Autor: Alberto Mendonça de Melo Filho (*)
1. Introito
No decorrer da última década vem se testemunhando o aumento exacerbado de julgados dos tribunais superiores pátrios (STF e STJ) que, ao pretexto de entregar a pretendida prestação da tutela jurisdicional, vem suprindo as lacunas normativas da lei. Os tribunais superiores provocados, por meio de via recursal, vêm apreciando as demandas e temperando os valores principiológicos ao caso concreto, ainda que haja lacuna ontológica da lei.
Nessa esteira, surge corrente doutrinária que perfaz forte crítica a essa atuação judicial, ao argumento de que o Judiciário (STF e STJ) está transcendendo os limites da sua função típica para atuar como verdadeiro legislador do caso em concreto. Incorrendo, inevitavelmente, numa afronta ao preceito constitucional da separação dos Poderes e se arvorando nas prerrogativas inerentes do Parlamento (Congresso Nacional).
Em via transversa, há corrente doutrinária que enaltece essa atuação dos tribunais superiores pátrios, advogando que o jurisdicionado não pode ficar à mercê da inação da atividade legiferante do Poder Legislativo, que, muitas vezes, num “silêncio eloquente” proposital deixa de cumprir o seu mister. Nesse desdobramento, prestigia-se essa condução processual dos tribunais superiores de incrementarem a composição da lide, entregando a tutela jurisdicional e, assim, promovendo o famigerado “ativismo judicial”. Sobressai, nesse ponto, a força da “teoria do precedente”.
2. Teoria do precedente
Preambularmente, urge conceituar a terminologia jurídica em testilha. Precedente “é a decisão judicial tomada à luz de um caso concreto, cujo núcleo essencial pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos” (Didier Junior, 2013).
Tradicionalmente, o Brasil segue o sistema do civil law, o qual prestigia a preponderância da lei, sem olvidar a reserva de espaço para os precedentes judiciais. Conforme leciona Elpídio Donizetti:
“(…) a diferença é que no Civil Law, de regra, o precedente tem a função de orientar a interpretação da lei, mas não obriga o julgador a adotar o mesmo fundamento da decisão anteriormente proferida e que tenha como pano de fundo situação jurídica semelhante”.
Não obstante as linhas pregressas, o signo do “ativismo judicial” através da força estratificante da teoria do precedente vem propiciando uma guinada no sistema jurídico brasileiro ao aproximá-lo da “teoria do Stare decisis”, leia-se: o sistema da força obrigatória dos precedentes. Assim, o Estado-juiz, ao julgar um caso concreto, deve observar a fonte primária que é a lei, mas deve também atentar para a existência dos precedentes jurisprudenciais sobre a matéria posta em juízo.
O reforço do argumento ora consignado pode ser constatado, exemplificativamente, através da publicação da EC 45/2004, a qual incluiu a dicção do artigo 103-A na Carta Magna, consagrando, assim, a força cogente das súmulas vinculantes como mecanismo de uniformização de decisões repetitivas judiciais em matéria constitucional.
O próprio condão vinculante dos julgados em sede de controle abstrato de constitucionalidade promovido pelo artigo 28, parágrafo único, da Lei 9.868/99 demonstra que há tempo a ordem jurídica consagra a força dos precedentes jurisprudenciais como meio de pacificação social e consolidação do princípio da segurança jurídica ao primar pela uniformização dos dispositivos dos julgados (ratio decidendi).
A previsibilidade das decisões judiciais é elemento justificador da valorização da uniformização da jurisprudência, pois não se pode olvidar que a inconstância de parâmetros mínimos de diretrizes de convencimento sobre determinadas matérias de fundo desencadeia grave insegurança jurídica para os jurisdicionados. Não é concebido que duas ou mais causas de direito tenham julgados díspares, quando inexista peculiaridades que as distingua.
Noutras palavras, “não se pode comparar a busca pela tutela jurisdicional com um jogo de loteria, mas também é preciso compatibilizar a força dos precedentes judiciais e a necessidade de individualização do Direito” (Donizetti, 2016). Desta feita, a sistemática da teoria dos precedentes tem o escopo de evitar a coexistência de decisões conflitantes e/ou contrárias na sua essência ao julgar casos semelhantes.
