Autora: Viviane Alves de Morais (*)
Duvidar é uma das principais tarefas de quem realiza a atividade jurisdicional, em especial nos campos penal e trabalhista. Ao juiz é dado duvidar sempre, até que uma das partes o convença por meio de fatos, provas e argumentos de direito. Por isso, a dúvida é um dos pressupostos do ato de julgar: quando a lide se forma, resta ao juiz questionar se o pedido que lhe é apresentado possui elementos que tornem verossímil o pleito apresentado.
Em sociedades modernas, há áreas da atividade jurisdicional em que a dúvida do julgador se orienta segundo premissas estabelecidas a partir da disparidade de armas entre as partes. Por exemplo: no Direito do Trabalho, consagrou-se durante o século XX uma regra, comumente caracterizada como princípio, mas que atua como se regra fosse (pois seu comando é direto e aplicável de imediato), dirigida ao julgador: “Na dúvida, atenda ao trabalhador”, descrita entre os versados como in dubio pro operario. Esse princípio — ou, no caso do ato de julgar, essa regra — encontra parente remoto quando se faz a leitura sistemática das normas jurídicas aplicáveis ao ato de julgar casos submetidos ao Direito Penal. Trata-se do in dubio pro reo, que, traduzido para o leigo, significaria algo como, “na dúvida, absolva-se o réu”.
Na dúvida, absolva-se o réu. Por quê? Por muitos motivos. Absolva-se o réu, pois a ordem jurídica do Estado de Direito prefere absolver dezenas ou centenas de culpados a ver um único inocente sofrer a injustiça da punição indevida, que resultaria de um ato ilícito praticado pelo próprio Estado. Absolva-se o réu, pois em Direito Penal interpretam-se as regras sempre da forma mais restritiva possível, de modo a produzir a interferência mínima necessária à sociedade, sempre direcionada exclusivamente ao responsável pelo ato punível. Afinal, o Direito Penal é sempre a última alternativa. Representa o limite do exercício do poder do Estado-instituição sobre o tecido social, uma vez que dá a esse Estado poder sobre os corpos dos jurisdicionados, entendido aqui como a restrição das liberdades e, em essência, da maior liberdade conferida a cada indivíduo: a de ir e vir. Assim é que atua o Estado de Direito, desde que respeitador de liberdades e garantias fundamentais ordenadas no velho pensamento liberal do século XVIII e expressas pelo ideário iluminista que se funde ao Direito pós-Revolução Francesa.
Isto posto, é momento para fixar o ponto controverso desta breve nota: qual seria o papel de expressão recente encontrada em julgados dos tribunais superiores e que se espalha pelas decisões de primeira instância, qual seja, in dubio pro societate?
Fato é que uma breve pesquisa ao ementário do STF traz referências ao in dubio pro societate já em 2008, em acórdão relatado pelo ministro Menezes Direito (RE 540.999), que explica que, nos casos de crime doloso contra a vida, a prolação de sentença de pronúncia — ou seja, de sentença do juiz de 1º grau que se limita a pronunciar o réu, submetendo-o ao júri como juiz natural nesse tipo de delito — não se exige acerbo probatório que subsidie a certeza da autoria. Para a pronúncia, é necessário demonstrar apenas a materialidade do crime e os indícios de autoria.
1. No procedimento dos crimes de competência do Tribunal do Júri, a decisão judicial proferida ao fim da fase de instrução deve estar fundada no exame das provas presentes nos autos. 2. Para a prolação da sentença de pronúncia, não se exige um acervo probatório capaz de subsidiar um juízo de certeza a respeito da autoria do crime. Exige-se prova da materialidade do delito, mas basta, nos termos do artigo 408 do Código de Processo Penal, que haja indícios de sua autoria. 3. A aplicação do brocardo in dubio pro societate, pautada nesse juízo de probabilidade da autoria, destina-se, em última análise, a preservar a competência constitucionalmente reservada ao Tribunal do Júri. 4. Considerando, portanto, que a sentença de pronúncia submete a causa ao seu Juiz natural e pressupõe, necessariamente, a valoração dos elementos de prova dos autos, não há como sustentar que o aforismo in dubio pro societate consubstancie violação do princípio da presunção de inocência (RE 540.999).
Em 2017, o ministro Ricardo Lewandowsky relatou outro acórdão de caso em que o embate entre o pro reo e o pro societate versou novamente sobre sentença de pronúncia em crime de competência do tribunal do júri e reafirmou o entendimento do STF:
III – O acórdão recorrido se encontra consentâneo com o entendimento desta Corte, no sentido de que na sentença de pronúncia deve prevalecer o princípio in dubio pro societate, não existindo nesse ato qualquer ofensa ao princípio da presunção de inocência, porquanto tem por objetivo a garantia da competência constitucional do Tribunal do Júri (ARE 986.566 AgR)
Poder-se-ia trazer outros julgados do tribunal a esta nota, mas, por se supor breve, a nota deixa ao leitor a oportunidade de buscar outros exemplos desse entendimento. E são muitos os exemplos!
