Verdade real tem servido como uma espécie de curinga no jogo processual

Autor: Eduardo Samoel Fonseca (*)

 

Nenhuma relação jurídica se estabelece para que, ao final, o juiz diga sua opinião moral e pessoal acerca do conflito que lhe foi apresentado. O que se espera, em verdade, é que o juiz — imbuído da imparcialidade — aprecie a prova produzida pelas partes ao longo da marcha processual, com estrita observância à ampla defesa, ao contraditório e à paridade de armas, de modo a tornar possível e válida (legal) a construção da decisão judicial (sentença). A sua atuação, portanto, não encontra assento numa livre possibilidade de escolhas, mas sim na intangibilidade dos direitos fundamentais, esse, aliás, é o standard preconizado pelo constituinte originário.

Entretanto, nem mesmo esse novo paradigma — notadamente marcado pela exaltação de valores democráticos — foi capaz de expurgar de uma vez por todas da cena jurídica um ranço próprio do CPP de 1941: o juiz inquisidor.

De nítida inspiração do fascismo italiano, a lei processual penal prevê, mesmo após sucessivas alterações legislativas, a possibilidade de o juiz, de ofício, “determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante” (artigo 156, II, do CPP). Em outras palavras, o magistrado tem o poder de ordenar a produção de provas para sanar dúvidas, permitindo, assim, atingir a verdade de um fato criminoso. Nesse prisma, inúmeros estudiosos do direito adotam a busca da verdade real como um motor do processo, como se fosse uma atividade fim do magistrado, de modo a reduzir as incertezas e atingir a realidade fática havida. Comunga desse modo de pensar Mirabete (2005, p. 284):

Essa possibilidade de o juiz, de ofício, perquirir sobre a verdade reduz consideravelmente o campo das incertezas no processo penal e facilita a busca da verdade real. O processo penal, ao contrário do civil, não transige com essa busca da verdade real. O juiz pode assim determinar, à revelia das partes, a reprodução de provas e colher as que sejam úteis à instrução.

É incompatível, todavia, esse tipo de raciocínio após a promulgação da Carta Política de 1988, pois ela retira do juiz a figura de ator central do palco processual, ajustando-o ao modelo constitucional vigente. Ou seja, a tarefa do magistrado é assegurar que as partes — acusação e defesa — possam alegar e produzir as provas pertinentes à comprovação do fato judicializado.

Apesar desse deslocamento, o papel do juiz não pode ser tido como meramente secundário. Ao contrário, ganha contornos de relevância na medida em que tem ele o dever de zelar pela garantia dos direitos fundamentais. Ferrajoli (2004, p. 27) assim define a tarefa do juiz no processo penal democráctico:

En esta sujeción del juez a la Constitución, y, en consecuencia, en su papel de garante de los derechos fundamentales constitucionalmente establecidos, está el principal fundamento actual de la legitimación de la jurisdicción y de la independencia del poder judicial de los demás poderes, legislativo y ejecutivo, aunque sean – o precisamente porque son – poderes de mayoría. (…) En consecuencia, el fundamento de la legitimación del poder judicial y de su independencia no es otra cosa que el valor de igualdad como igualdad en droits: puesto que los derechos fundamentales son de cada uno y de todos, su garantía exige un juez imparcial e independiente, sustraído a cualquier vínculo con los poderes de mayoría y en condiciones de censurar, en su caso, como inválidos o como ilícitos, los actos a través de los cuales aquéllos se ejercen. Este es el sentido de la frase «¡Hay jueces en Berlín! 

Sendo a intangibilidade dos direitos fundamentais o elemento legitimador do agir — o que Ferrajoli denomina de democracia substancial —, o juiz não encontra nenhuma limitação fundada na vontade da maioria (política), seja para absolver ou para condenar o réu quando assim indicar a prova produzida pelas partes.

Reformulada a atividade judicial, parece-nos incompatível a figura do juiz inquisidor. A uma, porque é impossível perseguir incessantemente e a qualquer custo a busca da verdade real — pasme-se: acreditando piamente ser possível restaurar fato tido como criminoso havido no passado — e, ao mesmo tempo, preservar direitos fundamentais. A duas, por ser impossível exigir a necessária imparcialidade do juiz que, em caso de dúvidas, pode buscar saná-la sempre. Qual juiz duvidará da própria realidade (re)construída através da prova que ele mesmo tenha ordenado? Não existe o terceiro imparcial para declarar a nulidade da prova obtida mediante violação de direitos. São, por assim dizer, fins totalmente antagônicos. Um aniquila a existência do outro.