Importante perfilhar as palavras do ministro Luiz Fux, do STF, ao aduzir que os precedentes que devem ser seguidos pelas instância “a quo” são os solidificados pelos tribunais superiores:
“A jurisprudência, para ter força, precisa ser estável, de forma a não gerar insegurança. Então, a jurisprudência que vai informar todo o sistema jurídico e que vai ter essa posição hierárquica é aquela pacífica, estável, dominante, que está sumulada ou foi decidida num caso com repercussão geral ou é oriunda do incidente de resolução de demandas repetitivas ou de recursos repetitivos, não é a jurisprudência aplicada por membro isolado através de decisões monocráticas. Essa não serve para a finalidade do Novo CPC”.
Assim, nas palavra de Donizetti, constata-se que “a existência de precedente obrigatório pressupõe, a um só tempo, atividade constitutiva (de quem cria a norma) e atividade declaratória, destinada aos julgadores que têm o dever de seguir o precedente”. A linha do raciocínio retro é corroborada pela dicção do preceptivo do novo CPC no artigo 927 ao preconizar a dever de “os juízes e tribunais” observarem as decisões em controle concentrado de constitucionalidade, dos recursos repetitivos, da assunção de competência, das súmulas vinculantes do STF, dos acórdãos em incidente de resolução de demandas repetitivas, acórdãos dos recursos extraordinários e especiais.
Cumpre trazer à baila importante inovação do CPC/2015, qual seja, na esteira da valorização dos precedentes e da resolução de demandas repetitivas, o novo CPC expressamente permitiu o uso da “reclamação” para garantir a autoridade das decisões do STF em sede de recursos extraordinário com repercussão geral ou, até mesmo, as decisões do STJ em sede de recursos especiais repetitivos. Todavia, com o escopo de coibir o uso da “reclamação” como um sucedâneo recursal, o que é fortemente combatido por entendimento uníssono do STF; o artigo 988, parágrafo 5º, inciso II, do CPC, dispõe que só é admissível a reclamação se tiverem sido esgotadas as instâncias ordinárias. Ou seja, se ainda couber qualquer recurso, não caberá a reclamação. Essa linha legal foi corroborada no julgado da Rcl 24.686 ED-AgR/RJ.
Importante consignar que a força da “teoria dos precedentes judiciais” não possui o condão de revogar as leis existentes que se contrapunha ao precedente específico, pois a atividade precípua do Judiciário é interpretar a lei para a amoldar ao caso em concreto, e não funcionar como legislador da casuística colocada em juízo.
3. Distinguishing vs. overruling
Em apertada síntese, pode-se conceituar o distinguishing como sendo a técnica que o julgador se utiliza para averiguar se a demanda posta em julgamento possui semelhança de fundo com a ratio decidendi da decisão paradigma, para concluir pela inaplicabilidade da incidência do precedente jurisprudencial.
A importância dessa técnica de distinção pelo julgador é exatamente garantir a individualização das demandas em juízo, para que assim preserve-se o direito das partes a uma apreciação imparcial e desvinculada de julgamentos pré-moldados que não se coadunam com as particularidades do caso em concreto.
Nessa esteira, compilamos trecho do julgado do STJ:
(…) 5. Assim, necessário se faz a técnica hermenêutica do distinguishing para concluir pela inaplicabilidade do precedente consubstanciado no recurso especial nº 1.159.189/RS, pois os fundamentos fáticos ali destacados, que foram reconhecidos pelo Tribunal a quo, não estão presentes no acórdão ora recorrido. 6. Agravo regimental não provido. (STJ, AARESP 201202262460, MAURO CAMPBELL MARQUES – SEGUNDA TURMA, DJE DATA:13/05/2013).
Importante pontuar que, mesmo na hipótese em que se está diante de um precedente vinculante, o julgador no caso concreto poderá se valer da técnica do distinguished para alcançar a particularidade que promova a individualização do caso em apreço para excepcioná-lo do paradigma do precedente através de decisão fundamentada em homenagem ao ditame do artigo 93, inciso IX, da CF/88 e ao princípio da persuasão racional.
Há de se frisar, ainda, que a nova dinâmica do novo codex processual civil incorpora no seu bojo o ditame de que os tribunais devem primar pela uniformização de sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente, consoante inteligência do artigo 926. Inclusive na dicção do parágrafo único do indigitado comando processual retro, há a previsão para que os tribunais elaborem as suas súmulas persuasivas, dentro das previsões do seu regimento interno, para corporificar o enunciado que retrata o entendimento jurisprudencial dominante.
