Autor: Amauri Feres Saad (*)
Na modernidade, houve um progressivo incremento do poder estatal que corresponde simetricamente à diminuição da sua esfera de liberdade. Os parlamentos, que se reuniam periodicamente (e por curtos períodos), tornaram-se um corpo em funcionamento permanente, “aberto 24 horas”, “para melhor servir”. Senadores, deputados federais e estaduais, e vereadores são agora avaliados pela mídia e pela opinião pública a partir da quantidade de normas que aprovam. Assim, não é em nada despropositado que acordem todo dia com a seguinte questão fundamental: “O que eu posso regular hoje?”.
O mesmo acontece com o Poder Executivo e, embora em menor medida, com o Poder Judiciário, que se mete no imbróglio normativo criado pelos demais poderes, ora com a ânsia (legítima) de colocar ordem na bagunça, ora com o propósito (não tão legítimo) de substituir as decisões dos demais poderes por outras, suas, que julgue mais convenientes ou oportunas.
Mais do que um fenômeno quantitativo, que se reflete na chamada “inflação normativa”, o que se verifica é também um incremento na intensidade e intrusividade das intervenções. O poder que reúne (ou pensa reunir) em suas mãos um burocrata de segundo ou terceiro escalão de qualquer administração pública brasileira é tamanho que certamente repugnaria a um déspota de séculos anteriores. Com efeito, um Genghis Khan ficaria entre incrédulo e invejoso se lhe contassem o que poderia fazer, nos dias atuais, um colegiado de secretários municipais. Quer um exemplo?
A Resolução 16, de 7 de julho de 2017, do Comitê Municipal de Uso do Viário do Município de São Paulo (CMUV), é ilustrativa. Tal resolução, como diz a sua ementa, “regulamenta os requisitos mínimos para cadastramento de condutores nas Operadoras de Tecnologia de Transporte Credenciadas (OTTCs) para exploração de atividade econômica privada de transporte individual de passageiros”.
O ato normativo inova no ordenamento jurídico ao introduzir os seguintes requisitos para o exercício das atividades de transporte individual remunerado de passageiros: (i) Cadastro Municipal de Condutores (CONDUAPP) e o Certificado de Segurança do Veículo de Aplicativo (CSVAPP), como condição para a exploração de atividades de transporte individual remunerada; (ii) O cadastramento do motorista no (CONDUAPP) envolve a apresentação de uma série de documentos e a realização de um Curso de Treinamento de Condutores, de natureza presencial, sendo tal processo altamente burocrático e dispendioso; (iii) O cadastro no CSVAPP somente será deferido para automóveis licenciados no município de São Paulo, ignorando-se que a dinâmica da atividade de transporte individual envolve a transposição dos limites dos municípios, sobretudo em uma região altamente conturbada, como o é a Região Metropolitana de São Paulo; (iv) Institui, também como condição para a obtenção do CSVAPP, a idade máxima de 5 anos para os veículos a serem empregados na atividade de transporte individual; e (v) Estabelece um “código de vestimenta” para os motoristas, chegando, de um lado, à minúcia de qualificar como “vestimenta apropriada” o uso de “camisa, calça e sapato social ou esporte fino como camisa ou camisa polo, calça jeans”; e de outro esquecendo de que também as mulheres podem ser condutoras.
Uma primeira observação dever ser realizada acerca da Resolução. O ato não recai sobre um serviço titularizado pelo Município de São Paulo, como a própria regra admite. O seu âmbito de incidência é o de uma atividade econômica em sentido estrito, de titularidade da iniciativa privada. Dessa forma, não poderia invocar o CMUV uma suposta relação de supremacia especial, que lhe garantiria a competência para disciplinar, via regulamento e independentemente de lei, uma dada atividade. Isto quer dizer que a Resolução CMUV 16/2017 é ilegal. Isso pelo simples fato de inovar no ordenamento jurídico sem autorização legislativa (ou seja, de lei em sentido formal).
Se não se trata de uma relação de supremacia especial, só se pode estar diante daquilo que a doutrina administrativista classifica como uma relação de supremacia geral. Neste campo, se inserem as medidas do chamado poder de polícia, por meio das quais o Poder Público, tendo em vista a salubridade, a ordem e a tranquilidade públicas, pode impor certas condições ao exercício de atividades econômicas em sentido estrito pelos particulares. Ocorre que, neste caso, a inovação por meio de regulamentos é proibida. A administração pública só pode constatar infrações e aplicar sanções que estiverem previstas e tipificadas em lei; e ao particular assiste o direito de somente obedecer àquilo que estiver previsto em lei editada pelo Parlamento (CF, artigo 5º, II, e art. 37, caput). A Resolução, no entanto, não atende a este requisito formal básico.
Há ainda um problema de competência. O artigo 22, XI, da Constituição, estabelece ser competência privativa da União legislar sobre “trânsito e transporte”. Cabe destacar que o Supremo Tribunal Federal já assentou a interpretação, feita à luz do mencionado dispositivo constitucional, de que “compete privativamente à União legislar sobre trânsito e transporte, impossibilitados os Estados-membros e municípios a legislar sobre a matéria enquanto não autorizados por Lei Complementar”, como já decidiu o Supremo, em ARE 639.496, relatado pelo ministro Cezar Peluso, com publicação no Diário da Justiça em 31/8/11. Daí decorrendo que nem mesmo por lei em sentido formal o município de São Paulo poderia pretender validamente tratar da matéria veiculada pela Resolução CMUV 16/2017.
E mais: na análise de mérito das inovações contidas na Resolução CMUV 16/2017, é possível verificar que tal ato foi muito além do estabelecimento de medidas de polícia administrativa. Ao impor condições absolutamente restritivas para o exercício de uma atividade que, nunca é demais destacar, é livre aos particulares, a regra violou abertamente os princípios da livre iniciativa e livre concorrência (artigos 1º, IV, e 170, caput), o direito de livre exercício de trabalho ou profissão (artigo 5º, XIII – “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”), bem como os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Violou, igualmente, os direitos dos consumidores, na medida em que o resultado concreto da aplicação da Resolução, caso esta não venha a ser invalidada pelo Judiciário, será a redução do número de prestadores do serviço de transporte individual remunerado de passageiros, e consequentemente a redução das opções disponíveis.
Autor: Amauri Feres Saad é doutor e mestre em Direito Administrativo pela PUC-SP. Presidente da Associação Paulista de Direito Administrativo (APDA). Professor de Direito Administrativo da Faculdade de Direito do IDP – São Paulo. Advogado e consultor jurídico.