Autora: Maíra Beauchamp Salomi (*)
Publicada no dia 13 de novembro, a Lei 13.506 inseriu uma série de mudanças ao processo administrativo sancionador na esfera de atuação do Banco Central e da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Muito embora em essência não fosse um diploma penal, introduziu modificações substanciais na parte criminal da Lei de Mercado de Capitais, assim como na Lei de Crimes Financeiros.
Dentre as alterações promovidas, que passaram a valer no dia de sua publicação, criou-se novo tipo penal ao inserir o §1º no artigo 27-D da Lei 6.385/76, criminalizando a conduta daquele que repassa informação sigilosa relativa a fato relevante a que tenha tido acesso em razão de cargo ou posição que ocupe em emissor de valores mobiliários ou em razão de relação comercial, profissional ou de confiança com o emissor.
Ao pretender tornar típica a conduta do indivíduo que é responsável por fornecer as informações àquele que pratica o crime de insider trading — prevendo, inclusive que ele incorrerá nas mesmas penas destinadas ao trader — o legislador acabou por criminalizar ações absolutamente lícitas de profissionais cujas atividades cotidianas necessariamente envolvem o repasse de informações sigilosas relativas a fatos relevantes diariamente.
Isto porque, da maneira como descrito, o novo tipo penal revela-se demasiadamente aberto. Potencialmente pode englobar, por exemplo, o repasse de informações que ocorre durante processo de auditoria destinado a operação de investimento ou então a transmissão de informações entre executivos de companhias, advogados e assessores durante a negociação de reestruturação societária ou compra e venda de uma empresa.
Ainda que o §1º do artigo 27-D seja considerado norma penal em branco — isto é, norma de dispositivo com sanção penal determinada mas com a definição legal do crime incompleta, dependendo de complementação de outras normas jurídicas —, e exija o repasse de informação sigilosa referente a fato relevante, tal qual definido pela Instrução Normativa CVM 358/02, práticas legítimas acabam por se subsumir ao tipo penal.
Não é à toa que executivos de bancos de investimento, gestoras e emissores de valores mobiliários em geral estão preocupados, assim como advogados e assessores financeiros atuantes no mercado de fusões e aquisições. Faz parte do seu dia-a-dia receber informações sigilosas acerca de transações que podem vir a ser consideradas fatos relevantes. E repassá-las é tarefa frequente — e necessária — para esses operadores, seja internamente, a membros de suas equipes, seja externamente, a outros profissionais envolvidos na transação. E invariavelmente esses indivíduos ou bem se encontram na equipe do emissor de valores mobiliários ou possuem com ele relação comercial, profissional ou de confiança.
Infelizmente o legislador não restringiu a incidência do dispositivo legal ao repasse de informações para fins ilícitos, isto é, com a finalidade específica de serem utilizadas por terceiro para propiciar vantagem indevida, para si ou para outrem. De igual modo, não se preocupou em condicionar a criminalização da transmissão dos dados sigilosos à efetiva ocorrência de negociação de valores mobiliários. Assim, o mero repasse das informações, por si só, já pode caracterizar o crime. Ou seja, em termos práticos estamos partindo do conceito de insider trading consagrado mundialmente para adotar um conceito de insider informing.
Essa extensão é contrária aos rumos tomados nos Estados Unidos da América, precursores em termos de persecução penal aos insider traders. No caso pioneiro Chiarella v. United States (1980) estabeleceu-se a necessidade de existência de um dever fiduciário do agente perante o emissor de valores mobiliários para a caracterização do crime. Mais recentemente, no caso Newman and Chasson (2014) consolidou-se entendimento no sentido de que a responsabilização penal daquele que transmitiu a informação somente ocorre se comprovada a existência de uma contrapartida em seu favor e se aquele que a recebeu soubesse, ou devesse saber, que o repasse dos dados se deu em violação a dever fiduciário.
Considerando a realidade posta para o sistema jurídico brasileiro, independente da adequação da redação legislativa, é importante que se faça uma leitura sistêmica do novo dispositivo, no intuito de preservar as condutas lícitas que eventualmente se enquadrem ao tipo penal e evitar desequilíbrio na aplicação da lei. O próprio Código Penal prevê como causa excludente da ilicitude o chamado exercício regular de direito, preceituando que não há crime quando o agente pratica o fato nessa situação. É o reconhecimento pela ordem jurídica de que determinadas condutas são autorizadas quando praticadas no seu interesse. Seria de fato uma contradição se o exercício de um direito, assim considerado por lei, pela boa-fé ou pelos costumes, fosse considerado ilícito.
É essa a hipótese dos profissionais que corriqueiramente, para a realização de seu ofício, devem repassar informações sigilosas referentes a fatos relevantes. Não pretendem praticar qualquer ilícito ou ganhar vantagem com essa transmissão.
Em vista dessas ponderações, ainda que a redação aberta do tipo penal criado permita ampla interpretação, recomenda-se extrema cautela por parte dos operadores do direito a fim de se evitar uma desmedida caça às bruxas contra profissionais que nada mais fazem que exercer o seu mister, absolutamente dentro da lei.
Autora: Maíra Beauchamp Salomi é advogada criminalista.