Autor: Fernando Augusto Chacha de Rezende (*)
Muito debatida é a hipótese autorizativa, ou não, do comportamento, esquivado da realidade fática, do réu em relação ao seu interrogatório e se há, realmente, direito à mentira.
A resposta não poderia ser outra: um rotundo não!
De início, neste curto e sintético arrazoado, é curial lembrar que por mais que sedimentado pelos tribunais superiores[1] a natureza jurídica, preponderantemente, mista do interrogatório (imediatamente como meio de defesa e, secundariamente, como colheita de prova), este é integrante do devido processual legal substancial (due process of law) de órbita, inclusive, constitucional[2].
Sendo assim, e como direito e, inclusive, garantia fundamental, é dotado de diversas características inatas, dentre outras, sua vertente não absoluta, podendo sofrer compatibilização com outros ditames constitucionais[3] (princípio da razoabilidade/ponderação).
É, igualmente, salutar rememorar os institutos que permeiam este ato jurídico seja de acordo com a Constituição Federal ou mesmo em normas supralegais/legais.
Pois bem.
O interrogatório, na sua órbita autodefesa (diverso, assim, da defesa técnica exercida pelo operador do direito habilitado – advogado), possui premissa maior fincada nos seguintes termos na Carta Maior:
“Art. 5 LXIII – o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;”
Não diversas (direito ao silêncio) são as redações dos atos supralegais[4], em especial, do Pacto San José da Costa Rica em seu artigo 8º, 2, “g”[5], e Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos em seu artigo 14, 2, “g”[6].
Em suma, todos consagram o princípio vetor do nemo tenetur se detegere. Noutros termos: direito à vedação de autoincriminação.
Entretanto, se até ai não há qualquer divergência doutrinária ou jurisprudencial (direito ao silêncio – conduta omissiva), outra conclusão não ocorre nas condutas comissivas do réu em seu interrogatório.
Explica-se.
Ora, a conduta atinente ao silêncio do réu em seu interrogatório é perfeitamente delineada com as garantias fundamentais supras e está alinhada com as normas supralegais em que o Estado Brasileiro é signatário.
O problema ocorre no comportamento ativo não condizente com a realidade: mentira!
Assim, se de um lado o réu não é, em hipótese alguma, obrigado à autoincriminar-se ou se declarar culpado (vertidos na conduta silenciosa — nada declarando), pode-se concluir que, a partir de raciocínio lógico calcado na premissa maior silogista, que do não dito (omissão) consequência alguma que o prejudique pode ser determinada pelo órgão julgador nos moldes do parágrafo único[7] do artigo 186 do Código de Processo Penal.
Em suma, o silêncio ou a conduta colaborativa jamais prejudicam o réu (premissa menor).
Entretanto, ação diametralmente oposta e, não prevista/aceita na órbita constitucional, supralegal ou legal, é o engodo, a burla, o embuste do réu.
Na persecução criminal, como não poderia ser diferente até mesmo por ser norma processual geral, a lealdade e boa fé, devem estar intrinsecamente ligadas aos atos das partes.
Alias, muito mais em se tratando de persecução penal que tutela direitos transcendentes e, sobretudo, universais na visão do doutrinador argentino Arturo Rocco[8].
Tanto é assim que a jurisprudência dos tribunais superiores modificou-se, recentemente, para abarcar a hipótese, ainda que na etapa primeira do interrogatório (elementos pessoais do acusado), para caracterizar conduta penal típica daquele que atribui falsa identidade[9] [10].
Do mesmo modo, poderá incorrer na consecução de delito o réu que, durante seu interrogatório, impute crime à terceira pessoa inocente nos moldes do artigo 339[11] do Código Penal (Denunciação Caluniosa – Crime contra a Administração da Justiça).
Destarte, ainda que não se tenha expressamente prevista na legislação pátria o delito de perjúrio, como existente no direito norte americano (privilege against self incrimination), não se pode concluir, com isso, que ileso ficará o réu que, deliberada e comissivamente, objetivar frustrar, retardar ou mesmo malograr o Sistema de Persecução Criminal.
