Reforma trabalhista: o abade, o barão e a proibição de interpretar

Autor: João Luiz Rocha do Nascimento (*)

 

O barão Charles de Montesquieu, que concebeu um espírito para as leis, e o abade Emmanuel Joseph Sieyés, um dos primeiros teóricos do Poder Constituinte e mais conhecido pela autoria da obra O que é o terceiro estado?, são dois nomes associados a duas propostas, distintas entre si, imaginadas para o destino que seria dado aos juízes durante a revolução francesa. Prevaleceu a do barão que, em certa medida, obscureceu a ideia do abade, condenada a um quase esquecimento. E é com o resgate do fato histórico encoberto que se inicia o presente artigo.

Diz-se que na versão mais aguda do Iluminismo, de acordo com o projeto de Sieyés, não haveria espaço para os juízes. Os poderes que constituiriam o futuro Estado Moderno, que toma assento no lugar do Estado Absoluto, se resumiriam ao Legislativo e ao Executivo, ficando de fora o Judiciário. Na sua proposta, o abade Sieyés sugeriu para o juiz o mesmo que Platão, na Grécia antiga, havia proposto em relação ao poeta: excluí-lo da República.

Felizmente, nenhuma delas vingou. Nem o poeta ficou fora da República, hipótese em que sem poesia o mundo ficaria muito mais sem graça. Nem o Judiciário ficou fora da composição daquilo que ficou conhecido como Estado Moderno, faceta que hoje conhecemos como Estado Democrático de Direito ou Estado Constitucional.

Colocadas lado a lado, certamente a proposta de Montesquieu foi uma grande vitória para os juízes. É bem verdade que, com sua rígida separação de poderes, minimizou o papel de juiz, mas não o deixou fora do Estado. Refletindo-se sobre o problema numa perspectiva histórica, os juízes devem agradecer a Montesquieu, pois graças a ele as condições de possibilidade para o exercício da função jurisdicional foram criadas, muito embora a vitória tenha sido de Pirro.

De fato, embora para os juízes a ideia do barão de Montesquieu se aproxime de um ato de comiseração se comparada com a do abade Sieyés, na prática, pelo menos no primeiro momento da história, elas se equipararam, uma vez que, proibido de interpretar, era como se o juiz não existisse. Proibição que não decorreu apenas da desconfiança que os revolucionários tinham com a magistratura, atribuída, sobretudo, à sua vinculação com o velho regime, circunstância que, em grande medida, contribuiu por gerar um sentimento de temor de um governo de juízes, presente ainda hoje em França.

Há outro componente nessa história mal contada. Os juízes foram proibidos de interpretar porque os revolucionários franceses, influenciados pela pauta iluminista, tinham plena convicção de sua dispensabilidade, certos de que no Estado somente duas funções eram importantes: a de elaborar e a de executar as leis. E isso por uma razão bem simples: os códigos dariam conta de tudo, cobririam toda a realidade e por mais complexos que fossem os fatos da vida, eles caberiam nos códigos que, nesse sentido, representariam a exata medida.

Eis a razão pela qual os revolucionários franceses negaram aos juízes até mesmo o poder de interpretar a legislação, sem dizer que foi o modo encontrado de controlá-los, prevenindo-se contra qualquer forma de arbitrariedade no exercício da jurisdição.

O resto da história é conhecido: a insistência na rígida separação dos poderes fez do juiz apenas o boca da lei, no sentido de que não havia a necessidade de exercer qualquer atividade de inteligência, bastava-lhe apenas pronunciar o que estava contido no seu texto que, naquela quadra, se confundia com a própria norma. O código civil oitocentista francês, o famoso Código de Napoleão, é o exemplo mais privilegiado. Produzido como um instrumento claro e perfeito, dispensava interpretação. Segundo anotam Merryman e Pérez-Perdomo, a ideia era fazê-lo tão popular quanto a Bíblia, de tal modo que, não sendo possível substituí-la, deveriam ficar lado a lado, daí se dizer que se tratava de um verdadeiro santuário.

