Mandado coletivo representa a extinção do processo e a formalizado da barbárie

Autor:  Pedro Estevam Serrano (*)

 

O decreto presidencial assinado no último dia 16, que impôs ao Rio de Janeiro intervenção federal, vem carregado de mecanismos tanto ineficazes quanto inconstitucionais. Primeiro, é preciso observar que há no decreto uma inconstitucionalidade de procedimento formal. O documento deveria ter passado por dois conselhos — o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional —, o que só ocorreu dias depois de sua decretação. Mas o mais grave são as inconstitucionalidades substanciais da medida, como a nomeação de um militar como interventor, uma vez que a nossa Constituição prevê somente intervenção de caráter civil. Ressalte-se que segurança pública é uma atividade essencialmente civil.

O sistema de intervenção da União nos Estados-membros pressupõe condutas estritas. A substituição do secretário de segurança pública pela figura do interventor, que passa a comandar a área de segurança, com total submissão das polícias civil, militar e também dos bombeiros, não é a forma prevista. A ordem jurídica não prevê intervenção em função subordinada. O esperado, nesses casos, é o afastamento do próprio chefe do executivo, e não de seu secretário ou assessor, pois isso gera uma disposição problemática que subverte a estrutura de poder do Estado.

A função do secretário de segurança é derivada da função do governador, o que, no Direito Administrativo, define-se como desconcentração de autoridade. No entanto, da forma como foi feita a intervenção, criou-se uma anarquia sistêmica no Estado, já que o governador, mantido no cargo, deixa de ter comando sobre uma função subordinada à sua — a de chefe da segurança pública, ora sob mando do interventor federal. Na prática, é como se o presidente Michel Temer tivesse constituído um governador autônomo para a área de segurança e mantido o governador de fato para as demais áreas, numa conformação imprevista e inexistente em nosso ordenamento constitucional.

Outro aspecto relevante que demonstra a falta de legitimidade do decreto é o seu fundamento, que vem a ser “pôr termo ao grave comprometimento da ordem pública”. Existem vários tipos de agressão à ordem pública e é evidente a qualquer observador de fora e, principalmente, ao cidadão que vive no Rio de Janeiro, que o problema de segurança no estado é grave. Mas a ofensa à ordem pública prevista na Constituição não é de caráter genérico ou indeterminado; há algumas características que precisam estar presentes. Para que se justifique uma intervenção federal é necessário que haja uma ofensa imprevista e imprevisível. Aliás, toda medida de exceção, como o Estado de sítio em caso de guerra, ou esse tipo de intervenção federal que, em tese, funciona como um mecanismo de calibragem do pacto federativo, tem de ser pensada como medida de emergência para atender algo imprevisto ou imprevisível.

Ora, o agravamento da questão da segurança no Rio de Janeiro é notório e vem se acentuando há muito tempo, logo não é possível dizer que seja imprevisto ou imprevisível. O governo poderia e deveria ter lançado mão de outros instrumentos e de políticas públicas consistentes e contínuas para atender a esse problema que já se pode considerar sistêmico.

A “novidade”, portanto, não está na suposta causa, mas, talvez, no fato de que o decreto de intervenção se configura como uma medida de exceção mais clássica, diferentemente dos mecanismos de exceção que têm sido mais comuns no século XXI, que trazem uma aparência, uma roupagem democrática maior. O decreto explicita o desejo de interferir na federação com a finalidade de suspender os direitos fundamentais e humanos das pessoas, e seus desdobramentos evidenciam isso.

É o caso do mandado de busca e apreensão coletivo, algo que já vinha sendo praticado no Brasil e que faz parte da produção de uma jurisprudência de exceção, ou seja, de um conjunto de medidas de exceção produzidas pelo próprio Judiciário, que se traduz num mecanismo de espoliação no campo dos direitos fundamentais, esvaziando o sentido da nossa Constituição.

