Autor: Ravi Peixoto (*)
Um tema que recebeu grande destaque no CPC/2015 foram os precedentes, com diversos textos normativos regulando vários de seus aspectos, inclusive as suas eficácias. Dentre esses subtemas, destaca-se o da modulação de efeitos, a qual possui, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, um caminhar bastante irregular, mesmo após a entrada em vigor do novo CPC, o qual possui expressa autorização para a utilização da técnica no artigo 927, §3º, do CPC: “Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica”.
O objetivo desse texto é tão apenas o de compreender e identificar as principais decisões do STJ relativas à eficácia temporal dos seus precedentes, bem como as possíveis tendências futuras, que parecem tender a alguma abertura para a superação prospectiva.
O STJ e os precedentes que vedam a modulação de efeitos
Em decisão paradigmática de 2007, prevaleceu no STJ a posição de que “Salvo nas hipótesesexcepcionais previstas no artigo 27 da Lei 9.868/99, é incabível ao Judiciário, sob pena de usurpação da atividade legislativa, promover a “modulação temporal” da suas decisões, para o efeito de dar eficácia prospectiva a preceitos normativos reconhecidamente revogados”.
A vedação à utilização da técnica da superação prospectiva foi mantida, com apenas uma aparente modificação da fundamentação para tanto, afirmando-se que “A alteração jurisprudencial, por si só, não ofende os princípiosda segurança jurídica, não sendo o caso de modulação de efeitos porquanto nãohouve declaração de inconstitucionalidade de lei”. No entanto, não há nenhum desenvolvimento para que se demonstrem as razões pelas quais a superação de precedente apenas violaria a segurança jurídica caso houvesse declaração de inconstitucionalidade da lei. Esse entendimento tem sido repetido em algumas ocasiões pelo STJ, sem que haja qualquer desenvolvimento sobre o tema.
Parece possível supor que essa posição jurisprudencial é decorrente da primeira, no sentido da inexistência de autorização legal. Isso porque não há qualquer fundamentação para que se afirme que só seria cabível a modulação quando houvesse declaração de inconstitucionalidade de lei. Note-se que tal posicionamento acabaria por vedar, quase que completamente, a utilização da superação prospectiva devido aos diversos limites ao exercício da jurisdição constitucional pelo STJ.
Em outra situação, entendimento bastante semelhante foi defendido pelos ministros, afirmando-se que “Não fere o princípio da segurança jurídica a aplicaçãoimediata de novo entendimento jurisprudencial, visto não se tratar de alteração normativa”. Nesse caso específico, é importante destacar-se que sequer houve discussão sobre o tema, limitando-se o ministro relator a utilizar-se de precedente anterior em sentido semelhante, no sentido de afirmar não haver violação à segurança jurídica em tal situação.
Há de se perceber que existem decisões do STJ anteriores e mesmo decisões pós-CPC/2015 que continuam a reproduzir acriticamente uma posição jurisprudencial que, por mais que estivesse sujeita à realização de diversas críticas, estava inserida em um determinado contexto normativo, que era coerente com as premissas do tribunal. Esse contexto normativo foi alterado. Se, no período de vigência do CPC/1973, não havia autorização expressa para a superação prospectiva, ela agora existe, constando do artigo 927, §3º, do CPC, a qual, como se verá, já começa a ser utilizada em algumas decisões.
Casos de modulação de efeitos pelo STJ
Mesmo que o STJ aponte a ausência de autorização legislativa (entendimento atualmente contra legem, como referido), a doutrina identifica hipóteses em que houve modulação de efeitos pelo tribunal na superação de precedentes em matéria de direito processual. A primeira situação envolvia a questão do conhecimento do recurso especial não reiterado no prazo recursal, caso tivesse sido interposto antes do julgamento dos embargos de declaração opostos pela parte contrária.
A Corte Especial, em 2007, fixou o entendimento pelo não conhecimento desse recurso, situação que acabou sendo sumulada posteriormente por meio do enunciado 418 da jurisprudência dominante do tribunal. Ocorre que o próprio tribunal realizou uma modulação implícita em caso posterior ao rejeitar a aplicação retroativa do precedente da Corte Especial.
Em outro caso, o STF modificou seu entendimento acerca da contagem do prazo recursal para o Ministério Público, que passou a ser contado a partir da data de entrada do processo na instituição. Ao também modificar o seu entendimento, o STJ modulou os efeitos do precedente para preservar a tempestividade dos recursos que respeitaram a regra anterior antes da mudança de posicionamento.Frise-se que essas duas decisões são anteriores à consolidação do entendimento no STJ de que não seria possível a modulação de efeitos pelo tribunal.
No entanto, mesmo após a consolidação do referido posicionamento pelo tribunal, recentemente, após a entrada em vigor do CPC/2015, começam a surgir posicionamentos divergentes, admitindo a superação prospectiva.
No recurso especial 1.596.978/RJ, foi possível identificar interessante discussão relativa ao tema da modulação de efeitos. Houve requerimento de modulação de efeitos tendo por base uma alteração jurisprudencial ocorrida por meio de um recurso repetitivo julgado em 2010 e que versava sobre o recolhimento de Imposto de Renda sobre a parcela percebida por aqueles servidores que, conquanto tenham completado as exigências de aposentadoria voluntária, optaram por permanecer no serviço público ativo, recebendo o Abono de Permanência de valor igual ao de sua Contribuição Previdenciária, na forma prevista pelo artigo 3º, § 1º da EC 41/2003 e regulamentada pelo artigo 7º da Lei Federal 10.887/2004. A posição do STJ, desde decisão em recurso especial 1.192.556/PE, julgado em 2010, era a de que tais verbas estariam sujeitas a incidência do imposto de renda.
