Hermenêutica tem uma função de estruturação do ordenamento jurídico

Autor: Bianor Arruda Bezerra Neto (*)

 

No texto anterior, tratamos do processo interpretativo geral, do seu objeto e limites, bem como do papel da linguagem, concluindo pela dificuldade na previsão de seu resultado.

Neste último artigo da série sobre decisão judicial, o objetivo será tratar da hermenêutica jurídica, demonstrando sua importância para a composição da estrutura do próprio ordenamento jurídico.

A hermenêutica
O maior desafio da interpretação parece residir na compreensão da linguagem, ou das diversas linguagens de que se compõe seu objeto (mediato e imediato). A tarefa da hermenêutica é debruçar-se, pesquisar e tentar sistematizar esse processo interpretativo. Para cumprir essa tarefa, pode-se trabalhar a partir de três paradigmas diferentes: a “filosofia da linguagem”, a “metafísica do objeto” e a “metafísica do sujeito”. Tentemos entender, em linhas muito gerais, estes três modelos de compreensão do que chamamos realidade.

A “filosofia da linguagem” tem como premissa a ideia de que a realidade, tal como percebida pelo ser humano, é construída, toda ela, mediante o uso da linguagem. Isso não significa que os eventos físicos não existam sem a presença do ser humano, mas que eles somente adquirem algum sentido para nós quando organizados através da linguagem, de maneira que, sem ela, os eventos não têm sentido para o homem e, portanto, existência relevante.

Por sua vez, segundo o paradigma da “metafísica do objeto”, a realidade não é constituída pelo homem através da linguagem, mas existe independentemente do ser humano. A este cabe, através dos sentidos e da intuição, acessar essa realidade, apreendê-la e captar-lhe a essência, esta que seria permanente e imutável. Uma vez que tal se dê, diz-se que o homem descobriu ou encontrou a realidade, passando, assim, a conhecê-la. Esse processo de conhecimento, importante ser frisado, dar-se-ia não apenas através dos sentidos e da intuição, mas também através de processos mais elaborados como, por exemplo, a dialética platônica e o silogismo aristotélico.

Por fim, a partir do paradigma da “metafísica do sujeito”, compreende-se a realidade como fruto da pura construção subjetiva do sujeito do conhecimento. Nesse modelo, o sujeito individual é o centro da realidade, pois é ele quem a cria a partir de seu gênio e de sua capacidade de raciocinar (“metafísica da consciência” ou “filosofia da consciência”). Da mesma forma como ocorre com a “filosofia das essências dos objetos” (realismo ou “metafísica do objeto”), também aqui o ser humano acessaria o objeto, porém não para conhecer-lhe a essência imutável e fundamental, mas para dar-lhe uma (essência), segundo sua própria subjetividade.

Importante observar que a linguagem cumpre relevante papel em todas as três visões apresentadas, uma vez que é através dela que o ser humano se expressa e se localiza no mundo. Na “metafísica do objeto” e na “metafísica do sujeito”, contudo, a linguagem funciona como elemento mediador entre o ato humano de conhecer e o objeto do conhecimento. A linguagem é, assim, instrumento através do qual o ser humano acessa a realidade.

Na “metafísica do objeto”, a linguagem funciona como uma espécie de medida das “coisas do mundo”, cujo vínculo, linguagem-mundo, ocorre “por natureza” (Hermógenes, o sofista) ou “por convenção” (Crátilo). A essência dos objetos deve ser descoberta e expressa em linguagem adequada, convencional ou naturalmente definida. Na “metafísica do sujeito”, ocorre o inverso. Cabe ao ser humano criar a linguagem capaz de expressar a essência dos objetos. Através da linguagem criada é que a essência dos objetos pode ser captada.

Por sua vez, na “filosofia da linguagem”, como dito, o papel da linguagem não é a de mediadora do conhecimento, como algo que liga o sujeito ao objeto, mas de “matéria-prima” deste último.

A hermenêutica jurídica
O objeto de interpretação do direito, por excelência, é o texto da norma jurídica. Mas não só. No âmbito das demandas judiciais, por exemplo, o juiz também interpreta os textos produzidos pelos advogados em suas diversas petições, as palavras proferidas por partes e advogados em audiências, bem como as demais e variadas provas produzidas.

Os textos normativos apresentam-se, formalmente, no vernáculo e na forma deôntica. Eles compõem uma linguagem e, nessa qualidade, apresentam-se ao intérprete, para que este possa apontar o sentido que possuem.