Além das, eventuais, responsabilidades criminais preditas, ainda existe a possibilidade do órgão julgador na primeira fase da dosimetria da pena (circunstâncias judicias — artigo 59 do Código Penal) dentro do princípio da persuasão racional, determinar, negativamente ao réu, a faceta da personalidade.
Ora, se a pena deve ter caráter, eminentemente, ressocializador (vertente dúplice — prevenção geral/especial e repreensão) maior penalidade deve ter aquele que deixa de utilizar-se de instituto legítimo e constitucionalmente previsto da não autoincriminação (silêncio) para, inadvertidamente, obtemperar (em conduta positiva) situações que destoem, por completo, da realidade fática probatória.
Nestes termos, inclusive, prelecionam as doutrinas de Theodomiro Dias Neto[12] e Andrey Borges de Mendonça[13], receptivamente, veja-se:
“assumido posição diversa, no que se refere à pena, ao interpretar a mentira como indício da personalidade do acusado”
“Parece-nos, assim, que se o juiz constatar que o réu mentiu, poderá considerar tal circunstância no momento da pena. Não é que se esteja estimulando a confessar — até porque para isto já há uma circunstância atenuante genérica —, mas apenas negando que ao juiz e ao Poder Judiciário possa se admitir que o réu venha em juízo e, perante um agente do Estado, possa mentir livremente, como se isto fosse algo normal e aceitável, como se entende atualmente”
A propósito, este entendimento já foi objeto de análise pelo Tribunal de Justiça de São Paulo[14][15], a saber:
“Lei n.” 6368/76 – Tráfico de. drogas. Prova que autoriza a condenação — Materialidade fundada em laudo cie exame químico toxicológico que constatou, no tóxico apreendido, substância geradora de dependência química – Autoria demonstrada por seguros depoimentos. Direito ao silêncio Impossibilidade do réu ser prejudicado por se manter silente – Possibilidade de ser valorado o teor do interrogatório contra o réu, inexistindo o direito à mentira. Redução da pena do co-réu Daniel em face de não mais subsistir o aumento de pena do inciso 111 do artigo 18 da Lei n” 6.368/76 — Aplicação da lei mais benéfica (artigo 5″, inciso XL da Constituição Federal e artigo 2″, parágrafo único do Código Penal). Desistência do recurso interposto pela ré Bruna — Acolhimento do ato de disposição do apelo. Recurso não provido, mas diminuída a pena do réu Daniel ex officio. (TJSP; Apelação Criminal 9228927-63.2005.8.26.0000; Relator (a): José Raul Gavião de Almeida; Órgão Julgador: 6ª Câmara de Direito Criminal; Foro de Rio Claro – 2ª. Vara Criminal; Data do Julgamento: N/A; Data de Registro: 20/06/2007)
Não é demais rememorar situação dos anais da Justiça Criminal de serial killer que optou em dizer, ciente de sua mentira, o local em que enterrava suas vítimas e a forma de consecução dos delitos ocasionando, com isso, acionamento de aparato policial, esforço nas investigações e direcionamento processual a campo absolutamente infrutífero, ocasionando, inclusive, perda da duração razoável do processo e gasto público com o deslocamento de equipes policiais, retardando, com isso a resposta Estatal.
Por isso, não se consegui extrair das premissas constitucionais, supralegais, ou legais, qualquer permissivo, explícito ou implícito, ao réu que lhe respalde à mentira.
Repita-se, situação outra é o nemo tenetur se detegere advindo de seu silêncio.
Conclui-se, portanto, que sua vontade de manifestar-se contrariamente ao conjunto probatório (mentindo) pode, inclusive, não só ser tipificada penalmente nas hipóteses antes mencionadas como, igualmente, acarretar-lhe consequências penais indesejadas: consideração de personalidade negativa na primeira fase da dosimetria da pena nos termos dos artigos 68 combinado com 59, ambos, do Código Penal.
Autor: Fernando Augusto Chacha de Rezende é juiz de Direito no Tribunal de Justiça de Goiás. Especialista em Direito Tributário pelo IBET e em Direito Público e das Relações Sociais pela UCDB.