Autor: Flávio da Costa Higa (*)
O imperativo categórico, que como tal se limita a afirmar o que é a obrigação, pode ser assim formulado: age com base em uma máxima que também possa ter validade como uma lei universal.
Immanuel Kant
Nesta terça-feira (6/2), o Tribunal Superior do Trabalho reunir-se-á a fim de apreciar propostas da Comissão de Jurisprudência e de Precedentes Normativos que têm por escopo “adequar a jurisprudência consolidada […] às modificações legislativas decorrentes da Lei 13.467/2017” (TST-Pet 16901-28.2017.5.00.0000 e TST-Pet 18251-51.2017.5.00.0000). Conquanto o dever de integridade e coerência (CPC, 926, caput) imponha conformação de enunciados de súmula e de outros verbetes à legislação em vigor, não há justificativa epistêmica nem deontológica para menoscabar o devido processo legal (CF, 5º, LIV e LV). Assim, tão antecipadamente quanto a morte de Santiago Nasar, sabe-se que eventuais modificações só são válidas se estiverem em harmonia com o Estado Democrático de Direito (CF, 1º, caput), hipótese que se pretende testar no presente ensaio.
A observância ao artigo 702, Alínea “F” da CLT
A Lei 13.467/2017 deu nova redação ao art. 702, I, “f”, da CLT, verbis:
Art. 702. Ao Tribunal Pleno compete:
I –
f) estabelecer ou alterar súmulas e outros enunciados de jurisprudência uniforme, pelo voto de pelo menos dois terços de seus membros, caso a mesma matéria já tenha sido decidida de forma idêntica por unanimidade em, no mínimo, dois terços das turmas em pelo menos dez sessões diferentes em cada uma delas, podendo, ainda, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de sua publicação no Diário Oficial;
Pois bem, se o objetivo anunciado pela própria Comissão de Jurisprudência foi o de adequar-se às mutações introduzidas pela “reforma trabalhista”, a toda evidência o artigo 702, I, “f” da CLT, com redação dada pela própria Lei 13.467/2017 – que estabelece os requisitos para alterar súmulas e outros enunciados de jurisprudência – deve ser o primeiro a ser observado. Todavia, nenhuma das modificações propostas atende aos requisitos de tal dispositivo por uma razão óbvia, qual seja, a inexistência de tempo para alcançar a quantidade de decisões, com a capilaridade e o quórum por ele exigidos.
Já se disse que tal artigo é inconstitucional, na medida em que viola a autonomia administrativa do Poder Judiciário (CF, 99). Isso porque “o postulado do autogoverno da Magistratura, que enseja aos Tribunais o poder de regular, com exclusividade, toda a matéria pertinente à organização e à definição da ordem interna dos trabalhos judiciários”, é refratário a intervenções que atrofiem a independência entre os poderes (CF, 2º). Deveras, “nenhum poder estranho aos Tribunais dispõe de legitimidade jurídico constitucional para regular, em sede normativa, a própria ordem dos trabalhos judiciários” (STF – ADI 1.105-7, Pleno, DJ 27.4.2001). Desse modo, “nem o Poder Executivo e nem o Poder Legislativo podem editar normas sobre os trabalhos internos das Cortes Judiciárias” (STF, ADI 2.790-3, Pleno, DJ 12.5.2006).
Porém, se o TST também pensa dessa forma, deve, aprioristicamente, exercer o controle difuso (Marbury v. Madison, 5 U.S. 1 137 (1803)) e pronunciar a inconstitucionalidade do art. 702, I, “f” da CLT – observando as diretrizes legais (CPC, 948 a 950), sobre os quais se falará oportunamente –, para, só então, modificar a sua jurisprudência “na forma estabelecida […] no regimento interno” (CPC, 926, § 1º).
A necessária observância ao regimento interno
Superada a questão constitucional, a alteração da jurisprudência deverá observar os pressupostos regimentais (CPC, 926, § 1º c/c CLT, 769 e CPC, 15). Eis que surge um novo problema: a última versão do Regimento Interno do TST, publicada 30.11.2017, reproduz, ipsis litteris, os mesmos requisitos do artigo 702, I, “f” da CLT (artigo 75, VII), inclusive no que concerne aos legitimados para sustentação oral (artigo 125, § 2º).
Nesse espeque, por incrível que possa parecer, caso o TST decida que o dispositivo em questão viola a sua autonomia administrativa, ainda assim estará obrigado a seguir – só que dessa vez por vontade própria – as mesmas exigências contidas no regramento acoimado de inconstitucional. Ter-se-á, então, “o máximo do paradoxo”: a Corte proclama que a lei não pode lhe colocar uma “camisa de força”, mas opta por “vestir a mesma camisa”. Como bem descreveu Camões, é como “estar preso por vontade; […]; é ter com quem nos mata, lealdade”.
Nessa caminhada trôpega e circular, o giro de 360 graus torna invariavelmente ao mesmo lugar: o da impossibilidade de deliberar acerca das sugestões da Comissão de Jurisprudência, seja por transgredir ao artigo 702, I, “f” da CLT ou por violar o art. 75, VII do Regimento Interno.