A aplicação do in dubio pro societate, naquele juízo de cognição, resume-se a mera proteção à competência excepcional conferida ao tribunal júri; o próprio artigo 408 do CPP versa exclusivamente sobre os procedimentos relativos aos processos de competência do tribunal do júri, em especial à fase de acusação e instrução preliminar. Assim, frente a um caso de crime doloso contra a vida cuja materialidade do crime seja incontroversa e haja indício de autoria, pode então o juiz togado pronunciar o réu, levando-o a júri como juízo natural desse tipo de delito.
Essa seria uma hipótese concreta em que se afasta a presunção de inocência — ou seja, o velho in dubio pro reo — em favor da dúvida a ser sanada pelo júri nos casos em que o júri é juiz natural para a causa, afastadas aqui as discussões jurídicas sobre o uso e mesmo sobre a manutenção do júri como campo em que o exercício da jurisdição toma ares de “Justiça popular”. Para bom entendedor, Poder Judiciário não é esfera para exercício da Justiça, e sim para aplicação do Direito. Afinal, Justiça é valor, Justiça é um ideal a ser atingida, uma utopia desejada que possa decorrer da boa aplicação das normas jurídicas escritas pelo legislador que, ao positivá-las, busca concretizar os desejos e ideal da sociedade.
No caso do tribunal do júri, o pro societate não configura proteção à sociedade como um todo, mas proteção à competência da sociedade enquanto juiz natural de causas específicas. Como explicar então a incidência desse princípio em casos de denúncia cujos delitos não versam sobre crimes dolosos contra a vida, para os quais o juiz natural é, por força de lei, o magistrado de carreira, concursado, agente público que integra o Poder Judiciário e tem o dever de aplicar as normas jurídicas em sua sistematicidade e em conformidade aos princípios norteadores da interpretação do Direito? A questão adquire importância ainda maior quando se afasta a presunção de inocência em denúncias que versam sobre crimes da legislação extravagante.
Há julgados do STJ em que os ministros daquela corte reconheceram o afastamento da presunção de inocência para delitos ligados à improbidade administrativa. O julgamento do REsp 1.192.758-MG exemplifica como a ampliação do uso do in dubio pro societate pode operar fora da esfera dos crimes submetidos ao tribunal do júri: nos casos de improbidade administrativa, deferir-se-ia o prosseguimento da ação penal para que a instrução processual comprove a existência ou não de ato ímprobo, dano ou prejuízo ao erário público, ofensa aos princípios da administração pública ou elementos subjetivos capazes de comprovar ato ímprobo.
Isso faz suspeitar que, em ações que versem sobre atuação do agente público, o STJ aceitou como “princípio” do Direito Penal a teoria aplicável aos processos de competência do tribunal do júri e que se presta apenas à proteção da competência do júri como juiz natural. Seria essa afirmação correta? Leia-se a ementa do acórdão:
DIREITO ADMINISTRATIVO. REQUISITOS PARA A REJEIÇÃO SUMÁRIA DE AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA (ART. 17, § 8º, DA LEI 8.429/1992).
Após o oferecimento de defesa prévia prevista no § 7º do art. 17 da Lei 8.429/1992 — que ocorre antes do recebimento da petição inicial —, somente é possível a pronta rejeição da pretensão deduzida na ação de improbidade administrativa se houver prova hábil a evidenciar, de plano, a inexistência de ato de improbidade, a improcedência da ação ou a inadequação da via eleita. Isso porque, nesse momento processual das ações de improbidade administrativa, prevalece o princípio in dubio pro societate. Esclareça-se que uma coisa é proclamar a ausência de provas ou indícios da materialização do ato ímprobo; outra, bem diferente, é afirmar a presença de provas cabais e irretorquíveis, capazes de arredar, prontamente, a tese da ocorrência do ato ímprobo. Presente essa última hipótese, aí sim, deve a ação ser rejeitada de plano, como preceitua o referido § 8º da Lei 8.429/1992. Entretanto, se houver presente aquele primeiro contexto (ausência ou insuficiência de provas do ato ímprobo), o encaminhamento judicial deverá operar em favor do prosseguimento da demanda, exatamente para se oportunizar a ampla produção de provas, tão necessárias ao pleno e efetivo convencimento do julgador. Com efeito, somente após a regular instrução processual é que se poderá concluir pela existência de: (I) eventual dano ou prejuízo a ser reparado e a delimitação do respectivo montante; (II) efetiva lesão a princípios da Administração Pública; (III) elemento subjetivo apto a caracterizar o suposto ato ímprobo. REsp 1.192.758-MG, Rel. originário Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Rel. para acórdão Min. Sérgio Kukina, julgado em 4/9/2014. [g.n.]