A não observância dos preceitos constitucionais dá espaço para a criação de algo completamente oposto à figura do juiz garantidor: o protagonista. Sob a batuta da busca da verdade real, o protagonista ordena diligências, inicia a inquirição de testemunhas, tudo a solapar eventuais dúvidas de sua consciência. Sim, proferir a sentença é quase que um ato divino, na medida em que se projeta e reconstrói, no presente (ato da sentença), fato pretérito. Daí a severa, porém necessária crítica de Streck (2016):

Filósofos riem dos juristas quando estes falam da verdade real. Nós, os juristas, não nos damos o devido respeito. Convivemos com livros simplificadores, mastigadinhos, que conformam um novo paradigma: a nesciontologia. Há livros de processo penal que dizem que o juiz, a partir de sua consciência, busca a verdade real (sic). Genial, não? Prêmio Nobel. Bingo. Como explicar essa mixagem que vai do nada ao lugar nenhum? Vivemos uma tempestade perfeita.

Simples incursão aos registros históricos e jurídicos dos tribunais do país é possível evidenciar inúmeros casos de protagonismo judicial, o que representa a usurpação de atribuições num sistema jurídico que exige imparcialidade e demanda sujeitos distintos para cada uma das funções: acusado, acusador e juiz. Sem pretensão de esgotar o exame jurisprudencial da matéria — até porque esse não é objetivo do presente estudo —, mas apenas para ilustrar os argumentos até aqui esposados, vale a pena transcrever trecho de acórdão lavrado pelo Superior Tribunal de Justiça (cuja missão é conferir uniformidade à interpretação da legislação federal) acerca da atuação do juiz protagonista:

Embora o juiz seja um órgão do Estado que deve atuar com imparcialidade, acima dos interesses das partes, o certo é que o próprio ordenamento jurídico vigente permite que, na busca da verdade real, ordene a produção de provas necessárias para a formação do seu livre convencimento, sem que tal procedimento implique qualquer ilegalidade. Nesse sentido é o inciso II do artigo 156 do Código de Processo Penal, que faculta ao magistrado, de ofício, ‘determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante’. Assim, a determinação de realização de prova pericial de ofício pelo togado singular, ao contrário do que sustentado na inicial do writ, não caracterizou ofensa ao princípio acusatório, pois conquanto a mencionada prova tenha sido utilizada para corroborar a tese da acusação, foi considerada indispensável pelo Juízo para analisar o mérito da causa, estando a atuação jurisdicional, no caso em apreço, em consonância com as regras constitucionais e processuais penais pertinentes.

A premissa invocada pelo julgado não nega o conhecimento da consagração dos direitos fundamentais, como o devido processo legal (artigo 5º, LIV, da CF), a ponto de afirmar que o magistrado deve atuar imbuído da indispensável imparcialidade. Todavia, entende que a norma infraconstitucional — em sentido diametralmente oposto ao do paradigma constitucional, numa espécie de premissa menor — ganha contornos especiais, de sorte a permitir um afrouxamento do mandamento constitucional, tudo a possibilitar que o juiz alcance a verdade. É evidente a obsessão pela verdade. E é justamente em nome dela que o juiz passa — ou ao menos assim acredita — a ter autorização para produzir a prova e solapar eventuais dúvidas, mesmo que “a mencionada prova tenha sido utilizada para corroborar a tese da acusação”.

Ainda nessa linha de racionalidade (i)lógica, se ao juiz é facultado perseguir a prova sempre que existir dúvida acerca de um ponto relevante — sabe-se lá o que isso pode representar dentro da subjetividade do julgador, que diz o direito de acordo com a sua consciência —, como fica a aplicação do artigo 386, VI, do CPP, o qual estabelece que o “juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça: (…) não existir prova suficiente para a condenação”?

A resposta é: não fica! Pois, em razão da orientação pela busca da verdade real, e na esteira do que já se decidiu, “o juiz possui poderes de iniciativa probatória, sem que isso importe violação ao dever de imparcialidade”, já que “as regras atinentes ao ônus da prova devem ser aplicadas somente quando inexistirem caminhos instrutórios viáveis”.

Observe-se que o julgado acima não só reafirma a possibilidade de o juiz produzir a prova (já que é ele o próprio destinatário dela), como relega o instituto do ônus da prova a uma categoria secundária, a qual deve ser invocada somente quando a atividade instrutória não for viável. Sendo assim, qual a função da acusação e da defesa no redesenho constitucional pós 1988? Essa, aliás, tem sido a grande cruzada travada por uma pequena — porém muito bem qualificada — parcela da doutrina (Streck, Lopes Jr., Rosa, dentre outros), a qual luta para superar as influências do sistema inquisitório tão predominante nos dias atuais.