Antes, porém, o TST deveria decidir, de uma vez por todas, se o próprio artigo 702 da CLT ainda está entre nós ou foi revogado pela legislação posterior.
Morte e/ou vida do artigo 702 da CLT
A jurisprudência de 7 das 8 turmas do TST possui entendimento de que o artigo 702 da CLT foi revogado pela Lei 7.701/1988 (Ag-AIRR – 1840-10.2006.5.02.0081, 2ª Turma, DEJT 28.10.2010; Ag-AIRR – 95040-49.2005.5.02.0035, 3ª Turma, DEJT 3.6.2011; RR – 173735-98.1995.5.09.5555, 4ª Turma, DJ 22.2.2008; RR – 161579-47.1995.5.09.0072, 5ª Turma, DEJT 26.8.2011; Ag-AIRR – 1526-20.2012.5.01.0263, 6ª Turma, DEJT 5.12.2014; Ag-AIRR – 304540-56.2006.5.02.0089, 7ª Turma, DEJT 17.12.2010; Ag-AIRR – 226440-12.2004.5.02.0072, 8ª Turma, DEJT 27.8.2010). E a percepção é correta, haja vista a Lei 7.701/1988 ter disciplinado integralmente a matéria – o que é causa de revogação (LINDB, 2º, § 1º) –, além de ter determinado a revogação das disposições em contrário “da Consolidação das Leis do Trabalho e da legislação especial” (artigo 16).
Posto isso, pode-se lobrigar que a alínea “f” do artigo 702, I da CLT afronta a legalidade, porquanto o ordenamento veda a “repristinação tácita” (LINDB, 2º, § 3º). Deveras, como a Lei 13.467/2017 inseriu apenas a alínea “f” no revogado artigo 702, e o ordenamento proíbe o aproveitamento do número de dispositivo revogado (LC 95/1998, 12, III, “c”), a única conclusão possível é a de que a alínea em questão não pode ter vida autônoma. Seria possível afirmar a inconstitucionalidade de tal regra (alínea “f”) por violação os comandos atinentes à elaboração de leis (CF, 5º, II), não fosse outro detalhe: o próprio edital que convoca para a sessão do dia 6.2.2018 faz referência ao artigo 702. Outrossim, conquanto haja manifestação da maioria das turmas no sentido da revogação de tal dispositivo, o Regimento Interno também se reporta ao “revogado” artigo em cinco oportunidades (artigos 68, § 2º; 169; 172; 177 e, 180).
Urge, pois, uma definição que concilie internamente os pronunciamentos do TST a fim de que os jurisdicionados saibam, afinal, se a Corte entende que o artigo 702 foi revogado ou está vigente, não obstante a Lei 7.701/1988. Tendo em vista as manifestações mais recentes, no âmbito administrativo do Edital e do Regimento Interno indicarem a sua sobrevivência, impõe-se, como mencionado alhures, perscrutar a constitucionalidade da alínea “f”, do item “I” à luz da autonomia do Poder Judiciário.
O procedimento da sessão plenária de 6.2.2018
Numa das notícias sobre a sessão do próximo dia 6, consta que “[…] a Comissão de Jurisprudência irá propor logo de início uma arguição de inconstitucionalidade relativa ao procedimento de revisão da jurisprudência da Casa”. Afirma-se, ainda, que “se rejeitada a arguição, o Pleno passará ao exame da jurisprudência […]”. Porém, “se acolhida, será instaurado um processo de inconstitucionalidade, com escolha de relator e tramitação, de modo que as súmulas e Ojs não serão examinadas na referida reunião”.
Assumido o pressuposto de que a notícia é fidedigna, é impossível compreender o procedimento. Se rejeitada a arguição, supõe-se que o artigo 702, I, “f” é constitucional, ou seja, que as suas exigências são válidas. Logo, devem ser observados os seus requisitos para alteração de súmulas. Assim, não pode a arguição ser rejeitada e o Pleno passar ao exame das alterações, em nítida afronta ao dispositivo recém declarado constitucional e, ainda por cima, ao seu Regimento Interno. Nessa hipótese, a sessão deve ser cancelada e as modificações só poderão ser promovidas após o preenchimento dos pressupostos legais e/ou regimentais.
O rito de decretação difusa de inconstitucionalidade
Mencionou-se anteriormente que “[…] a Comissão de Jurisprudência irá propor logo de início uma arguição de inconstitucionalidade relativa ao procedimento de revisão da jurisprudência da Casa”. Essa é outra assertiva de difícil assimilação.
Ao que insinua a notícia, a Comissão de Jurisprudência promoverá uma arguição de inconstitucionalidade “em abstrato”, sem que ela tenha sido suscitada “[…] no curso do julgamento do processo nos órgãos judicantes da Corte, após concluído o relatório” (RITST, 274). Não há processo em curso e a Comissão de Jurisprudência não é órgão judicante para arguir inconstitucionalidade. Se ela assim o fizer, isso representará uma inovação sem paradigmas no controle de constitucionalidade, pelo fato de tratar-se de uma espécie de controle abstrato realizado ex officio. Nem mesmo a Suprema Corte pode pinçar leis voluntariamente e escrutinizar sua constitucionalidade, sendo necessária a provocação por meio de ação (CF, 103).