Interpretar textos requer, pois, o conhecimento da estrutura da língua e a função dos termos na composição dos períodos, orações, sintagmas e frases (sintaxe), o significado dos grafemas, palavras, expressões (semântica), bem como estar atualizado com o uso desses mesmos grafemas, palavras, expressões por determinados grupos de pessoas, em determinadas circunstâncias (pragmática).

A tarefa parece simples, mas podemos fazer algumas perguntas para complicá-la. Os textos das normas jurídicas tratam de parte da realidade social que pretendem regrar. Todavia, a realidade é complexa. Quando um texto normativo se refere à parte dela, ele omite, intencionalmente ou por desconhecimento, outra grande parte da realidade.

Em outras palavras, quando a norma considera algum fato da vida social para sobre ele fazer incidir uma regra de conduta, ela, em verdade, recorta e isola parte da realidade. Nessa operação, a norma considera alguns aspectos dele e desconsidera outros, ou seja, faz o recorte da realidade levando em conta, por exemplo, aspectos econômicos, mas desprezando aspectos históricos. Aqui as possibilidades são inumeráveis, como está posto no exemplo abaixo.

Em tais termos, fora da norma jurídica, todo objeto imediato da interpretação comumente é composto por uma infinidade de outros objetos mediatos. Na vida comum, como apontado acima, isso ocasiona a imprevisibilidade das compreensões. E no direito, cuja norma faz a redução do objeto imediato da interpretação? O intérprete deve considerar somente o objeto imediato que se mostra nos textos jurídicos ou, ao contrário, é dado a ele incursionar por todo e qualquer objeto mediato que componha (ou possa compor) o objeto imediato?

A outra pergunta que pode ser feita é a seguinte: ao tentar compreender os textos jurídicos, pode o intérprete desprezar o sentido corrente que a tradição cultural e, especialmente a cultura jurídica, atribuem à linguagem ali envolvida, substituindo-o por um que lhe seja próprio ou particular? Em outras palavras, pode o intérprete alterar o sentido dos termos e expressões que compõem o objeto da interpretação, com o objetivo de formar conceitos e ideias próprias dele, o intérprete, a seu talante e conveniência?

Estas duas perguntas são seminais na hermenêutica jurídica. Exemplificando a primeira pergunta. O casamento possui aspectos antropológicos, sociológicos, religiosos, econômicos, psicológicos e, dentre tantos outros, também aspectos jurídicos. O artigo 1.514 do Código Civil diz que “o casamento se realiza no momento em que o homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os declara casados”. Pode o intérprete levar em consideração algum aspecto não levado em conta pela norma acima e utilizá-lo para compor o objeto de sua interpretação, qual seja, o texto da referida norma?

Por exemplo, pode o intérprete, observando os costumes sociais, e, portanto, a partir de visão devidamente justificada pela sociologia, interpretar o texto acrescentando o que se observa na sociedade, qual seja, uma tendência à formação de casais homoafetivos? Se a resposta for positiva, então também é possível que outro intérprete, levando em conta aspectos religiosos, pense exatamente de forma oposta? Qual a interpretação correta?

É possível falar, por exemplo, do princípio da igualdade e do princípio da dignidade humana sem abordar os aspectos sociológicos e religiosos acima referidos? Até onde pode ir o intérprete? E aspectos econômicos, podem ser abordados, quando o texto da norma a eles não alude direta ou indiretamente, nem haja norma constitucional alusiva a eles diretamente? Aqui a palavra diretamente deve ser frisada porque nossa constituição, extensa que é, repleta de normas inconclusivas (os princípios), refere-se indiretamente a “quase tudo”.

No caso da segunda pergunta, a ideia seria a seguinte. Interpretando o mesmo artigo, o jurista ignora a linguagem na qual o texto está vertido e a substitui pela sua própria linguagem. Onde está dito homem e mulher, ele substitui por “pessoas”, porque compreende que a linguagem original é discriminatória.

Evidentemente, ele buscou fora do objeto da interpretação outros objetos para compor o objeto originário. Onde ele foi? Que critérios utilizou? Será que se valeu apenas de sua própria vontade, movida por sua própria intuição sobre o certo e errado. O direito admite essa extensão para a interpretação?

Será que, em ambos os casos, não estamos diante de questões ideológicas (axiológicas, portanto) que transcendem qualquer tipo de interpretação? Por ora, deixemos apenas a reflexão.

