Autores: Leonardo Schmitt de Bem e João Paulo Martinelli (*)
Aos membros do Ministério Público sempre causou perplexidade abrir o Código de Trânsito e constatar que a sanção mínima cominada ao crime de homicídio culposo era reduzida se comparada àquela prevista ao homicídio doloso tipificado pelo Código Penal. Essa realidade colaborou — e ainda colabora — à conversão (quase) automática da natureza do perigo conscientemente criado no trânsito que, regra geral, é culposa.
O efeito dessa insatisfação ministerial é claramente percebido na elasticidade que o instituto do dolo eventual perfaz, é dizer, mesmo as hipóteses de consumo moderado de álcool pelos motoristas — o que ensejaria uma responsabilidade pelo crime de trânsito — engrossam as estatísticas da moldura dolosa. Logo, o critério matemático da quantidade de pena (mínima) substitui mecanicamente as orientações teóricas que procuram traçar os limites entre culpa consciente e dolo eventual. Todos os esforços teóricos de buscar a distinção entre dolo e culpa e suas modalidades são ignorados e substituídos por métodos simplórios, à moda brasileira, praticamente reconhecendo a desnecessidade de uma teoria do delito.
Vinte anos depois da promulgação da Lei 9.503/1997, ao menos no contexto de homicídios culposos provocados por condutores sob a influência de álcool ou de outra substância psicoativa que cause dependência, a pena mínima da infração foi elevada para cinco anos, aproximando-se muito da margem mínima do homicídio doloso. O curioso é que a insatisfação permanece, mas agora sob outro foco, é dizer, já se ventilou que a pena mínima cominada à infração do artigo 121 do Código Penal é demasiado baixa.
Se o coro do discurso da impunidade voltar à tona, não tardará para o legislador propor o aumento da pena mínima do homicídio doloso. Quando o efeito cascata ocorrer, a “discussão” sobre a distinção entre culpa consciente e dolo eventual será reavivada, mas, infelizmente, resgatando-se o critério matemático, como se o direito fosse uma ciência exata. Isto é, novamente se reputará diminuta a pena mínima (agora do parágrafo 3º do artigo 302) e, por isso, as denúncias contemplarão a prática do homicídio doloso considerando sua nova (e expressiva) pena mínima.
Essa “técnica” acusatória sempre gerou insatisfação nos advogados militantes na seara criminal, pois o combate teórico poderia ser perdido com números. A nova previsão legal, porém, parece ter afastado esse descontentamento. Isso porque há tese defensiva de que a regra geral passou a ser regra absoluta, a ponto de não ser mais possível configurar o dolo eventual nos casos de mortes provocadas por condutores embriagados.
Em termos distintos, já que a influência do álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência passou a constituir elementar do tipo legal, e, sendo um tipo culposo, a responsabilização penal em caso de morte seria única e, nesse sentido, pelo crime qualificado de homicídio culposo de trânsito. A vingar a tese, estar-se-ia diante de uma novatio legis in mellius, que comportaria revisão das condenações pretéritas por dolo eventual e emendas de inúmeras denúncias já ofertadas.
Essa interpretação poderá ser aceita por qualquer julgador. Esclarecemos, aliás, que não é a primeira vez que ela é feita. Quando uma comissão de juristas instituída pelo Senado apresentou o relatório final do anteprojeto do Novo Código Penal, ventilou-se que a causação de morte na condução de veículo automotor sob a influência de álcool caracterizava hipótese de culpa temerária, consagrando-se, assim, um tipo de culpa substancialmente elevado (gravíssima), de sorte que se pretendia sancionar os condutores com pena de prisão de 4 a 8 anos.
À época, os proponentes mantiveram a regra geral de que os crimes de trânsito são culposos e o contexto de homicídio no trânsito em razão da influência de álcool não mais comportaria exceção. Havia gritante impropriedade, porque não era crível sustentar o abandono do instituto do dolo eventual, mormente em situações de manifesto desprezo pela vida das demais pessoas da parte dos condutores de veículos automotores. Vingando a proposta da comissão, crimes claramente dolosos, em determinados contextos, seriam convertidos em crimes culposos. Atenta a essa consequência, uma comissão temporária de estudo da reforma do Código Penal suprimiu o elenco casuístico que constava do parágrafo 6º do artigo 121 do PLS 236/2012 e que incluía a hipótese anotada.
Por evidente, esta exclusão não induziu nenhum raciocínio de que o homicídio se transmudou automaticamente em doloso, porém afastou a presunção absoluta de que os condutores revelavam uma atitude censurável somente do ponto de vista da leviandade, isto é, como “se não tivessem refletido suficientemente” e, assim, incidiam em descuido perante a norma de proteção. Em síntese, a comissão temporária evitou que a figura do dolo eventual fosse afastada precipitadamente da seara do trânsito, como se houvesse uma categoria de crimes imunes à modalidade dolosa.