No controle difuso, pelos tribunais, arguido o incidente, pelo relator, em um caso concreto, é necessário (CPC, 948 a 950): a) Ouvir o MP e as partes; b) Submeter a questão à turma ou à câmara à qual competir o conhecimento do processo; c) Acolhida a arguição, submetê-la ao plenário do tribunal ou ao seu órgão especial; d) Enviar cópia do acórdão aos juízes e designar sessão de julgamento; e) Possibilitar a manifestação das pessoas jurídicas de direito público responsáveis pela edição do ato questionado, dos legitimados à propositura de ADI e ADC e, eventualmente, de outros órgãos e entidades.
Também chama atenção a notícia de que haverá “escolha de relator”, pois eventual incidente é distribuído “por prevenção ao mesmo relator originário” (RITST, 277) que tiver suscitado a inconstitucionalidade, no curso do processo, perante os órgãos judicantes da Corte. Tudo indica, pois, que o controle será exercido de forma heterodoxa.
O conteúdo das alterações das súmulas e orientações jurisprudenciais
Apesar de a sessão vindoura poder definir os rumos da aplicação da Lei 13.467/2017, paira um silêncio constrangedor sobre a comunidade acadêmica, que não se pôs a debater as propostas, quiçá por desconhecê-las. Não se verificou a divulgação das alterações sugeridas e sua fundamentação, sendo a sua obtenção perante os habilitados para sustentação oral um trabalho mendicante.
Diante da limitação espacial e do recorte metodológico a que se propõe este arrazoado, pode-se dizer, sucintamente, que o principal foco das mutações é regular o direito intertemporal, de modo a resguardar, no âmbito do direito material, a aplicação da “lei velha” aos contratos celebrados anteriormente à vigência da Lei 13.467/2017, com base no direito adquirido (CF, 5º, XXXVI). No plano do direito processual, a tendência é de assegurar – para regras processuais de efeitos materiais – a aplicação da lei vigente ao tempo do ajuizamento da ação, a fim de tutelar legítimas expectativas e não surpreender os litigantes com ônus inexistentes à época da propositura da ação.
Afora tais aspectos, as mudanças procedem, de modo geral, à interpretação literal da “reforma trabalhista” e sem que haja a quantidade de precedentes exigida pela Lei 13.467/2017 e pelo RITST.
A fundamentação das propostas, todavia, ignora a MPV 808, de 14.11.2017, o que se justifica pelo fato de a sua elaboração preceder a edição da medida provisória. É necessário, pois, no mínimo, que se refaça a justificação, haja vista a MPV tratar expressamente do direito intertemporal (artigo 2º) e de outras questões versadas nas súmulas. Entretanto, a prudência recomenda, uma vez mais, que se aguarde pelo prazo mínimo de 120 dias (60 + 60), a fim de verificar se a medida provisória será ou não convertida em lei, caso em que poderá perder sua eficácia (CF, 62, §§ 3º, 7º, 11 e 12). Não é possível ignorá-la, pois “a edição de medida provisória gera dois efeitos imediatos. O primeiro efeito é de ordem normativa, eis que a medida provisória, que possui vigência e eficácia imediatas, inova, em caráter inaugural, a ordem jurídica. O segundo efeito é de natureza ritual, eis que a publicação da medida provisória atua como verdadeira provocatio ad agendum, estimulando o congresso nacional a instaurar o adequado procedimento de conversão em lei” (STF – ADI 293 MC, DJ de 16-4-1993).
Conclusão
Malgrado a reforma trabalhista tenha sido duramente criticada pelo açodamento em sua aprovação, a pressa também dá o tom da sessão da Comissão de Jurisprudência do TST. Essa circunstância revela um déficit dialógico entre as esferas de Poder e a sociedade, porquanto as alterações deveriam ser edificadas sob o prisma da “legitimação pelo procedimento democrático” (HABERMAS, 1997, p. 191) que não fosse meramente formal. A consolidação precipitada cala a voz das instâncias inferiores e despreza as suas possíveis contribuições, demonstrando que as queixas quanto à ausência de amplo debate social estão menos na ordem de um princípio e mais na de um argumento de ocasião. O anseio de juízes e jurisdicionados é poder “especificar suas posições com respeito aos resultados em cada caso ainda em aberto, de tal forma que ao final seu objetivo não pudesse mais parecer com o objetivo de qualquer outro terceiro”, a fim de que as súmulas aprovadas sejam fruto de uma abundante e profícua discussão que “representasse a expectativa a eles dirigida por parte de terceiros” (LUHMANN, 1985, p. 66).
Mantidas a sessão e os seus equívocos, sobrará apenas frustração. “De repente, não mais que de repente” (MORAES, 1938), do riso far-se-á o pranto, “silencioso e branco como a bruma”
Autor: Flávio da Costa Higa é juiz do Trabalho em Coxim (MS) e professor da Ematra-MS. Tem pós-doutorado pela Universidade de Lisboa e doutorado e mestrado pela USP.