De forma acelerada, vimos as liberdades individuais serem tolhidas por interpretações que as restringem intensamente. Tanto os direitos de livre expressão, livre orientação sexual, o direito de ir e vir, como os direitos processuais de defesa e presunção de inocência vêm sendo espoliados em um processo que nos leva às portas da barbárie, à ruptura com os marcos civilizatórios da modernidade.

Essa jurisprudência de exceção, de certa forma, sempre existiu no Brasil, mas se intensifica muito a partir da década de 1990. É a partir de então que a nossa população carcerária quadruplica, tornando-se hoje a terceira maior do mundo, com 750 mil aprisionados. Decuplicamos em números simples e quadruplicamos em números percentuais a quantidade de mortos no país (entre 60 e 70 mil mortos por ano), algo que só se assemelha aos números de uma guerra civil. Na Guerra do Golfo, por exemplo, morreram 20 mil soldados americanos em uma década. Aqui, em um ano, 60 mil civis são mortos em situações de violência e ainda ostentamos o deplorável título de ter a polícia que mais mata e morre no mundo. Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2016 foram 4.224 casos de pessoas mortas em decorrência de intervenções policiais no Brasil e 437 o número de policiais civis e militares vítimas de homicídio.

A intervenção acentua esse cenário, pois se caracteriza como uma medida de exceção que abre espaço a ações cautelares e coletivas que suprimem intensamente os direitos das pessoas e da própria condição humana daqueles que serão atingidos por elas. Não há, na nossa Constituição, algo que preveja o estabelecimento de restrição coletiva à liberdade. A busca e apreensão ou aprisionamento deve se dar por ordem judicial individualizada com conduta determinada. O mandado coletivo representa a extinção da ideia de processo e a formalização da barbárie.

Representa ainda a disposição do Estado para combater um suposto inimigo, no caso o “bandido”, aquele que ofende a ordem pública e que, no Brasil, está deliberadamente confundido com o pobre. Não há dúvidas de que os segmentos mais empobrecidos da classe trabalhadora e a juventude negra das periferias serão os mais atingidos por esse conjunto de atos executivos e jurisprudências de exceção.

Vale observar que, além de não ser factível face a nossa Constituição, esse tipo de medida também contraria o pacto humanista democrático construído no pós-guerra, que se traduz, na Europa, nas constituições verticais, hierarquicamente superiores, a que chamamos, no meio constitucional, constituições rígidas, que são direitos que se sobrepõem a qualquer decisão política ou judicial. O Estado democrático, no pós-guerra, é um Estado que não apenas estabelece procedimentos e formas majoritárias de decisão política, mas que também determina restrições às decisões políticas e judiciais com base nos direitos.

O que se vê no Rio de Janeiro, de forma mais ampla, é consequência de uma evidente incompatibilidade entre o capitalismo liberal e as novas formas de democracia, que se observa não apenas localmente, mas em todo o ocidente, no mundo contemporâneo. No Brasil, no entanto, essa divergência se manifesta de forma mais violenta, pois aqui esse processo redunda no retorno às formas mais primitivas de acumulação de capital e de gerenciamento da vida das pessoas pelo Estado.

Do mesmo jeito que, no processo de afastamento da presidente Dilma Rousseff, tivemos o sistema de justiça à frente, criando um clima político para que o Legislativo executasse a medida de exceção que foi o impeachment, temos agora o Executivo produzindo um ato que dá origem a medidas cautelares de exceção, que devem ser encampadas pelo Judiciário. O que se percebe é que o Estado brasileiro como um todo promove o esvaziamento de sentido os direitos fundamentais assegurados pela nossa Constituição. O abandono dos Direitos Humanos, que acaba de perder seu ministério, rebaixado à secretaria da pasta da Justiça, é também simbólico deste processo.

 

 

Autor:  Pedro Estevam Serrano  é professor de Direito Constitucional e Teoria do Direito da graduação, mestrado e doutorado da PUC/SP, mestre e doutor pela PUC/SP com pós-doutorado na Universidade de Lisboa.


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