Por outro lado — e ainda que com muita resistência —, percebe-se a luta pela conformação, em alguns casos, do sistema acusatório. Confira-se, a título de exemplo, trecho do seguinte acórdão:

É acusatório, ou condenatório, o princípio informador do nosso processo penal, daí, então, ser vedado ao juiz o poder de investigação. Cabe à acusação a prova da culpabilidade do réu. Incumbe ao juiz, é verdade, dirigir o processo, competindo-lhe assegurar às partes igualdade de tratamento, não lhe sendo lícito, também é verdade, substituir a acusação. Permitido lhe é, isto sim, auxiliar a defesa, tal o eterno princípio da presunção de inocência: “ninguém será considerado culpado…” Pode o juiz ouvir outras testemunhas (Cód. de Pr. Penal, artigo 209), porém não o pode fazendo as vezes da acusação, substituindo-a, em caso, como este, em que não havia testemunhas a serem inquiridas, porque não havia testemunhas arroladas pelo Ministério Público (tampouco pela defesa.

É exatamente esse o ponto nevrálgico. O juiz não pode atuar como assistente da acusação, suprimindo eventuais inércias havidas, pois o ônus da prova é encargo da acusação, eventual dúvida deve militar sempre em favor do réu.

Assim, a busca da verdade real tem servido como uma espécie de curinga no jogo processual. É a carta que autoriza o juiz a deixar de ser juiz (terceiro imparcial) mesmo que por alguns instantes, para exercer a iniciativa probatória e, ao final, sentenciar. Não há o jogo processual como propõe Rosa, nem o palco processual de Scarance. É, por assim dizer, o jogo das cartas marcadas.

O devido processo penal rezinga por atuação de um juiz imparcial e “se o juiz não consegue suspender seus pré-juízos, ele não pode (e não deve) ser juiz. Ele pode odiar ou amar algo. Mas na hora da decisão isto deve ficar suspenso (uma epoché). Isso se chama de responsabilidade política. Democracia é isso. Caso contrário, meus direitos dependerão da boa vontade do juiz. E, repito a frase (que não é minha, é do Agostinho Ramalho): Deus me livre da bondade dos bons”.

Daí porque o processo penal não pode ser diminuído a um mero instrumento legitimador do exercício do ius puniendi, como perdurou ao longo de séculos. Tem ele, em sentido oposto, o papel de limitar a atuação do Estado, evitando abusos, corrigindo excessos e preservando direitos. Para Martins (2013, p. 100), que vê o processo penal enquanto defraudador da expectativa de sangue da sociedade, “para ser devido e legal, tem [ele, o processo] todo o interesse em desligar a sua função dos atuais quadros de expectativas. Será essa uma das suas maiores glórias: pedirem-lhe sangue e ele oferecer contraditório”.

No filme italiano Rosso Como il Cielo, um garoto de apenas dez anos, ao tentar alcançar uma espingarda que ficava no alto da parede da cozinha, desequilibra-se do banco, cai juntamente com a arma — que dispara de forma acidental. Em razão da pólvora, Mirco perde quase que totalmente a visão, sendo desafiado pelo destino a mudar radicalmente seu modo de vida.

Assim como Mirco, temos um grande desafio pela frente: que é justamente mudar nossa forma de ver as coisas. A diferença é que Mirco foi vítima de uma fatalidade, mas mesmo assim não se furtou da realidade, revelando seu notável talento para ouvir e reproduzir sons; já nós podemos enfrentar o desafio do processo penal de viés constitucional, respeitando as regras do jogo — que pressupõe tratar de forma igualitária os atores da cena processual, sem vantagens, para que se estabeleça a boa dialética na construção da decisão judicial (verdade processual) ou seguirmos incorrendo numa eterna cegueira, que também pode ser taxada de bondade (dos bons), ignorância, negligência, vingança ou satisfação pessoal do julgador ou de toda sociedade, mas não poderá jamais levar o nome de Processo Penal Democrático.

 

 

 

 

Autor: Eduardo Samoel Fonseca é advogado, especialista em Ciências Criminais pela PUC Minas e em Direito Penal pela Universidade de Salamanca – Espanha. É presidente da Comissão de Direito Penal e Processo Penal da OAB-SP – Subseção Penha de França.


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