O mesmo deverá ocorrer para combater a tese que assimila a hipótese de morte causada por agente que conduz veículo automotor sob a influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência como caso automático a ser sancionado pelo parágrafo 3º do artigo 302 da Lei de Trânsito. Já é impertinente reavivar a culpa temerária para fulminar anos de estudos que, inclusive nas hipóteses de embriaguez ao volante, buscaram traçar a distinção entre culpa consciente e dolo eventual, porém, é ainda mais descabido sustentar a exclusão legal do dolo eventual no contexto retratado.
Não é incorreto sustentar que a nova regra fortalece a frente jurisprudencial que reputa culposo o perigo conscientemente criado pelo agente que conduz sob a influência de álcool, mas é inexato defender que a culpa será a única forma de responsabilização do agente em casos de acidentes fatais. Por isso, recebe-se com cautela decisão proferida pelo STJ de que a embriaguez, por si só, não caracteriza dolo eventual. Para nós, a depender da quantidade de bebida alcoólica que é ingerida pelo agente, independentemente de outra particularidade, não existiria óbice para caracterização do dolo eventual.
Embora a intenção não seja matematizar o Direito Penal de trânsito, por evidente as oscilações etílicas em cada condutor podem traduzir situações concretas indicadoras de condutas distintas e, portanto, passíveis de reprovações plurais. Claro que a exigência de qualquer elemento adicional poderá reforçar a existência de dolo de homicídio, contudo a ausência desse elemento não pode levar, automaticamente, à exclusão do dolo. Reprovar de forma idêntica quem consome uma quantidade moderada de álcool (uma dose) e em seguida conduz um veículo e outro condutor que fez preteritamente consumo abusivo de bebida alcoólica (embriaga-se por completo) é ignorar completamente a razoabilidade.
Em síntese, os homicídios verificados no trânsito não podem ser classificados de forma automática como dolosos ou culposos, qualificados ou não. Apenas a partir de uma análise objetiva é possível obter a melhor categorização. O ideal, inclusive, seria seguir os postulados de alguma teoria cognitiva. Mesmo assim, nada obsta que a decisão judicial desagrade uma das partes. É por isso que a aplicação da culpa consciente, ou, então, do dolo eventual, revela-se um dos problemas penais mais tormentosos.
Para não agravar a busca por uma solução, é indispensável se afastar do universo psíquico do motorista, ou seja, deve-se retirar do condutor a competência de definição de que modo atuou no caso concreto. Como ele raramente confirmará a aceitação prévia do resultado fatal, não há sentido livrá-lo de possível responsabilização dolosa concedendo exclusiva atenção à ausência de seu consentimento. Uma conclusão nesse sentido estaria respaldada em simples presunção. Esse é o efeito de se adotar uma teoria volitiva visando a diferenciação das duas figuras. Esse foi o caminho seguido no julgado do STJ.
Para fugir do natural subjetivismo, deve-se rever o reinado da teoria volitiva para destacar o primado de teoria cognitiva. Com efeito, o principal elemento do dolo passará a ser o conhecimento do agente, e não mais sua vontade psicológica. A partir desta guinada hermenêutica, é dever identificar os elementos sobre os quais a consciência do motorista precisa incidir para que sua conduta seja reprovada como dolosa.
O principal elemento, sem dúvida, diz respeito à quantidade de bebida alcoólica ingerida previamente à condução. Embora não haja a definição legal de percentual único que, se ultrapassado, influencie seriamente a condução do veículo automotor, o condutor sabe que quanto maior for o consumo etílico, independentemente de suas características pessoais, maior será a qualidade do risco conscientemente criado ao conduzir. E a qualidade do risco criado deve se sobrepor à suposta indiferença ou confiança, pois permite ao intérprete avaliar melhor o que passa na cabeça do agente para concluir se houve dolo eventual ou culpa consciente.
Nessa linha, seja porque há uma representação relativamente grande de o evento fatal ocorrer, seja porque o perigo criado representa, em si, método idôneo para provocar uma morte, torna-se indiferente analisar a confiança do motorista na não ocorrência do resultado. Essa análise cognitiva não altera a interpretação pretoriana de que o homicídio no trânsito é, em regra, cometido culposamente, pois apenas a presença de circunstâncias especialmente perigosas como, por exemplo, na linha trilhada, a ingestão de quantidade elevada de bebida alcoólica, ocasionará uma alteração para a figura dolosa.
Autores: Leonardo Schmitt de Bem é professor adjunto na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), doutor em Direito Penal pela Universidade de Milão (Itália) e mestre em Ciências Criminais pela Universidade de Coimbra (Portugal).
João Paulo Martinelli é advogado, professor da Faculdade de Direito do IDP-São Paulo, doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo e pós-doutor em Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra.