Autor: Renee do Ó Souza (*)
Sabe-se que o crime do artigo 89 da Lei de Licitações é punível a título doloso, em que o agente, voluntariamente, dispensa ou inexige a licitação, fora das hipóteses legais, ou deixa de observar as formalidades que a lei exige.
Embora haja certa jurisprudência que mencione a necessidade de dolo específico e efetivo dano ao erário para a caracterização desse crime, não nos parece a melhor interpretação do dispositivo. É desnecessária a comprovação de elemento subjetivo especial (“dolo específico”), visto que uma simples comparação com o crime previsto no artigo 90 da Lei 8.666/1993, face a ausência de qualquer expressão como “com o fim de”, “com o intuito de”, “a fim de”, indica que o legislador, deliberadamente, optou pela desnecessidade de finalidades especiais para a prática do delito. O dolo está na mera dispensa ou afirmação de que a licitação é inexigível, fora das hipóteses previstas em lei, tendo o agente consciência dessa circunstância.
“Mesmo nos casos em que o administrador não pretenda prejudicar o erário ou beneficiar favorito seu, mas se nega a cumprir a legislação por capricho, conveniência, comodidade pessoal ou até aversão pela burocracia, optando por contratar seus serviços e fornecedores diretamente, sem prévia licitação, a atuação persiste manifestamente reprovável, pois, consciente de que está descumprindo a lei, prefere administrar a coisa pública como se sua fosse, elegendo seus contratados sem qualquer critério objetivo e sem a mínima formalidade para a dispensa/inexigibilidade de licitação.”
Além disso, fosse necessária a intenção de causar prejuízo ao erário mediante desvio de recursos, haveria sempre uma confusão temporal com o crime de peculato tentado.
A questão se torna mais complexa nos casos em que a dispensa de uma licitação é antecedida de um parecer jurídico. Esse quadro levou ao desenvolvimento de uma sistemática de aferição do dolo pouco ortodoxa.
Foi o que fez, recentemente, o ministro Luiz Fux no Inq. 3.674/RJ, julgado em 21/2/2017, em que aventou como critério para aferir o dolo desse crime a análise da existência de parecer jurídico lavrado idoneamente pelo órgão competente, sem indício de que constitua etapa da suposta empreitada criminosa, apto a conferir embasamento jurídico ao ato, inclusive quanto à observância das formalidades do procedimento. O parecer jurídico favorável à inexigibilidade, segundo o ministro, impede a tipificação criminosa da conduta, precisamente por afastar, desde que inexistentes outros indícios em contrário, a clara ciência da ilicitude da inexigibilidade e determina o erro do agente quanto a elemento do tipo, qual seja, a circunstância “fora das hipóteses legais” (CP, artigo 20) (sic). A tese não é nova. No mesmo sentido, já decidiu antes o STF: “O dolo, consubstanciado na vontade livre e consciente de praticar o ilícito penal, não se faz presente quando o acusado da prática do crime do art. 89 da Lei n. 8.666/93 (‘Dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade’) atua com fulcro em parecer da Procuradoria Jurídica no sentido da inexigibilidade da licitação” (STF, Tribunal Pleno, Inq. 2.482/MG, rel. min. Ayres Britto, DJe, 16.fev.2012).
Ponderamos, entretanto, que o parecer prévio da consultoria jurídica, previsto no artigo 38, VI, da Lei 8.666/1993, embora obrigatório, não é vinculante, situação que restaura a plena consciência da ilicitude do fato pelo agente, ao decidir pela dispensa ou inexigibilidade da licitação.
O erro capaz de afastar o dolo é aquele fruto da falta de conhecimento atual e potencial da ilicitude. Por outro lado, o erro não é capaz de afastar o dolo, quando do agente público é exigível padrão de conduta elevado, condizente com senso de responsabilidade ínsito à sua gama de funções e aos princípios que regem a matéria.
As autoridades que decidem pela dispensa ou inexigibilidade de uma licitação ocupam posição de poder elevada na administração pública. Suas atribuições são proporcionalmente compatíveis com o grau de responsabilidade que seus atos decisórios produzem. Por isso, é dever inerente dessas autoridades manter-se adequadamente informadas em cada um dos atos que praticam.
De outro lado, é injustificável que, no atual estágio de desenvolvimento da administração pública, o gestor aja sem empenho para se (in)formar ou conhecer adequadamente a possível gama de ilegalidades que margeiam seus atos.
Se a busca pela informação é viável e o agente não se motiva para acessá-la, naquilo que Günter Jakobs denomina de “infidelidade ao ordenamento jurídico”, e mais do que isso, em casos em que é seu dever inerente à função pública, não há que se falar em erro de proibição escusável.
Tem aplicação, nesses casos, a teoria da cegueira deliberada (willfulblindness, conscious avoidance ou deliberate ignorance) que inclui na responsabilidade penal subjetiva, além dos casos de conhecimento efetivo dos elementos objetivos que configuram uma conduta criminosa, aqueles cujo desconhecimento foi, intencionalmente, pretendido pelo agente. Em outras palavras, nesses casos, o agente pode e deve conhecer os elementos objetivos da conduta criminosa, mas prefere, deliberadamente, pôr-se ou manter-se na ignorância. O agente não toma ciência das ilegalidades porque deliberadamente se esquiva de conhecê-las.
Desse modo, mesmo diante de um parecer jurídico favorável à inexigibilidade ou à dispensa da licitação, é dever do agente público pautar sua decisão pelas regras do regime jurídico da administração, tais como, economicidade, planejamento, finalidade etc.
É sua obrigação constitucional adotar medidas para conhecer e informar-se sobre os inúmeros e multidisciplinares riscos, sejam de natureza contábil, financeira, jurídica ou social, capazes de levar à ilicitude da conduta. A ausência desse tipo de cautela é apta a compor a consciência direta do tipo subjetivo, como em casos em que parecer se utiliza de embasamento jurídico (doutrinário, legal e jurisprudencial) ou tese jurídica inaceitável ou teratológica, ou não aponta flagrantes vícios, de forma que maculam a legalidade do ato.
Além disso, no crime ora em comento, a ilegalidade da dispensa ou inexigibilidade da licitação é objetivamente aferível, porque seus pressupostos estão previstos textualmente na Lei 8.666/1993, o que, na maioria das vezes, permite ao agente público prever e evitar a conduta proibida.
Sob essas circunstâncias fáticas objetivas, é possível ao julgador aferir o conhecimento, a intenção ou o propósito do crime em análise, exatamente como preconizado na Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, conhecida como Convenção de Mérida contra a Corrupção, internalizada no Brasil por meio do Decreto 5.687/2006 e Decreto Legislativo 348/2005, que prevê no artigo 28: “O conhecimento, a intenção ou o propósito que se requerem como elemento de um delito qualificado de acordo com a presente Convenção poderão inferir-se de circunstâncias fáticas objetivas”.
Para além da afirmação óbvia de que a aferição do dolo no crime de dispensa indevida de licitação deve ser feita caso a caso, pretende-se deixar registrado que a existência de parecer jurídico que antecede essa decisão não é escudo absoluto para a verificação da intenção do agente. A teoria da cegueira deliberada serve como ponto de partida para aferir se a autoridade administrativa tinha meios para conhecer a ilicitude da decisão, mas permaneceu, deliberadamente, agindo na ignorância.
Autor: Renee do Ó Souza é promotor de Justiça em Mato Grosso, membro-auxiliar da Corregedoria Nacional do Conselho Nacional do Ministério Público, professor no Cers, mestrando no Centro Universitário de Brasília (Uniceub) e pós-graduado em Direito Constitucional, em Direito Processual Civil, em Direito Civil, Difusos e Coletivos pela Escola Superior do MP de Mato Grosso.