Autor: Alexandre Sankievicz (*)
Quando promulgada a Carta Federal em 1988, as medidas cautelares previstas no Código de Processo Penal eram pouco numerosas: restringiam-se à possibilidade de prisão, arresto e sequestro. Dentre essas, a única que poderia implicar alguma restrição importante ao exercício da atividade parlamentar era, de fato, a prisão.
Considerado o quadro à época, não precisou o constituinte originário se preocupar com eventuais medidas diversas da prisão que também pudessem vir a implicar restrição ao desempenho da função do congressista e à independência do Parlamento.
A edição da Lei 12.403, de 2011, alterou radicalmente o contexto normativo, aumentando expressivamente o número de medidas cautelares diversas da prisão que podem ser aplicadas. Dentre as novas medidas, algumas podem efetivamente causar restrição ao exercício da função parlamentar, tal como a suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais (CPP, artigo 319, inciso VI).
A nova situação tem sido fonte de frequentes tensões entre os Poderes Legislativo e Judiciário brasileiros. De um lado, não está expressamente escrito em nenhum lugar da Carta da República que a imunidade formal do congressista abrange a proteção contra o afastamento do cargo. De outro, desde a sua criação na Inglaterra, as imunidades parlamentares têm a função de assegurar ao membro do Poder Legislativo proteção contra eventuais abusos e pressões praticados pelos demais Poderes, o que implica garantir a irresponsabilidade por suas palavras e opiniões bem como assegurar-lhe a respectiva participação nas reuniões e deliberações da correspondente Casa Legislativa.
É verdade, a suspensão do cargo, a proibição de acesso a determinados lugares e o recolhimento noturno são medidas diversas da prisão, como expressamente revelado no Código de Processo Penal, e não está previsto no artigo 53, parágrafo 2°, da Carta da República que a Casa respectiva deve deliberar sobre a aplicação dessas cautelares ao membro do Poder Legislativo. No entanto, também é verdade que essas medidas se inserem dentro daquelas capazes de alterar quóruns de deliberações, diminuir a representatividade de partidos no Congresso, modificar forças políticas, reduzir a representação de um estado da federação e afetar a independência e a autonomia do Poder Legislativo. Igualmente, tais medidas afetam o desempenho da atividade parlamentar, pois restringem a participação do congressista em eventos, encontros e reuniões regulares, ainda que ocorram fora da sede do Poder Legislativo.
A solução, portanto, passa pela mutação constitucional do artigo 53, parágrafo 2°, da Constituição Federal, no sentido de que a respectiva Casa Legislativa possa deliberar sobre a medida cautelar diversa da prisão sempre que a determinação vier a causar impacto direto ao exercício da atividade parlamentar. A exemplo, uma ordem relacionada à entrega do passaporte pelo congressista não demandaria exame pela Casa respectiva, pois não implicaria restrição a sua participação em reuniões e deliberações regulares. Não obstante, uma determinação de afastamento do cargo ou outra que venha a restringir seu horário de circulação ou acesso a determinados locais certamente seriam motivo para deliberação.
Imunidades parlamentares são prerrogativas de natureza essencialmente instrumental. São criadas para a proteção do Poder Legislativo, e não em benefício de um parlamentar específico. Constituem garantias funcionais e, como tais, devem ser interpretadas sempre tendo em vista o que é necessário e adequado para o livre desenvolvimento da atividade dos membros do Poder Legislativo.
Revelando-se como exceções ao princípio republicado de que todos são iguais perante a lei, não devem ser interpretadas de forma ampliada, e sim restrita. Assim, se não há previsão na Carta da República de que o membro do Poder Legislativo não pode ser afastado do cargo, não devemos interpretar o texto de maneira ampla para incluir na Constituição uma proibição que não existe.
Em atenção ao princípio republicano, aliás, diversos países aplicam o instituto da imunidade formal de maneira muito mais restrita que o Brasil. Nos Estados Unidos, por exemplo, o membro do Poder Legislativo somente não poderá ser preso se o crime do qual for acusado tiver alguma relação com o exercício da atividade parlamentar. Em um caso de homicídio, por outro lado, poderá ser processado, preso e julgado como qualquer pessoa comum e pelo rito ordinário. Países europeus, como França e Alemanha, seguem a mesma linha dos EUA.
A questão, desse modo, não está na possibilidade de o Poder Judiciário aplicar ou não medidas cautelares a parlamentares, mas qual o procedimento a ser seguido. A possibilidade de aplicação é clara. No entanto, se o texto originário da Constituição previu a deliberação do Parlamento na hipótese de prisão, em época na qual essa era a única medida apta a causar impacto à atuação do congressista, não se pode impedir a deliberação da respectiva Casa quando uma medida cautelar diversa da prisão, ainda que menos intensa, possa produzir efeitos semelhantes.
Se a medida cautelar modifica quóruns deliberativos, muda a composição das forças políticas dentro da Câmara ou do Senado, diminui a representação de um estado da federação ou impede a livre circulação do membro do Poder Legislativo, restringindo o acesso a reuniões, cabe à respectiva Casa deliberar sobre o tema, ainda que não seja prisão, pois o procedimento se insere dentro do escopo e das razões pelas quais as próprias imunidades parlamentares foram criadas há séculos.
Autor: Alexandre Sankievicz é consultor legislativo na Câmara dos Deputados. Foi assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal.