Tecnologia blockchain pode mudar a forma como pagamos tributos

Autora: Maria Ticiana Araújo (*)

 

Se acreditamos que a tecnologia já mudou significantemente a forma como os brasileiros administram e recolhem tributos, graças aos modernos softwares utilizados pelo poder público e pela iniciativa privada, é porque ainda não vivenciamos o que a tecnologia blockchain será capaz de fazer nessa área.

Permanecendo por trás da moeda criptografada bitcoin, a tecnologia blockchain é representada por uma sequência de transações digitais que, em tese, são impossíveis de ser manipuladas; por serem todas digitalmente rastreadas, os seus históricos ficam fora do alcance de edição ou exclusão. Sob a perspectiva tributária, o blockchain está sendo visto como a mais nova ferramenta digital no cenário global tributário. Mas como ele pode mudar a forma de administração e recolhimento dos tributos?

O foco dessa tecnologia é dirigido principalmente aos países que possuem tributos sobre valor agregado (VAT), que são aqueles incidentes sobre o consumo e devidos nas etapas produtivas. O ICMS brasileiro é um exemplo de tributo sobre o consumo, cujo sistema de não cumulatividade (créditos e débitos) impõe regras complexas, distintas de Estado para Estado, que exigem esforços de um grande contingente de profissionais na área contábil e fiscal, sem falar do custo de tempo para sua administração.

Veja-se que o Banco Mundial, em recente pesquisa, afirmou que no Brasil o tempo perdido com a burocracia tributária custa mais aos brasileiros do que os próprios tributos. O organismo internacional defende ainda que o uso da tecnologia — sem falar, claro, de uma significativa reforma fiscal — poderia ser uma das ferramentas para redução destes custos. Não é por menos, pois dados apontam que há mais de 3,7 milhões de regras fiscais do ICMS vigentes em todo o Brasil, que, combinadas, referem-se a 17,2 milhões de situações tributárias específicas.

Neste cenário, estudos indicam que a tecnologia blockchain, agregada à ferramenta dos contratos inteligentes, permitirá dar novos contornos até mesmo à sistemática da não cumulatividade do ICMS. Por exemplo, no momento em que o cliente efetuar o pagamento de uma fatura à empresa contratada, a plataforma blockchain calcularia o imposto incidente sobre o valor que foi agregado àquela operação.

O ICMS devido seria transferido aos cofres públicos e o valor remanescente é transferido à empresa como pagamento do contrato, tudo por meio da plataforma de pagamentos blockchain. Simultaneamente, a plataforma blockchain está calculando o ICMS devido sobre o valor agregado pelos fornecedores da empresa na venda dos insumos, efetuando a transferência aos cofres públicos do tributo devido e a diferença como pagamento do contrato.

É justamente esse cruzamento de informações, devidamente rastreadas e registradas de forma imutável, possível na plataforma blockchain, que permitirá que o ICMS recolhido pelo contribuinte seja exatamente aquele correspondente ao valor que efetivamente agregou à operação. Isso poderia afastar a burocracia da sistemática fiscal de débitos, créditos e infindáveis pedidos administrativos de ressarcimento de imposto pago a maior e acumulado na conta gráfica.

Outro ganho relevante do uso de plataforma tecnológica é que caberia ao ente público lançar as alíquotas e demais dados necessários para a apuração automática do imposto devido, evitando a obrigação desarrazoada de constante monitoramento das mudanças legislativas impostas pelos fiscos.

Por certo que essa é uma rápida análise da tecnologia blockchain despida do arcabouço constitucional e legislativo do ICMS brasileiro, o qual, de fato, prevê uma série de restrições e exceções a não cumulatividade deste imposto. Não há dúvidas de que serão necessárias as conformações constitucionais, legislativas e regulamentares pertinentes.

No entanto, os entraves políticos e legislativos não devem ser vistos como estagnadores do avanço tecnológico emergente. Há vantagens para todos os atores sociais.

Para os contribuintes, a adoção de uma plataforma como esta significa menos burocracia, redução de custos e mais eficiência. Para as autoridades fiscais representa uma redução do contingente fiscalizatório e otimização da arrecadação. Já para os profissionais da área de tecnologia e fiscal/tributária significa uma oportunidade para instruir e validar o uso correto da ferramenta tecnológica.

Vários países já estão avançando nas soluções do blockchain para administração de tributos. Luxemburgo vem sendo o percussor neste tema, investindo pesadamente em uma empresa de tecnologia chamada LuxTrust, que criou uma plataforma blockchain que será utilizada no país tanto para o processamento da declaração de imposto de renda, como para cumprimento de normas regulatórias.

Da mesma forma, recentemente, a China anunciou ao público que em breve utilizará a tecnologia blockchain para a exigência de contribuições previdenciárias e emissão de notas fiscais.

No Brasil, a adoção da nota fiscal eletrônica foi um avanço importante para administração tributária estadual e municipal. Ao permitir o compartilhamento automático das transações comerciais com a administração fazendária, reduziu-se a burocracia e aperfeiçoou-se a arrecadação. Mas ainda é preciso ir além.

Somente uma plataforma tecnológica que permita a ampla interação e análise de dados, a autoexecução de pagamentos e o rastreio e imutabilidade dos registros das transações é que parece trazer um considerável progresso à transparência e à redução da burocracia tributária e do custo financeiro do país.

Um projeto de lei em trâmite no Senado (PLS 445/2017), para unificação do Imposto Sobre Serviços (ISSQN) dos diversos municípios brasileiros, parece caminhar neste sentido. O texto introduz a ideia de um tributo sobre o consumo inteiramente dependente de uma plataforma tecnológica desenvolvida pelos próprios contribuintes, a partir de padrões definidos por um comitê de representantes dos municípios, cabendo ao ente público informar os dados necessários para a apuração automática do imposto. De fato, iniciativas como estas parecem abrir caminhos para tecnologia blockchain no Brasil.

Portanto, neste cenário, a mudança não só soa inevitável, como talvez mais célere do que foi prevista. A famosa frase de Bill Gates na qual ele afirma “Nós sempre superestimamos a mudança que vai ocorrer em dois anos e subestimamos a que vai ocorrer nos próximos dez. Não se deixe adormecer pela inércia” parece estar valendo mais do que nunca. Talvez, em matéria tributária, estejamos subestimando, inclusive, os próximos dois anos.

 

 

 

 

Autora: Maria Ticiana Araújo é advogada, sócia do escritório DSA – Jurídico & Compliance Compartilhados e mestre em Direito Comercial Internacional pela Universidade da Califórnia, EUA.


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