Caminhamos cada vez mais para o labirinto jurídico criado pela reforma trabalhista

Autor: Jorge Luiz Souto Maior (*)

 

A Lei 13.467/17, independentemente de se questionar o seu ideário, é repleta de impropriedades técnicas, que impedem a sua aplicação, gostem disso, ou não, aqueles que vislumbravam com o advento da referida lei a saída para alguns de seus problemas jurídicos específicos.

Volto a carga com o argumento de que a Lei 13.467/17, da denominada “reforma trabalhista”, foi elaborada (a muitas mãos e sem uma comissão de juristas) no Congresso Nacional em tempo recorde de pouco mais de dois meses.

No tempo em questão e dada a amplitude da lei, pela qual se pretendeu alterar profundamente a regulação das relações de trabalho no Brasil, desprezando conquistas históricas e sufocando a ação sindical, com incursões, inclusive, na esfera processual, seria impossível que se conseguisse fazer uma obra legislativa perfeita e acabada, por mais competentes e inteligentes que fossem os seus elaboradores, os quais até hoje ninguém sabe quem são.

A primeira demonstração concreta do tamanho do imbróglio jurídico que se criou com a referida lei se deu em Brasília, nos dias 9 e 10 de outubro de 2017, na 2ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho, promovida pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), quando mais de 600 juízes, procuradores e auditores fiscais do Trabalho, além de advogados e outros profissionais do Direito, divididos em oito comissões temáticas, debateram mais de 300 propostas de enunciados sobre a nova lei e aprovaram 125 enunciados, quase todos em contraste com várias das projeções que se faziam a partir do advento da lei.

Esse evento gerou uma reação bastante ruidosa de alguns meios de comunicação, que, mesmo sem sequer terem parado para ler a lei e não possuindo o conhecimento jurídico mínimo para compreenderem que uma lei, sozinha, não dita o ordenamento jurídico, estando sujeita, sobretudo, aos preceitos constitucionais e aos princípios jurídicos do ramo do Direito no qual se insere, saíram por aí dizendo algo um tanto quanto incompreensível, mas bastante ameaçador, de que os juízes do Trabalho, reunidos em Brasília, se portaram como rebeldes, pois teriam dito, pelo teor dos enunciados, que não iam aplicar a lei.

A propósito disso, houve até quem tivesse proposto que se acionassem juízes no CNJ, para questionar, em reclamação disciplinar, o conteúdo de suas decisões judiciais, caso o denunciante compreendesse que o juiz se “recusou a aplicar a lei da reforma”.

Essas entidades, certamente, fingem desconhecer as complexidades jurídicas promovidas pela Lei 13.467/17 porque, no fundo, não querem que isso seja verdade, afinal, a lei, em diversos aspectos, tentou trazer normatização favorável aos seus interesses econômicos e admitir que a lei tenha impropriedades e que contraria a Constituição Federal seria assimilar a situação como uma grande oportunidade perdida.

A tal lei, no entanto, até hoje não foi assimilada pelo ordenamento jurídico e sequer foi materialmente concluída, já que estão tentando, a todo custo, consertá-la.

As complexidades da Lei 13.467/17 são tantas e tão explícitas que vários são os eventos que atestam essa realidade.

Destaque-se, inicialmente, o andamento da ADI 5.766, pela qual se questiona a constitucionalidade do artigo 790-B da CLT (caput e parágrafo 4º), que responsabiliza a parte sucumbente (vencida) pelo pagamento de honorários periciais, ainda que beneficiária da Justiça gratuita, e do artigo 791-A, que considera devidos honorários advocatícios de sucumbência por beneficiário de Justiça gratuita, vez que contrariam o princípio do acesso à Justiça e a disposição expressa da Constituição Federal, artigo 5º, inciso, LXXIV, que estabelece que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”.

Fato concreto é que a ADI 5.766, proposta pelo procurador-geral da República, em 28 de agosto de 2017, ainda não teve qualquer manifestação, em sede liminar, de seu relator, ministro Roberto Barroso, e até hoje não foi posta em pauta de julgamento.

Para complicar ainda mais as coisas, em 14 de novembro de 2017 — três dias após a entrada em vigor da lei —, foi publicada, em edição especial do Diário Oficial da União, a MP 808, cujo teor constituiu nova revelação da balbúrdia jurídica criada pela Lei 13.467/17.

A MP 808, à guisa de fazer alguns reparos, promoveu nada mais nada menos do que 85 modificações na Lei 13.467/17 e chegou mesmo a trazer algumas disposições contrárias às posições que vinham sendo publicamente manifestadas por defensores da lei, como, por exemplo, os termos e limites da parametrização da reparação (antes mal denominada “indenização”) por dano extrapatrimonial.

As alterações, inclusive, foram baseadas em muitos dos argumentos apresentados pelas avaliações críticas ao conteúdo da Lei 13.467/17, muitos deles que já haviam sido expressos nos enunciados aprovados na 2ª Jornada da Anamatra.

E se isso tudo já não bastasse para atestar a inaplicabilidade concreta da enorme maioria dos dispositivos trazidos pela Lei 13.467/17, o Tribunal Superior do Trabalho, no dia 6 deste mês, publicou a Resolução Administrativa 1.953, pela qual se resolveu constituir uma Comissão formada por nove ministros do Tribunal Superior do Trabalho, “com a finalidade de regulamentar a aplicação da Lei 13.467, de 13 de julho de 2017, aos contratos de trabalho vigentes e processos em curso”.