O que importa pontuar, ao fim, é que a hermenêutica tem uma função de estruturação do ordenamento jurídico, pois, conforme seja a resposta dada a estas perguntas, assim será a estrutura do direito com que teremos de conviver e, sobretudo, preservar e com ele sermos coerentes.

Considerações finais
Há várias escolas jurídicas estruturadas em torno dessas duas questões. Para resumir, poderíamos citar quatro delas: o formalismo, o neopositivismo, o realismo e o neoconstitucionalismo.

Para o formalismo (positivismo legalista), o intérprete não pode considerar qualquer objeto mediato, mas ater-se ao objeto imediato, ou seja, aos estritos termos do texto legal. Neste contexto, não lhe é permitido tentar compreender qualquer objeto mediato, pois esta compreensão já foi feita pelo legislador e tudo que compõe o objeto imediato já está contido na sua respectiva compreensão.

Não seria exagero dizer que, para o formalismo, é proibido compreender a linguagem além dos estritos termos em que ela se revela para o senso comum do jurista, ou seja, para o jurista médio. Não é dado ao intérprete, portanto, fazer indagações em torno, por exemplo, de outros aspectos da realidade que compõem aquele que se apresenta ali naquele texto.

No caso do neopositivismo, o intérprete deve adotar postura semelhante à do formalismo, porém até certo ponto. Para essa escola, o texto da norma jurídica nem sempre é conclusivo, a ponto de apresentar um sentido completo. Admite-se textos com mensagens inconclusivas, de modo que ao intérprete, somente nestes casos, fica admitido incursionar em busca de objetos mediatos componentes do objeto da interpretação. É a “moldura da norma” de Kelsen e a “textura aberta” de Hart.

Para o realismo, o intérprete está livre para investigar todo e qualquer objeto mediato que compõe o objeto imediato da interpretação, inclusive, para reconstruí-lo de forma completamente diferente. Esta escola, contudo, opera a partir do respeito à tradição que se revela na linguagem e ao pragmatismo, de modo que este é o que justifica essa busca do intérprete. Em termos judiciais, pragmatismo significa resolver os conflitos a partir da consideração dos valores sociais mais importantes envolvidos.

Para o neoconstitucionalismo, o intérprete sempre deverá considerar, na composição do objeto imediato da interpretação, todos os objetos mediatos que o compõem e que estejam em normas constitucionais. No caso das constituições produzidas na segunda metade do século XX, isso significa, praticamente, ausência de limites, dado o grande número de normas-princípios, ou seja, de textura aberta e inconclusivas.

O objetivo da primeira escola é dar ao direito o máximo de autonomia e previsibilidade. O fundamento era a democracia e o respeito à segurança jurídica. O problema da primeira escola é ser artificial ao extremo, pois é impossível fazer a dissociação e o isolamento por ela pregado.

Já para segunda escola, o objetivo era aperfeiçoar a primeira. O seu grande problema, contudo, era conferir ao juiz liberdade para operar nos espaços vazios dos textos jurídicos inconclusivos, caindo na imprevisibilidade da compreensão apontado no item quatro acima.

O objetivo da terceira escola, por sua vez, é tornar a jurisdição uma função prática e, através dela, dar consecução aos valores sociais cultivados em um projeto de nação. Se o realismo, de um lado, permite que se transcenda o texto da norma, quando ele existe, de outro impõe grande respeito à tradição cultural, especialmente aos precedentes jurídicos, mitigando a imprevisibilidade na interpretação, porém não o eliminando, o que constitui um problema.

Por fim, o objetivo da quarta escola é aperfeiçoar a segunda escola, para determinar ao intérprete que, ao operar nas situações de inclusão dos textos normativos, considere, com veemência, as normas constitucionais. Seu fundamento é o respeito aos direitos fundamentais, elencados nas constituições ou decorrentes de suas normas.

Seu grande problema é, especialmente em países sem tradição de respeito aos precedentes judiciais, a ampliação do defeito da segunda escola, uma vez que praticamente todos os direitos fundamentais estão postos através de textos normativos inconclusivos e, em razão disso, abertos à composição por elementos mediatos infinitos, levando ao perigo da exagerada imprevisibilidade antes referida.

Enfim, qual o direito que queremos ter? Talvez as reflexões sobre interpretação jurídica nos aponte um caminho.

 

 

Autor: Bianor Arruda Bezerra Neto é juiz federal na 5ª Região, doutor pela PUC/SP e professor do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet).


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