Aparentemente, a resposta é sim: para agentes públicos, afasta-se a presunção de inocência frente à presença de indícios de atos ímprobos e de indícios de materialização de delito cometido pelo agente. No entanto, admitir-se essa leitura ampliada da imposição da norma penal, que torna a ação penal fase supostamente adequada à investigação, implica reconhecer que a fase de inquérito, constituída por procedimento de caráter administrativo que resulta em investigação dos fatos e constituição mínima de provas de materialidade e indícios concretos de autoria, não foi suficiente para trazer à denúncia os elementos essenciais à constituição do direito de agir conferido ao Estado para o exercício do ius puniendi.
Curiosamente, o velho Direito Penal ensinado nos bancos das faculdades até pouco tempo atrás baseava o exame da denúncia oferecida pela autoridade a partir da “justa causa” e da presença de (i) materialidade do crime e (ii) indícios de autoria. Por isso o também velho artigo 41 do Código de Processo Penal ordena que a denúncia deve conter a exposição do fato criminoso com todas as suas circunstâncias. Pode-se duvidar da autoria — e por isso a ação penal se presta a ser fase de cognição do dolo ou da culpa, ou mesmo do grau de participação do denunciado —, mas aceitar que a ação penal seja fase de caracterização da materialidade do crime é admitir que ainda não há nem mesmo certeza do crime.
O tema é essencial e vale à pena ser repetido: é de se aceitar o conhecimento parcial da autoria ou sua indicação por indício, mas não se pode aceitar denúncia por conduta que não seja completamente descrita como crime. A mera suspeita de crime de improbidade, ou de crime contra licitação, ou qualquer outro crime cometido contra a administração pública só poderá sair da esfera administrativa de investigação se e somente se houver descrição concreta, circunstanciada e comprovada do crime. A ação penal não pode ser rebaixada à fase de investigação complementar em prol da ampliação do in dubio pro societate, retirado de seu devido topos legal — a análise de competência do tribunal do júri.
O velho Cesare Beccaria, em sua luta heroica contra o direito do Ancien Regime nos diria: nullun crimen nulla poena sine lege. Se não há crime (ou seja, sem materialidade e comprovação do crime, tais como o corpo que materializa o crime dolos contra a vida, ou no caso da improbidade administrativa, dano efetivo), haveria denúncia a ser feita e, consequentemente, haveria pena a ser aplicada? A justa causa no processo penal obriga o acusador a fornecer em juízo, no momento da denúncia, prova cabal da materialidade do crime. Se o órgão de acusação não possuir tais provas, mas meros indícios, como pode ele exercer a competência que lhe foi conferida para acusar se essa competência é um poder-dever limitado legalmente, submetido ao controle da legalidade estrita imposto à administração pública? E mais: caso exercido em desconformidade à legalidade estria, o poder-dever de acusar, exercido pelo órgão acusatório, resulta em ato abusivo que produz dano à imagem do indiciado/acusado, que sofrerá com as consequências das fases de produção de prova, prestação de informações e de sentença. Quiçá, até mesmo com uma provável fase recursal, a depender do conteúdo da sentença.
É por isso que, para evitar o exercício abusivo da prerrogativa acusatória, a denúncia só poderá ser aceita sob a presença de prova da materialidade do crime. Sem esse item, há que ser rejeitada liminarmente pelo juiz para todo e qualquer crime, exceto nos casos em que a competência para julgar é do tribunal do júri, que não constitui juiz concursado. Lembre-se: o membro do júri não é agente público eletivo, delegado, comissionado ou concursado. É agente público honorífico: recebe o convite para participar do júri e apenas neste ato integrará a administração pública sem receber qualquer punição por atos cometidos sem o devido respeito à legalidade. Até por isso, o tribunal do júri sempre é presidido por juiz togado, a quem se obriga fazer respeitar os elementos mínimos de legalidade durante essa forma excepcionalíssima de julgamento do réu.
Causa, portanto, estranheza a menção ao in dubio pro societate em qualquer caso que não se submeta ao tribunal do júri.
Por isso parece que o velho Direito Penal, aquele perscrutado e organizado em tempos em que a linguagem legal era mais simples e se propunha compreensível ao grande público, ainda impele o julgador a reconhecer: para prolação de sentença de pronúncia, in dubio pro societate.
Sabendo-se que o “societate” refere-se à competência do tribunal do júri para os casos em que a gravidade do crime doloso contra a vida afasta a competência do juiz togado e investe a sociedade, por força de seus jurados, agentes públicos honoríficos, da competência para julgar, condenando ou absolvendo o réu.
Para todos os outros casos, competência do juiz togado. Para todos os outros casos, interpretação restritiva da norma penal. Para todos os outros casos, imposição da justa causa como critério para exercício da ação penal. Imposição ao órgão acusatório da obrigação de demonstrar a materialidade completa do crime, mesmo que haja dúvida sobre a autoria.
Para todos os outros casos, in dubio pro reo.
Autora: Viviane Alves de Morais é advogada e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo (USP).