A Suspensão de Tutela Antecipada 175 e a judicialização da saúde

Autor: Márcio Santoro Rocha (*)

 

1. Introdução
A Suspensão de Tutela Antecipada 175 foi formulada pela União no STF contra acórdão proferido pela 1ª Turma do TRF-5. A decisão a que a União buscava suspender determinou-lhe o fornecimento do medicamento Zavesca (princípio ativo miglustate) a paciente portadora da patologia denominada Niemann-Pick Tipo C.

Tratou-se do primeiro grande julgado envolvendo o tema do direito à saúde no STF após a Audiência Pública 4, convocada em 2009 pelo STF, que promoveu o debate dos diversos setores envolvidos no tema saúde pública, na busca por respostas à crescente judicialização. As conclusões do voto do seu relator, ministro Gilmar Mendes, fixaram parâmetros judiciais a serem seguidos em ações do gênero, chancelados pelo tribunal.

Embora tais parâmetros não sejam vinculantes, não impedem que a jurisprudência construída possa ser seguida pelas demais instâncias. Isso porque “a decisão ostenta a força intelectual e persuasiva da mais alta Corte do País”.

No presente trabalho, o foco são esses parâmetros à luz da integralidade, diretriz constitucional do Sistema Único de Saúde.

2. A questão da integralidade
O que é integralidade? Quando se trata do tema judicialização da saúde, é questão central. A CF faz referência a atendimento integral enquanto diretriz do SUS no artigo 198, II.

Ruben Mattos leciona:

Voltando à pergunta inicial, diríamos que a integralidade não é apenas uma diretriz do SUS definida constitucionalmente. Ela é uma “bandeira de luta”, para de uma “imagem objetivo”, um enunciado de certas características do sistema de saúde, de suas instituições e de suas práticas que são consideradas por alguns (diria eu, por nós), desejáveis. Ela tenta falar de um conjunto de valores pelos quais vale lutar, pois se relacionam a um ideal de uma sociedade mais justa e mais solidária (Mattos, 2001, p. 41).

Ruben Mattos relaciona alguns sentidos de integralidade: a) integralidade como traço de boa medicina; b) integralidade como modo de organizar as práticas; c) integralidade e políticas especiais.

O primeiro sentido liga-se ao movimento que ficou conhecido como medicina integral. “Em linhas gerais, a medicina integral criticava o fato de os médicos adotarem diante de seus pacientes uma atitude cada vez mais fragmentária. Inseridos num sistema que privilegiava as especialidades médicas (…)” (Mattos, 2001, p. 44).

O segundo vê a integralidade como modo de organizar as práticas, tratando-se de crítica à dissociação entre as práticas de saúde pública e assistenciais.

O terceiro sentido é o da integralidade e políticas especiais, e o que se relaciona à judicialização da saúde:

Um outro conjunto de sentidos do princípio da integralidade é relativo às configurações de certas políticas específicas, chamadas aqui de políticas especiais. São políticas especificamente desenhadas para dar respostas a um determinado problema de saúde, ou aos problemas de saúde que afligem um certo grupo populacional. Poderíamos falar que esse terceiro conjunto de sentidos de integralidade trata de atributos das respostas governamentais a certos problemas de saúde, ou às necessidades de certos grupos específicos (Mattos, 2001, 57-8).

Por fim, é imperioso ressaltar a conclusão do autor:

Subjacente a todos os sentidos de integralidade que aqui exploramos (e possivelmente a outros aqui não ventilados) esteja um princípio de direito: o direito universal ao atendimento das necessidades de saúde. A partir desse direito, o princípio da integralidade talvez nos oriente na busca da resposta à seguinte pergunta: como nós podemos oferecer respostas abrangentes e adequadas às necessidades de saúde que se nos apresentam? (Mattos, 2001, p. 63).

Os parâmetros estabelecidos na STA 175 serão vistos de forma crítica com base na resposta à pergunta anteriormente formulada por Ruben Mattos: esses parâmetros traçados oferecem uma resposta abrangente e adequada (integral) às necessidades de saúde que são judicializadas.

3. Os parâmetros estabelecidos na STA 175
Após a audiência pública prévia à STA 175, foi lançada pelo ministro Gilmar Mendes uma reflexão sobre o princípio da integralidade, mostrando sua centralidade na discussão:

Quanto ao princípio da integralidade do sistema, importa analisar as consequências do fornecimento de medicamentos e insumos sem registro na Anvisa ou não indicados pelos protocolos e pelas diretrizes terapêuticas do SUS? Por que os medicamentos prescritos ainda não se encontram registrados? Haverá um descompasso entre as inovações da medicina e a elaboração dos protocolos e das diretrizes terapêuticas? Há realmente eficácia terapêutica nos medicamentos não padronizados que vem sendo concedidos pelo Poder Judiciário? Esses medicamentos possuem equivalentes terapêuticos oferecidos pelo SUS capazes de tratar adequadamente os pacientes? Há resistência terapêutica aos medicamentos padronizados? (…) (Machado, 2014, 563).