Mas, isso não duraria muito tempo. Logo se verificou que no Código havia lacunas, ambiguidades e vaguezas que desafiavam outras soluções. Diante disso, dentro da moldura da norma ou de sua textura aberta, o juiz estava autorizado a agir com liberdade para fazer o fechamento do sistema. Resultado é que daí em diante ficou mais difícil controlá-lo e quando hoje se fala em controle hermenêutico das decisões judiciais, esse discurso quase sempre é mal compreendido, destacando-se, como o principal deles, o mau vezo de reduzir os dois fenômenos num só: igualar proibição de interpretar com controle hermenêutico das decisões judiciais.

É que são duas perspectivas distintas, antípodas, pode-se dizer. Por proibição de interpretar entende-se a ideia que, como visto, se impôs como resultado da expansão das grandes codificações no século XIX. Por outro lado, a necessidade do controle hermenêutico das decisões judiciais é o resultado natural da adoção do modelo de Estado Constitucional e do direito que emerge com as Constituições europeias a partir da segunda metade do século XX. Nesse cenário, o aumento do espaço do Judiciário e a consequente redução do Legislativo, surgem como um dos seus principais efeitos. Ao Judiciário, não sem muita reação, foi atribuído o poder de exercer o controle de constitucionalidade das leis, naquilo que ficou conhecido como função contramajoritária.

Segue-se que hoje não se pode mais falar em proibição de interpretar, muito menos dizer que o juiz tem ampla liberdade para atribuir à lei o sentido que bem entender. Nenhuma das posturas cabe na atual fase da história. O imaginário, contudo, que se tem reproduzido diante da Lei 13.467/2017, que passou a ser chamada de “lei da reforma trabalhista”, desafia esse entendimento.

Lançando mão de uma metáfora, é como se — e aqui a razão de ser do resgate da história das ideias iluministas e do positivismo exegético —, em torno da referida lei tenha se formado um verdadeiro cordão sanitário interpretativo.

De fato, guardadas as devidas proporções, pode-se dizer que o início de vigência da Lei 13.467/2017 provocou a repristinação das primeiras ideias revolucionárias francesas que se consolidaram com o positivismo exegético: a proibição dos juízes do trabalho de interpretá-la, isso pra dizer o mínimo, pois há quem defenda abertamente a simples extinção da Justiça do Trabalho, tida por muitos como, mal comparando, “solução final” para a remoção dos obstáculos que impedem o crescimento econômico do país.

Claro que há certo exagero no que foi dito. A expressão “solução final” lembra o método utilizado por Hitler para exterminar os judeus na Europa e, convenhamos, seria leviano imaginar que passou pela cabeça dos pais fundadores da reforma a ideia de exterminar a Justiça do Trabalho com outro meio mais letal. A inanição estaria de bom tamanho. Para se constatar isso, basta uma simples leitura dos dispositivos que restringem o acesso e relativizam a gratuidade integral da justiça estabelecida na Constituição Federal.

Proibição de interpretar. É a leitura que se faz de posturas como as da grande mídia, mais afeita à função de porta voz oficial do governo do que à de informar, e de alguns dirigentes da própria Justiça do Trabalho, incluindo sua Excelência, o atual Presidente, bem como de parcela dos juízes que sonham com uma sorte melhor: serem juízes federais, em caso de extinção da Justiça do Trabalho. Se duvidar, há até aqueles que já imaginam o tamanho do puxadinho que lhes será destinado dentro da estrutura da coirmã.

Respeito à lei e à democracia é imposição do Estado Constitucional, especialmente para os juízes, responsáveis diretos pela aplicação da norma no caso concreto, o que está longe de significar proibição de interpretar, mesmo porque não estamos mais no século XIX, muito embora seja esse o espírito que animou a edição da Lei 13.467/17.