De forma elogiável, o novo CPC dispõe que os tribunais pátrios deverão observar a redação do artigo 927, o que denota a intenção de se manter um diálogo entre as fontes jurisprudenciais brasileiras no sentido de manter uma relação de congruidade entre as decisões e os precedentes dos tribunais ad quem, como forma de dar cabo aos preceitos da segurança jurídica, na medida em que assegura aos jurisdicionados um visão uniforme de qual o entendimento jurisprudencial dominante sobre o caso em querela, seja quanto às questões do direito material ou processual.
Como dito alhures, a inteligência do preceptivo do artigo 926 do novo CPC estipula que é dever dos tribunais uniformizar sua jurisprudência demonstrando o escopo legal da primor pela coerência e a estabilização do precedente jurisdicional. Dessa forma, depreende-se que a uniformização da jurisprudência é conduta imperativa a ser adotada pelos tribunais pátrios, inclusive seus membros devem suscitar o incidente de uniformização de jurisprudência quando se constatar que há divergências nos julgados de seus órgãos fracionários sobre a mesma questão jurídica.
A força dos precedentes jurisdicionais também foi robustecida na tessitura da “improcedência liminar do pedido”, que tem guarida na previsão do artigo 332 do novo CPC, por esse dispositivo legal, o juiz poderá julgar pela improcedência liminar do pleito, nas causas que dispensem a fase instrutória, e o pedido formulado na demanda não se amolde a tese consolidada no precedente jurisdicional, nas súmulas do STF ou STJ, nos julgamentos dos casos submetidos a causas em recursos repetitivas, nos incidentes de resolução de demandas repetitivas e de assunção de competência.
Nessa senda, a doutrina pátria, respaldada nas teorias norte-americanas, propõe a “técnica de superação dos precedentes judiciais” intitulada de overruling. Por meio do overruling, o precedente é revogado ou superado em razão da modificação dos valores sociais, dos conceitos jurídicos ou em razão de eventual instabilidade superveniente advinda da manutenção de uma diretriz jurisprudencial. Para isso, o órgão judicante irá edificar uma nova posição jurídica para o contexto da demanda em concreto pacificando as incertezas geradas por precedente judicial anterior.
Oportuno registrar que a superação do precedente só pode ser perpetrada pelo próprio órgão judicante prolator da decisão que será derrocada em decisão fundamentada consoante entabulado no artigo 489, parágrafo 1º, inciso VI, do novo pergaminho processual civil, explicitando que a decisão paradigma anterior foi superada. Assim, exemplificativamente, uma decisão em sede de recurso repetitivo num recurso extraordinário só poderá ser alvo de overruling pelo próprio STF.
Urge enaltecer que o legislador atento a eventuais prejuízos decorrentes da superação do precedente pelas cortes superiores judiciais estipulou previsão legal possibilitando a “modulação dos efeitos temporais da alteração do Precedente em prol da preservação do interesse social e da segurança jurídica”, consoante norma esculpida no artigo 927, parágrafo 3º do novo CPC.
Sobre o parágrafo retro, sobressai a necessidade de citar as ponderações de Marinoni:
“A autoridade dos precedentes dos Tribunais Superiores, e a sua consequente importância para a coerência da ordem jurídica e para a estabilidade do Direito, exige que se dê especial atenção à revogação da jurisprudência consolidada destes Tribunais para evitar que o jurisdicionado seja surpreendido por uma surpresa injusta ou tenha violada a confiança justificada que depositou nas decisões do Poder judiciário. Propõem analisar a técnica dos efeitos prospectivos das decisões que revogam precedentes, demonstrando a sua imprescindibilidade para a tutela da segurança jurídica”.
4. Conclusão
Do exposto, constata-se que o preceito do primado da segurança jurídica não pode desembocar numa intelecção que imponha a “fossificação” das decisões judiciais. O Direito, como ciência social, possui o traço marcante do “dinamismo”, já que a interpretação da lei pelo Judiciário e sua justaposição através do julgamento do caso em concreto deve se coadunar com as mudanças axiológicas sociais, econômicas, culturais ou políticas fazendo a composição entre fato, valor e norma, tal como parametrizado pelo emérito Miguel Reale na Teoria Tridimensional do Direito. Assim, a vertente hodierna do ativismo judicial firmada pela teoria do precedente vem se coadunar como mais um mecanismo de pacificação social pelo Judiciário.
Autor: Alberto Mendonça de Melo Filho é analista judiciário do STM e especialista em Processo Civil pela Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul) em parceria com o Instituto Brasileiro de Processualista Civis (IBPC).