salariais retira do mercado de consumo grande parte da população, causando estagnação econômica e retração do mercado interno.
Ademais, não se pode deixar de mencionar a própria evasão fiscal decorrente do próprio processo de terceirização. Ao transferir atividades de uma empresa para outra — geralmente com menor capacidade econômica —, a folha de pagamento também se transfere, de modo que os tributos sobre elas incidentes serão menos volumosos, mormente considerando que grande parte das prestadoras de serviços são optantes do Simples.
Com o deslocamento da produção da grande empresa para subcontratadas menores, é inegável que as contribuições vertidas para o Regime de Previdência Social, os impostos decorrentes da exploração da atividade econômica e os recolhimentos fundiários reduzem em substância, até mesmo diante rebaixamento salarial produzidos pela terceirização de serviços.
Desse modo, ainda que a terceirização de serviços não seja um fenômeno propriamente jurídico, mas sim sócio-econômico, cabe ao operador do Direito disciplinar os seus efeitos, a fim de compatibilizar a adoção de semelhante técnica de gestão do trabalho com o ordenamento jurídico pátrio, que concilie o valor social do trabalho e a livre iniciativa, ambos fundamentos da República Federativa do Brasil (artigo 1º, IV, da CRFB/88).
Resta patente, pois, a inconstitucionalidade da Lei 13.429/2017, no que pertine à permissão de terceirização de serviços relacionados à atividade-fim da tomadora, eis que tal situação equipara-se à locação de mão-de-obra, o que viola frontalmente o princípio da dignidade da pessoa humana, bem como o valor social do trabalho.
Autor: Juliana Ferreira de Morais é juíza do Trabalho substituta do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região e mestranda em Direito do Trabalho pela PUC-SP.