Autor: Paulo Sérgio Leite Fernandes (*)
O criminalista Nélio Machado, fazendo a clássica advocacia especializada dos antigos, lançou entrevista, há pouco, em jornal de ampla divulgação nacional. Criticou veementemente aqueles criminalistas que assumem a negociação com o Ministério Público, correspondendo à chamada delação premiada, ou colaboração recompensada, ou ainda leniência, cuidando-se, nesta alternativa, de comportamentos atinentes a pessoas jurídicas. Nélio Machado afirmou, inclusive, estar a escrever um livro sob o título “Covardia”, ou nomenclatura parecida. Tece comentários sobre desvios éticos daqueles que deixam de lado a defesa estrita propriamente dita e partem para reuniões com representantes do Ministério Público, mostrando suas reservas de alcaguetagem, importância das mesmas e as provas de comportamento criminoso do delatado, implicando isso, é claro, na confissão de parte ou da totalidade dos eventos delituosos postos em evidência.
Tanto bastou para que o advogado Figueiredo Basto, um dos líderes do encaminhamento de delações correspondentes àquelas condutas criminosas que levam, no Brasil, nomes-fantasia já muito conhecidos, viesse em defesa da sua postura acentuando, inclusive, não haver mais oportunidade para a chamada advocacia romântica. Em outros termos, a atividade defensiva deve ser prática e objetiva, deixando-se de lado uma postura cuja eficácia se perde nos tempos áureos da advocacia criminal. Basto comenta, também, o fato de não se poder defender uma postura ética de criminosos, mas verberar, sim, atividades ligadas à corrupção e congêneres.
Cuida-se de assunto muito delicado, pois a função da advocacia criminal é, no fim das contas, excetuadas raríssimas hipóteses, a manutenção da liberdade ou a redução das penas, havendo, para tanto, previsão legislativa a tal comportamento. Dentro do contexto, a delação premiada seria absolutamente legítima, porque autorizada no ordenamento jurídico positivo.
As negociações entre delinquentes e o Ministério Público atingiram no Brasil uma quase rotina, levando acusadores oficiais, muita vez, a desprezar pretensões no sentido indicado, ou por terem munição mais forte ou por incompatibilidade pontual com réus e respectivos advogados. É, além de tudo, uma questão de simpatia, pois há criminalistas que se colocam bem com o Ministério Público havendo, na hipótese, um congraçamento mais extenso, não se podendo esquecer hipotéticos negociadores cuja origem é a própria Instituição (aposentados reinscritos na OAB). Há, no meio do todo, uma espécie de “Síndrome de Alcaguetagem”, um arremedo da famosa “Síndrome de Estocolmo”, valendo recordar o episódio em que uma herdeira de polpuda cadeia jornalística, Patrícia Hearst, sequestrada por guerrilheiros, se tornou uma entre estes, praticando, inclusive, crimes graves. De fato, enquanto o advogado negocia a delação de seu cliente, precisa incorporar certa dose de intimidade na discrição, pois o material a ser exibido é passado de mão em mão com os dois grupos, tecendo sofisticado bailado tendente ou não a um abraçamento final. Nesse entremeio, é claro que o Ministério Público deixa de lado a básica obrigação de perseguir os crimes noticiados, fazendo de conta, oportunisticamente, que aquilo não existe. Minora-se, assim, a condição do confitente, deixando-se-o em liberdade ou, até mesmo, procurando estipular o grau de cumprimento de pena, independentemente do aval do Poder Judiciário. Diga-se que é muito difícil uma intermediação, ainda na fase anterior ao processo, marginalizando o conhecimento ou até o consentimento tácito do representante do Poder Judiciário, sabendo-se, principalmente em Comarcas de médio e pequeno porte, que a delação se transforma num ato envolvendo os três personagens (acusador público, réu e magistrado). Em termos bem simples, a intromissão da defesa nos gabinetes do Ministério Público, e deste ocasionalmente no próprio cárcere, ocorre eventualmente, não se registrando formalmente, quiçá, a visita de promotores públicos a encarcerados.
Deixe-se de lado qualquer comentário mais ácido sobre anomalias possíveis nessa espécie de coalisão. Diga-se apenas que as negociações antecedendo a formalização de delações premiadas implicam, regra geral, na manutenção respectiva de uma espécie de segredo de alcova porque, quando aquilo não dá certo, o Ministério Público guarda nas algibeiras muitos pormenores hábeis a uma possível utilização de prova fornecida durante os conciliábulos, vantagem não oferecida ou permitida à defesa. De qualquer maneira, os criminalistas que se dão a intermediar delações recompensadas precisam ter uma capacitação – ou qualidade – toda especial, porque entram em contato com anjos e demônios. No fim de tudo, uns e outros fazem concessões, quer quanto à efetiva retribuição penal, quer quanto à demonstração da inocência do acusado. Um jogo, certamente, exigindo estômago muito forte, porque há, seguramente, concessões extravagantes.
Tocando agora ao chamado injustificável romantismo da advocacia criminal, esclareça-se que o uso da beca sempre foi revestido de uma vocação aguerrida, relembrando-se, então, grandes figuras de advogados criminais célebres. Não consta que entre estes se encontrem negociadores de alcaguetagem. Acentue-se, por último, que não existe, salvo prova em contrário, causídico intervindo em negociações de tal natureza por simples amor ao ofício, ou para a manutenção da liberdade de um infeliz falsamente acusado pelo Ministério Público. As intervenções se fazem, num e noutro sentido (defesa plena ou dedoduragem), por honorários profissionais bem cobrados. No fim das contas, a alcaguetagem se estrutura em advocacia lícita. Basto, em certo aspecto, argumentou procurando justificar sua posição menos altruísta: não se deve ser romântico no exercício da especialidade, principalmente quando a opção conciliadora é acompanhada por honorários aptos à manutenção da sobrevivência.
Na história do Brasil, o primeiro grande delator foi Joaquim Silvério dos Reis. Não houve até agora quem se atrevesse a lhe dirigir um monumento ou lhe dedicar um bom feriado nacional nos quais a nação é pródiga, embora as esculturas venham servindo, e muito, à alegria dos netos e ao ninho dos pardais. É lamentável.
Autor: Paulo Sérgio Leite Fernandes é advogado criminalista em São Paulo.