Autores: Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes Bahia, Diogo Bacha e Silva e Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira (*)
O juiz Sérgio Moro defendeu, em entrevista no dia 26 de março, que o Congresso deveria promulgar uma emenda à Constituição, fazendo um override à eventual mudança do entendimento do Supremo Tribunal Federal, quanto à possibilidade de execução antecipada da pena, decidida no HC 126.292.
Um dia após a polêmica instaurada pelo referido juiz, o deputado Alex Manente (PPS/SP) e outros parlamentares, esquecendo-se de que a Constituição da República não pode ser emendada na vigência de intervenção federal (art. 60, §1º, da Constituição), apresentaram a Proposta de Emenda à Constituição 410/2018, que pretende modificar a redação do art. 5º, inc. LVII da Constituição.
Da seguinte redação, “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, para “ninguém será considerado culpado até a confirmação de sentença penal condenatória em grau de recurso”.
Na justificativa da Proposta de Emenda à Constituição, os deputados sustentam, entre outros argumentos, que a presunção de inocência, por um lado, já estaria garantida pelo fato de que cabe à acusação fazer as provas para a condenação de eventual acusado e que, por outro, as chamadas questões de fato já se encerrariam nas decisões de segundo grau – isto é, que a partir dos graus extraordinários (STJ/STF), a discussão se daria somente sobre “o direito” e não mais sobre “os fatos”..
Além da proibição expressa do art. 60, §1º, da Constituição, quanto à tramitação de qualquer PEC na vigência de intervenção federal, é importante que sejam devidamente considerados os argumentos apresentados na exposição de motivos e se analise a constitucionalidade da proposta de emenda também em face do § 4º, do art. 60.
A PEC parte de uma concepção equivocada segundo a qual o direito possa ser cindido entre “questão de fato” e “questão de direito”, como se “os fatos” do caso pudessem fazer sentido sem “o direito” envolvido.
Uma coisa são os pressupostos de admissibilidade dos recursos, nos quais o recorrente deve alegar alguma das hipóteses constitucionais (arts. 102, III e 105, III da CR/88); outra coisa é a resolução do caso, uma vez ultrapassado o juízo de admissibilidade. Inevitavelmente, qualquer decisão jurídica considera questões de fato e de direito, eis que uma leva simultaneamente a outra, de tal modo que a decisão em 2º grau não esgota “questão de fato”.
A presunção de inocência, para dizermos com Dworkin, é um conceito interpretativo que exige ser compreendido à sua melhor luz, com coerência e integridade. Não se pode, portanto, interpretar a presunção de inocência sem considerar os princípios da legalidade penal, do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.
A PEC acaba por inverter o ônus argumentativo, que é do acusador, violando a ampla defesa e o contraditório. Assim, a condenação em segunda instância, levando à execução antecipada da pena sem que haja decisão definitiva, exigiria do próprio acusado comprovar a sua inocência.
Haverá quem defenda a constitucionalidade dessa proposta de emenda à Constituição situando o debate no argumento de que o art. 60, §4º, inc. IV, da Constituição protege o núcleo essencial dos direitos individuais, podendo haver, nesses termos, modificação ou restrição desses direitos.
Todavia, pretender aqui um suposto “núcleo essencial” é, no mínimo, problemático. Quem definiria o que é ou não o “núcleo essencial” da presunção de inocência? Seria essencial para quem? Quando é a própria Constituição que exige o trânsito em julgado? Ora, caberia colocar-se, ao menos, no lugar do réu, do acusado! Pois é dessa perspectiva que se deve perguntar pelo sentido normativo, constitucionalmente adequado, da presunção de inocência.
Afora o risco de um punitivismo (in) confesso, mais uma vez, um problema de metódica jurídica ou de teoria da decisão se insinua, quando se defende a “teoria do núcleo essencial”: “normas são valores e, portanto, são ponderáveis”.
A diferença entre licitude e ilicitude, todavia, não é uma questão de grau. E pensar que essa questão normativa possa ser tratada como mandado de otimização é, para além de uma questão de metódica jurídica, uma questão de legitimidade do próprio exercício da jurisdição: seria atribuir um imenso poder de decisão aos juízes, corroendo as garantias fundamentais mais comezinhas do processo penal democrático.
A presunção de inocência, assim, não pode ser objeto de ponderação, pois sua relativização destruiria o seu próprio sentido normativo de proteção. Afinal, ninguém é “mais ou menos” não culpado até que “mais ou menos” se prove o contrário…
O que mais impressiona naqueles que, mesmo de boa fé, acreditam na possibilidade de uma PEC desse tipo é não se darem conta de que assumem uma postura “não-garantista”, inevitável à leitura axiológica que promovem do direito. E, nesse caso, contra o próprio Alexy, para quem, aliás, há uma primazia dos direitos individuais sobre supostos bens ou interesses coletivos.
Assim, com base não apenas no §1º (proibição de emendar a Constituição durante intervenção federal), mas também no §4º, do art. 60, da Constituição, que proíbe sequer ser objeto de deliberação proposta de ementa tendente a abolir direitos e garantias individuais, cabe controle de constitucionalidade da tramitação da PEC 410/2018, seja pela impetração de mandado de segurança por parlamentar, seja por ADPF, para impedir um processo legislativo de reforma constitucional que vulnere o sentido constitucionalmente adequado da presunção de inocência como garantia individual.
Autores: Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes Bahia é professor adjunto de Direito Processual Civil do Curso de Direito da Ufop.
Diogo Bacha e Silva é doutorando em Direito pela UFRJ.
Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira é professor Titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da UFMG.