Autora: Marina Gadelha (*)
Por meio do Decreto 9.142/2017 — posteriormente revogado (para não dizer aprimorado) pelo Decreto 9.147/2017 —, o presidente Michel Temer extinguiu a Reserva Nacional de cobre e seus associados (Renca), que havia sido criada pelo Decreto 89.404/1984. A publicação do novo decreto, como é sabido, causou enorme movimentação nos meios de comunicação e nas redes sociais. De organismos internacionais, como o WWF Brasil, à modelo Gisele Bündchen, passando — claro — pelos políticos, viram-se incontáveis manifestações contrárias à extinção da reserva; e pouquíssimas — ou quase nenhuma — favoráveis a ela.
Infelizmente, contudo, muitas de tais opiniões são baseadas em conhecimentos superficiais sobre o tema, que ganham tintas ainda mais fortes quando associados ao (louvável) intuito conservacionista.
Para desmistificar alguns desses dogmas, é preciso, em primeiro lugar, saber que a Renca não é uma reserva ambiental.
De fato, em meados de 1980, uma região situada entre o Pará e Amapá comparada à Serra dos Carajás, em razão de seu potencial mineral, passou a despertar o interesse de investidores brasileiros e estrangeiros. Para salvaguardar sua exploração, o governo militar decretou que os trabalhos de pesquisa mineral nessa área “caberão, com exclusividade, à Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM)” e que “as concessões de lavra das jazidas de cobre e minerais a este associados, na área sob reserva, somente serão outorgadas às empresas com que haja a CPRM negociado os resultados dos respectivos trabalhos de pesquisa”.
Assim, grupos privados foram proibidos de explorar minérios na Renca, uma área de quase 47 mil quilômetros quadrados — aproximadamente igual ao estado do Espírito Santo.
O projeto não evoluiu.
Por outro lado, ao longo do tempo, nove espaços protegidos foram sobrepostos ao território da Renca, entre reservas indígenas e unidades de conservação. Além disso, cerca de 5,28% da área foi ocupada por assentamentos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
A Constituição Federal (artigo 231, § 3°) autoriza a exploração mineral em reservas indígenas, mas condiciona essa exploração à aprovação de lei específica — que ainda não existe — e à autorização do Congresso Nacional. Por seu turno, a exploração em assentamentos rurais depende de negociação com os assentados.
No que tange às unidades de conservação, sendo elas de proteção integral — como o são a maioria daquelas inseridas no que foi a Renca —, não é possível falar em exploração mineral em seu território (Lei 9.985/2000). A permissão de exploração mineral no interior de unidades de conservação de uso sustentável depende do que dispuser a respeito o plano de manejo de cada unidade. Ademais, nas reservas extrativistas — espécie do gênero unidade de conservação de uso sustentável —, a proibição descende da própria lei (Lei 9.985/2000, artigo 18, § 6°).
O primeiro decreto que extinguiu a Renca (Decreto 9.142/2017) não extinguiu qualquer dessas proteções, que, como visto, advêm de lei ou da própria Constituição Federal. Contudo, em razão da balbúrdia, o segundo decreto (9.147/2017) explicitou essa informação em seu artigo 8°:
Art. 8° Nas áreas da extinta Renca onde haja sobreposição parcial com unidades de conservação da natureza federais e estaduais ou com terras indígenas demarcadas, ficam mantidos os requisitos e as restrições previstos na legislação relativa à exploração mineral em unidades de conservação da natureza, terras indígenas e faixas de fronteira.
Na prática, a extinção da Renca determinou a possibilidade de exploração mineral — onde a lei permitir — por empresas particulares em um espaço antes entregue à administração pública. É importante ter em mente que se os planos para a Renca tivessem evoluído como então presidente João Figueiredo imaginava, as reservas minerais da Renca estariam sendo exploradas desde 1984.
É dizer: o que a opinião pública vem chamando de “proteção” é apenas o resultado da inoperância estatal, já que a CPRM não fez as pesquisas geológicas na Renca e, por conseguinte, não negociou com os particulares a sua participação na receita advinda da exploração dos minérios encontrados.
De outra banda, são inúmeras as notícias de exploração ilegal de minerais — sobretudo de ouro — dentro da extinta Renca. Esses garimpos, embora pequenos em sua maioria, têm um poder degradante muito alto, pois se utilizam de mercúrio para mais facilmente separar o metal precioso, o que finda por contaminar severamente os cursos d’água.
Para além do passivo ambiental, a exploração mineral ilegal tem o condão de usurpar um bem que pertence à União — e, em ilação, a todos os brasileiros — sem pagar ao Estado a contrapartida prevista constitucionalmente (Constituição Federal, artigo 20, § 1°).
Cumpre, por fim, esclarecer que não se está aqui defendendo uma exploração mineral desenfreada na Amazônia — ou em qualquer outra parte do território brasileiro. Ao revés, a luta de todos deve ser por uma atividade minerária extremamente regulada e fiscalizada, porque é assim que determina, em última leitura, o artigo 225, § 2° da Constituição Federal.
Também não se está defendendo uma mitigação da proteção ambiental na Amazônia — ou, igualmente, em qualquer outro espaço. O que se pretende é evidenciar que a manutenção da Renca não é o instrumento apropriado a essa finalidade. Mesmo porque uma política minerária mais intensiva poderia — caso se mantivesse a Renca — alavancar a exploração de minérios naquela área, que, como adiantado nunca foi proibida.
A proteção da Amazônia passa por um instrumento legal específico para aquele bioma — a exemplo da Lei da Mata Atlântica (Lei 11.428/2006) —, pela criação de mais unidades de conservação, pela aplicação adequada do código florestal, e, acima de tudo, por uma fiscalização ambiental tanto intensiva quanto severa, capaz de identificar e punir exemplarmente todos os seus agressores.
* O texto não reflete a opinião da Comissão Nacional de Direito Ambiental da OAB ou do Conselho Federal da OAB, sendo de inteira responsabilidade da autora. A OAB não deliberou sobre o tema até o momento.
Autora: Marina Gadelha é sócia de Queiroz Cavalcanti Advocacia e presidente da Comissão Nacional de Direito Ambiental da OAB.