Dizendo de outro modo: no atual paradigma estatal, a resistência à aplicação da lei da reforma trabalhista não deve ser, brincando aqui com Aristóteles, a Filosofia primeira do juiz do trabalho. O esforço hermenêutico deve ser no sentido contrário: aplicá-la, não sem antes submetê-la a uma filtragem constitucional, sua condição de possibilidade.

Disso, segue-se que se o afastamento da lei for o resultado do exercício da jurisdição constitucional, será válido e legítimo. Fora dessa perspectiva, o juiz não pode se colocar contra, sob pena de se configurar prática de ato arbitrário, operando-se aquela passagem (do juiz “boca da lei” para o juiz “dono da lei”) de que tanto fala Lenio Streck que, inclusive, em uma de suas colunas aqui publicada já demonstrou como se deve usar a jurisdição constitucional na reforma trabalhista.

A propósito, em outro artigo, Streck já disse que “uma legalidade se forma no horizonte daquilo que foi, prospectivamente, estabelecido na Constituição”. Isso significa dizer que uma boa filtragem constitucional da lei pressupõe um esforço hermenêutico que leve em conta pré-compreensões de alguns sentidos da Constituição: dignidade da pessoa humana, valor social do trabalho e da livre iniciativa, vedação do retrocesso social e acesso à justiça, pois esse é o horizonte constitucional (Artigos 1º, III e IV; 3º, I, II e III; 5º, XXXV e LXXIV; 7º, VII e X; 100, § 1º; 170 e 193) que deve balizar o intérprete e para o qual a Lei 13. 467/17 deveria apontar.

E como disse o jusfilósofo gaúcho, na mencionada coluna, essas disposições não são mera retórica constitucional, “na verdade, trata-se de dispositivos vinculantes da atuação pública tanto quanto da atuação privada na sociedade brasileira pós-1998, a começar pelo Legislativo e pelo Executivo”.

“Deveria”, porque o descompasso entre as duas perspectivas revela que a Lei 13.467/17 sequer toma conhecimento do horizonte futuro prometido pelo constituinte. Em verdade, vilipendia-o.

Pegue-se o exemplo do acesso à justiça e da gratuidade integral. De acordo com os pais fundadores da nova CLT, o eixo da reforma no plano processual tem na contenção do abuso processual, do excesso de litigância e das lides temerárias a sua principal justificativa.

Falando em linguagem hermenêutica: esse é o discurso lógico-semântico, de primeiro nível da linguagem (no sentido de que é o aparente) e que encobre o discurso de segundo nível (de profundidade) e que dá sustentação àquele, mas que se constitui na primeira compreensão e condição de possibilidade do outro, como dirá Stein[5]. E ainda que se faça uma leitura apenas analítica, e não hermenêutica, o discurso aparente nos remete à alegoria da criança que é jogada fora junto com a água suja da bacia. É dizer: ao argumento de se coibir abusos processuais, restringe-se o acesso à justiça não só de quem efetivamente abusa do direito de ação. Ao mesmo destino é jogado quem recorre ao Judiciário para exercer legitimamente um direito fundamental tido como de primeira dimensão e que decorre do pleno de exercício do princípio fundante da cidadania.

Pra finalizar, com Streck: a Justiça do Trabalho está à prova e não há outra saída senão a de atravessar o abismo colocado à frente. A utilização da jurisdição constitucional, o que pressupõe a leitura correta da Constituição, é o caminho para alcançar o outro lado da margem, a do horizonte constitucional prospectivo.

O que não se pode, nem é admissível, é voltar a proibir o juiz de interpretar, mesmo porque é impossível não fazê-lo, não só por conta da polissemia das palavras e da tensão entre o texto e seu sentido, mas, sobretudo, porque estamos condenados a isso sempre, não só como juízes, mas como seres humanos. Faz parte do nosso modo de ser. Como dirá Heidegger, sempre interpretamos, a isto estamos condenados.

 

 

Autor: João Luiz Rocha do Nascimento   é juiz do Trabalho do TRT-22. Mestre e doutorando em Direito Público pela UNISINOS.


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