Os parâmetros podem assim ser sintetizados:

1) É necessário, inicialmente, perquirir se há uma política pública estatal que abranja a prestação de saúde pleiteada pela parte. Nestas hipóteses, o judiciário deve intervir para seu cumprimento no caso de omissões ou prestação ineficiente.

2) Caso o primeiro ponto não esteja presente, em seguida, o juiz precisa verificar se a prestação de saúde pleiteada está contida nos protocolos do SUS, caso não esteja, é preciso distinguir se:

2.1) A não prestação decorre de uma omissão legislativa ou administrativa, de uma decisão administrativa de não fornecê-la, ou de uma vedação legal a sua dispensação. No caso de omissão, o registro na ANVISA é condição imprescindível para o fornecimento de medicamentos, impedindo sua importação (com exceção dos medicamentos adquiridos por intermédio de organismos multilaterais internacionais, desde que utilizados em programas em saúde pública do Ministério da Saúde). Na hipótese de decisão administrativa de não fornecer, o juiz deve analisar se o SUS fornece tratamento alternativo, que será privilegiado em detrimento de outros. Porém, poderá haver contestação judicial do ponto no caso de ineficácia do tratamento;

2.2) Os medicamentos e tratamentos são experimentais; caso o sejam, o Estado não está obrigado a fornecê-los;

2.3) Os tratamentos novos ainda não foram incluídos nos protocolos do SUS, mas são fornecidos pela rede particular de saúde. Nesses casos, os tratamentos podem ser determinados, desde que seguidos de ampla instrução probatória e com reduzida possibilidade de deferimentos cautelares.

4. Análise crítica dos parâmetros à luz da integralidade
O foco central da integralidade quanto à judicialização da saúde se dá no 3º sentido trazido por Ruben Mattos: integralidade e políticas especiais.

Dos parâmetros, extrai-se uma reverência aos protocolos de diretrizes terapêuticas já estabelecidos no SUS. Ou seja, a regra é a observância do que foi fixado pela administração, sendo consentâneo ao princípio constitucional da separação de Poderes (artigo 2º da CF), cabendo ao Judiciário apenas intervir em caso de violação ou ameaça de violação a direito (artigo 5, XXXV, da CF). Quando se busca o cumprimento de determinado protocolo já estabelecido, e o caso se amolda ao mesmo, discussão não há quanto à existência do direito subjetivo.

Nos itens 2.1., 2.2. e 2.3 tratados no capítulo anterior, encontram-se as fontes de tensão que levam às polêmicas envolvendo judicialização da saúde e integralidade: o que fazer quando a prestação pleiteada não está contida nos protocolos do SUS?

Os itens 2.1., 2.2., 2.3. estabelecem parâmetros. Entretanto, devem ser filtrados de forma crítica. O norte aqui adotado para crítica foi colocado ao se tratar da integralidade, ecoando a pergunta formula por Rubens Mattos, que serve como filtro para aferição do princípio da integralidade: esses parâmetros oferecem uma resposta abrangente e adequada às necessidades de saúde?

Primeiramente, verificar-se-á como esses parâmetros podem levar a uma interpretação demasiadamente limitadora do alcance da integralidade. Em um segundo momento, em como esses parâmetros podem ter o efeito oposto, extrapolando o alcance desse princípio.

No que concerne ao parâmetro “2.1”, a inexistência de registro na Anvisa não significa que o medicamento não seja a priori seguro. Há de se cogitar da demora burocrática acima do razoável para que um medicamento seja registrado na Anvisa. E se esse medicamento já é registrado em agências notoriamente reconhecidas mundo a fora, tal como a FDA? A simples negativa por causa desse fator pode ser considerada adequada?