Sobre a modulação de efeitos, o ministro relator Napoleão Nunes Maia Filho defende que, por se tratar de posicionamento que agravaria o encargo tributário do contribuinte, não poderia ter eficácia retroativa, tutelando a sua legítima expectativa de que não teria tal verba tributada. De acordo com o relator, tanto a lei quanto a jurisprudência não deveriam retroagir para prejudicar situações jurídicas consolidadas, por violarem a segurança jurídica, impedindo que as pessoas possam programar, projetar e planejar suas vidas confiando na permanência da eficácia das disposições que as regem no momento em que tomadas as decisões relativas a tais interesses.
Como o STJ, durante certo tempo, tinha posição consolidada no sentido de que tais verbas não seriam tributadas, os contribuintes teriam justa expectativa de que estariam em regular situação fiscal. A nova orientação jurisprudencial apenas poderia alcançar fatos geradores posteriores ao julgamento do repetitivo que superou o precedente anterior, julgado em 25 de agosto de 2010.
O ministro Gurgel de Farias, que foi voto vencido, adotou o posicionamento que, aparentemente, é o consolidado no STJ. Ou seja, o de que: i) apenas nas situações excepcionais do artigo 27, da Lei 9.868/1999 seria possível a modulação temporal das decisões, sobe pena de usurpação da atividade legislativa; ii) A alteração jurisprudencial, por si só, não ofende o princípio da segurança jurídica, não sendo o caso de modulação de efeitos porquanto não houve declaração de inconstitucionalidade de lei.
Analisando o CPC/2015, afirmou o ministro que apenas o órgão que realizar o julgamento representativo da controvérsia poderia analisar os efeitos temporais da sua decisão (artigo 927, §3º), o que não foi feito pela primeira seção, quando do julgamento do recurso repetitivo. Não seria possível à primeira turma alterar a eficácia temporal daquele julgado e, mais ainda a permissão da modulação de efeitos caso a caso, sem que tenha sido discutido no próprio repetitivo fulminaria a própria lógica dos precedentes, que seria a preservação da segurança jurídica, racionalidade, isonomia e da concessão de maior previsibilidade ao sistema. Portanto, não seria possível a uma turma, seis anos depois, modular os efeitos de uma decisão tomada por uma seção em um julgamento de recurso repetitivo.
No recurso especial 1.620.919, a discussão envolvia o tema da prescrição intercorrente e o início do seu prazo. Apontou-se que o STJ, em um primeiro momento, entendia necessário a intimação do exequente para conferir andamento ao processo, o qual teria sido alterado no final de 2015, para entender que seria desnecessária tal intimação, exceto para a demonstração de causas interruptivas ou suspensivas da prescrição.
No entanto, embora concordando, em tese, com o novo entendimento, que inclusive foi consagrado pelo CPC, o relator demonstrou preocupação com a mudança abrupta do posicionamento, que acabaria por violar a necessária previsibilidade da jurisprudência. Por conta disso, e com base no artigo 927, §3º, do CPC, houve a adoção do posicionamento de que “a nova regra sobre prescrição intercorrente deve incidir apenas para as execuções propostas após a entrada em vigor do novo ordenamento e, nos feitos em curso, a partir da suspensão da execução, com base no artigo 921”. Portanto, para o caso concreto em análise, afirmou-se que deveria ser necessária a prévia intimação do exequente para que fosse iniciado o prazo prescricional.
Por mais que se concorde com a modulação de efeitos, há de se apontar uma situação curiosa nesses exemplos de modulações de efeitos realizadas pelo STJ. Não deveria ser possível às turmas a modulação de efeitos de decisão de seções, pela existência de um problema de competência no ponto. Mais ainda, não parece adequado, como forma de tutelar a segurança jurídica, a modulação de uma decisão tomada em 2010 seis anos depois, como foi o caso do tema relativo ao imposto de renda. Para além disso, modulações em processos posteriores àqueles em que realizada a superação, embora admissíveis em tese, não podem ser a regra, pois acabam por minar a calculabilidade dos jurisdicionados, que ficam dependendo da eventualidade da (re)discussão do tema para programarem suas condutas.
Aspectos conclusivos
É evidente a resistência do STJ para a realização da modulação de efeitos. São inúmeras as decisões que a vedam pela justificativa da ausência de autorização legal — fundamento que deixou de existir no CPC/2015 —, mas sem que houvesse alteração expressa do posicionamento do tribunal, inclusive com recentes precedentes no mesmo sentido.
No entanto, e talvez como próprio retrato da variação jurisprudencial do STJ, existem decisões em sentido contrário. Como visto, existem algumas decisões recentes que acolhem a possibilidade da modulação de efeitos, inclusive com a análise do artigo 927, §3º, do CPC/2015.
Trata-se de uma evolução, mas que, no entanto, ainda não pode ser tida como uma nova tendência da posição do STJ, eis que existem decisões mais recentes sobre o tema em sentido contrário. De toda forma, espera-se que a autorização expressa constante do CPC/2015 gere, aos poucos, a alteração dessa posição conservadora e possa haver uma ampla discussão quanto aos limites e as possibilidades da superação prospectiva.
Autor: Ravi Peixoto é advogado e procurador do município de João Pessoa, mestre em Direito pela UFPE e doutorando em Direito Processual pela Uerj.