Nos termos do artigo 2º da referida resolução, a “Comissão disporá do prazo de 60 (sessenta) dias para ultimar a regulamentação da referida lei, prorrogável, a critério dos seus componentes, por tempo necessário para conclusão dos trabalhos”.

Ora, se as autoridades judiciárias máximas em Direito do Trabalho no Brasil precisam de 60 dias para “ultimar a regulamentação da referida lei” é porque, indubitavelmente, primeiro, a aplicação da lei envolve aspectos jurídicos extremamente complexos, tortuosos e conflituosos; e, segundo, que a lei não se apresentou ao mundo pronta para ser aplicada com o mínimo de segurança jurídica que as relações sociais exigem.

Chegamos, então, a situação atual concreta de uma lei, feita às pressas, que:

  • trouxe mais de 200 alterações na CLT, sendo que muitas delas conflitam com normas constitucionais e convencionais, contradizem termos expressos da CLT ainda em vigor e se contrapõem aos princípios jurídicos trabalhistas, notadamente, os da proteção, da melhoria da condição social dos trabalhadores e do não retrocesso;
  • motivou a formulação de 125 enunciados interpretativos e integrativos, publicados na 2ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho promovido pela Anamatra, que apenas iniciaram o processo de integração da lei ao ordenamento jurídico;
  • sofreu 85 alterações ditadas pela MP 808, sendo que os próprios termos da MP 808 trazem novos confrontos, inconsistências e inconstitucionalidades, a começar pela própria pertinência de sua edição, valendo lembrar, ainda, que a MP não foi votada até o momento e a ela foram apresentadas 967 emendas (recorde histórico);
  • está sob estudos de uma comissão no TST, que terá o prazo, prorrogável, de 60 dias para apresentar uma “regulamentação” da lei, o que, mesmo concluído, estará longe de representar uma definição a respeito, vez que é juridicamente bastante questionável a competência de um órgão jurisdicional para “regulamentar” uma lei;
  • aguarda a avaliação do STF em 18 ações: ADI 5.766 (relator ministro Barroso); ADI 5.794 (relator ministro Fachin); ADI 5.806 (relator ministro Fachin); ADI 5.810 (relator ministro Fachin); ADI 5.811 (relator ministro Fachin); ADI 5.813 (relator ministro Fachin); ADI 5.815 (relator ministro Fachin); ADI 5.826 (relator ministro Fachin); ADI 5.829 (relator ministro Fachin); ADI 5.850 (relator ministro Fachin); ADI 5.859 (relator ministro Fachin); ADI 5.865 (relator ministro Fachin); ADI 5.867 (relator ministro Gilmar); ADI 5.870 (relator ministro Gilmar); ADI 5.885 (relator ministro Fachin); ADI 5.887 (relator ministro Fachin); ADI 5.888 (relator ministro Fachin); ADI 5.892 (ainda sem relator, pois protocolada em 6/2/2018);
  • tem provocado inúmeras decisões contraditórias, notadamente no que se refere às dispensas coletivas de trabalhadores;
  • teve um de seus principais pontos, do negociado sobre o legislado, tratado nos artigos 611-A e 611-B da CLT, questionado junto à OIT, a qual, após avaliação de peritos, recomendou ao governo brasileiro rever tais dispositivos.

Ou seja, a cada dia que passa evidenciam-se os diversos problemas gerados pela reforma trabalhista, sendo que até mesmo na promoção de empregos, ainda que precários, que é o que a reforma incentiva, não se teve um resultado adicional, numericamente falando. Aliás, muito pelo contrário, diante das reiteradas dispensas coletivas, resultado da sensação, conferida pela reforma ao grande capital, da obtenção de uma espécie de poder absoluto, o que se discute é se a reforma reduziu, ou não, o número de empregos.

E, apesar de tudo isso, ainda há quem insista em tratar tão importante tema para vida de milhões de brasileiros e brasileiras como se fosse uma despretensiosa folia carnavalesca. Ora, mesmo diante de todos esses fatos, o jornal O Estado de S. Paulo, em pleno sábado de Carnaval, publica um editorial com o enredo “O sucesso da reforma trabalhista”, apoiado na alegoria de que a diminuição do número de reclamações representa, em si, um efeito positivo da reforma. Além disso, curiosamente, o próprio editorial admite que a diminuição das reclamações é fruto das incertezas jurídicas geradas pela nova lei, que pôs os advogados em estágio de espera (o que, de todo modo, não se manterá por muito tempo, já que as ações judiciais só diminuem com a efetiva redução dos conflitos). Mas para o Estadão, na sua defesa intransigente de um objeto que ele próprio demonstra não conhecer, pouco importa a coerência. Então, de fundamento algum, mas, certamente, para gerar impacto com a manchete, tira a seguinte conclusão: “A reforma trabalhista vai sendo consolidada com mais rapidez e menos resistência do que se imaginava”.

Entretanto, bem ao contrário, o que a realidade demonstra é que se está caminhando cada vez mais para dentro do labirinto jurídico criado pela reforma e quanto mais se buscam saídas para a sua aplicação, na forma como imaginaram os seus defensores, o que sequer tem apoio no próprio texto legislativo editado, mais distante se estará da saída.

Renovo a pergunta: a quem essa “reforma” interessa?

 

 

Autor: Jorge Luiz Souto Maior  é juiz do trabalho, titular da 3ª Vara do Trabalho de Jundiaí (SP), livre-docente em Direito do Trabalho pela USP e membro da Associação Juízes para a Democracia.


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