Quanto aos tratamentos experimentais, o que seria isso? A jurisprudência frequentemente debate:

Nesta toada, a recusa pelo plano de saúde, sob a justificativa de inexistência de cobertura para tratamento experimental, limitando-se a alegar que a bula do remédio prescrito não contempla a doença do apelante (indicação OFF LABEL), não constitui óbice ao seu fornecimento. Ressalto que, ainda que o medicamento prescrito não encontre previsão na ANVISA, para tratamento específico da doença do autor (purpura), isso não significa que há uma proibição em relação à utilização do medicamento pelo segurado, tendo em vista que, frise-se, o medicamento pode ser receitado pelo médico especialista” (grifamos).
(Acórdão 955.606, unânime, relator: ALFEU MACHADO, 1ª Turma Cível, Data de julgamento: 20/7/2016)

O conceito experimental nem sempre é claro para o operador do Direito, e ainda no campo da Medicina tal qualificação pode ser controvertida. E como se está diante não raro de questões de vida ou morte, afigura-se temerário qualificá-la como tal em muitos desses casos. Ainda onde isso se mostrava patente — como da fosfoetanolamina — chegou-se ao STF após decisões que obrigavam a USP a oferecer o composto, sendo então suspensa (STA 828).

Por fim, no item 2.3., os tratamentos novos ainda não foram incluídos nos protocolos do SUS, mas são fornecidos pela rede particular. Nesses casos, podem ser deferidos, desde que seguidos de ampla instrução probatória e com reduzida possibilidade de deferimentos cautelares. Será, entretanto, adequada essa resposta à demanda de medicamentos, que, em regra, é de caráter urgente? Haverá efetividade da jurisdição?

Por outro lado, com o risco de se alargar indevidamente o espectro de incidência da integralidade, os parâmetros estabelecidos também podem levar a erros. Há casos de demandas movidas por influência de forças econômicas interessadas em introduzir procedimentos e medicamentos desnecessários, seja por ineficácia, seja pelo protocolo atual já suprir. É o que se chama de “pressões especulativas”:

Em que pese a relevância e justificativa da maioria destas demandas, cabe refletir sobre uma parte delas, oriunda da necessidade de medicamentos e procedimentos ”novos” ainda não previstos nas normas do SUS.

Atribuímos parte destas demandas ao que chamamos de “pressões especulativas” das forças representadas pelos meios de comunicação e da chamada “inovação tecnológica”, que por vezes estão associadas à idéia de “consumo de tecnologias da saúde”, agindo no aumento da pressão por cobertura desses novos itens.(CARVALHO; PINHEIRO; FRANÇA; ASENSI, 2007; BUCHALLA; LOPES, 2008; FANTÁSTICO, 2008; JORNAL NACIONAL, 2010; COLLUCI, 2012, p.4 e 5)

Assim, o parâmetro estabelecido reza que o juiz deve analisar se o SUS fornece tratamento alternativo, podendo haver superação no caso de ineficácia. A alegação de ineficácia, contudo, dificilmente poderá ser atacada a contento pela ré, notadamente pela urgência que esses casos demandam, e ainda por conta da incerteza ínsita ao campo das ciências médicas, muitas vezes artificialmente fomentadas por pressões especulativas. O mesmo vale para tratamentos experimentais.

Com relação aos tratamentos novos não incluídos nos protocolos do SUS, mas existentes na rede particular, há procedimentos que são mais caros, porém surtem o mesmo efeito que mais baratos oferecidos pelo SUS. A depender do plano contratado, podem consistir em um plus de conforto, mas sem influência na eficácia.

Por fim, a integralidade jamais será absoluta em qualquer sistema de saúde. Ainda que a inexistência de orçamento específico não seja óbice para a decisão judicial, a limitação daquele serve de freio a uma visão de integralidade irreal que comprometa o sistema como um todo, sendo que esses limites estão no cerne da necessidade de fixação desses parâmetros:

O direito à saúde deve ser implementado dentro do montante de recursos constitucionais destinados ao seu financiamento. (…) Embora se questione a ainda baixa disponibilidade de recursos para o SUS, mesmo que os percentuais conferidos sejam alocados, ainda assim haverá limites impostos pelo financiamento (SILVA JUNIOR, ALUISIO G., COSTA, M. G. L., PALHEIRO, P. H. D., GUIMARÃES, R. C. M, 2013, p.4)

5. Conclusão
A Suspensão de Tutela Antecipada 175 do STF foi paradigmática por, após amplo debate público, estabelecer parâmetros para resolução de feitos relacionados à judicialização da saúde.

Longe de serem indenes de questionamentos, as diretrizes traçadas trazem dúvidas quando submetidas aos casos concretos, à luz da integralidade.

Aplicados literalmente, os parâmetros podem alargar ou afinar indevidamente o princípio da integralidade, razão pela qual se exige do julgador uma análise crítica do caso concreto, a fim de se evitar decisões que, embora formalmente adequadas àqueles parâmetros, caminhem de encontro ao princípio em testilha, que, por seu assento constitucional, merece primazia do intérprete.

 

 

 

Autor: Márcio Santoro Rocha é juiz federal, ex-advogado da União (2005-2015) e mestrando em Justiça Administrativa da Universidade Federal Fluminense (UFF).


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