Autores: Guilherme Barcelos, Anderson Alarcon e João Vitor Borges Paulino (*)
1. Introdução
O presente artigo objetivará perquirir de quem seria a cadeira parlamentar remanescente, considerada a perda do mandato daquele representante popular considerado “infiel”. Não se ignorará, aqui, que a reforma eleitoral de 2017 baniu as chamadas coligações partidárias para as eleições proporcionais (vereadores, deputados estaduais e deputados federais) — EC 97/2017 —, que terá efeitos a partir de 2020. Ocorre que representação popular municipal, formada em 2016, assim o foi à luz do regramento legal de então, que permitia as referidas coligações.
Com as eleições gerais de 2018 se avizinhando, e se utilizando (erroneamente) da chamada “janela partidária”, e sem justa causa, portanto, muito vereadores que almejam concorrer nesse escrutínio estão “trocando de partido político”, hipótese cristalizadora da dita infidelidade partidária. Noutras palavras, então, a questão é: na hipótese de perda de mandato por infidelidade partidária, a quem deverá ser dirigida a cadeira parlamentar vaga? Ao primeiro suplente do partido ou ao primeiro suplente da coligação partidária (na hipótese de terem celebrado coligação proporcional no pleito eleitoral formador da representação, evidentemente)? Como recorte, focaremos na jurisprudência consagrada sobre o tema no âmbito do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral.
2. Da jurisprudência do STF e do TSE sobre o tema — “o paradoxo da infidelidade partidária”
A jurisprudência eleitoral desde há muito vem enfrentando esse tema à luz da problemática da fidelidade partidária, concluindo que a “observância dá-se no estrito âmbito do candidato e do partido ao qual é filiado […] o mandato pertence ao partido político, pelo qual concorre o candidato” (STF, MS 30.260/DF); “a perda de mandato por infidelidade partidária é matéria totalmente diversa da convocação de suplentes no caso de vacância regular do mandato eletivo” (STF, MS 30-459, rel. min. Ricardo Lewandowski). Em sede de controle concentrado de constitucionalidade, ou repercussão geral, portanto, não há, salvo melhor juízo, manifestação do STF.
Já na esfera de atuação do TSE, há uma considerável cadeira decisória a afirmar que, na hipótese de perda de mandato por infidelidade partidária, a vaga remanescente seria ocupada pelo primeiro suplente do partido, não da coligação. Por exemplo: “O precedente do Supremo Tribunal Federal (MS 30.260/DF, Rel. Min. Cármen Lúcia) não serve de balizamento para o deslinde do caso em exame, sobretudo porque cuida de matéria distinta, qual seja, regula os efeitos da vacância do mandato parlamentar em decorrência do licenciamento de seus titulares para o exercício de outras funções; a toda evidência não se discutiu no mencionado precedente a ordem de vocação para os casos de infidelidade partidária” (Pet. 757-34.2013.6.00.000, de 9.9.2014). Assim sendo, “o mandato pertence ao partido e, em tese, estará sujeito à sua perda o parlamentar que mudar de agremiação partidária, ainda que para legenda integrante da mesma coligação pela qual foi eleito” (TSE. Resolução 22.580, de 30/8/2007, min. Caputo Bastos).
Portanto, em se tratando de infidelidade partidária, atribui-se a titularidade da vaga fruto da perda do mandato do trânsfuga ao partido político (a ser ocupada pelo primeiro suplente correspondente), mesmo tendo concorrido por meio de coligação partidária. Ignora-se, pois, a própria lista nominal de eleitos no âmbito do sistema proporcional na hipótese de formação de coligações. O instituto da fidelidade partidária, que veio à tona justamente para preservar o sistema proporcional e dar concretude à vontade popular, o ataca. Se o preenchimento de cargos vagos é definido em função da coligação partidária, contemplando a lista de candidatos mais votados, não há (ou haveria) razão para não se aplicar tal entendimento também às hipóteses de infidelidade partidária. Eis, portanto, o alegado “paradoxo da infidelidade partidária”.
3. De como a jurisprudência dominante é equivocada: a resposta constitucionalmente adequada para a ocupação da vaga remanescente na hipótese de perda de mandato por infidelidade partidária
A jurisprudência dominante (quase que uníssona) sobre o tema é peculiar, porquanto antinômica. Qual a razão? Ora, a representação parlamentar, eleita pelo sistema proporcional, foi formada a partir da coligação, não do partido político isoladamente considerado. Em suma, no sistema proporcional adotado pelo legislador brasileiro, “a formação da lista de eleitos e suplentes é feita a partir dos candidatos mais votados e apresentados por determinada coligação que possui direitos assegurados por lei” (STF, MS 30-459, rel. min. Ricardo Lewandowski).
A filiação partidária estabelece um vínculo jurídico entre o cidadão e a entidade partidária. É regulada nos artigos 16 a 22-A da Lei 9.096/95 (Lopp), bem como no estatuto da agremiação. Só pode se filiar a um partido quem estiver no pleno gozo de seus direitos políticos e atenda aos requisitos postos na lei e em seu estatuto. O princípio da autonomia partidária assegura à agremiação o poder de definir as regras e os critérios que entender pertinentes para a admissão e o regime de continuidade dos filiados, o que deve ser fixado no estatuto, sendo assegurada a igualdade de direitos e deveres (Lopp, artigo 4º).
Por sua vez, o mandado representativo é outorgado pelos eleitores, dentro de uma circunscrição eleitoral, conferindo e atribuindo ao mandatário o direito e dever de representá-lo. Diferentemente do mandato imperativo ou até mesmo do responsivo. Na democracia representativa, o povo concede um mandato a alguns cidadãos, para, na condição de representantes, externarem a vontade popular e tomarem decisões em seu nome, como se o próprio povo estivesse governando[1].
Já as coligações partidárias assumem caráter jurídico (de “quase pessoa jurídica”, no dizer de Almeida[2], ou de “pessoa jurídica pro tempore” — TSE, Acórdão 24.531, rel. min. Luiz Carlos Madeira) no período eleitoral, consubstanciando-se basicamente num “grande partido” —, uma união de duas ou mais agremiações partidárias que funcionam como uma só. Possuem previsão constitucional, vide artigo 17, parágrafo 1º; e infraconstitucional, a partir da Lei 9.504/1997 em seu artigo 6º e seguintes, bem como na Lei dos Partidos Políticos (Lei 9.096/1995). A formação de coligações nas eleições proporcional será determinante nos quocientes eleitoral e partidário e, assim, na formação da representação popular a partir da ocupação das cadeiras parlamentares em disputa. Passarão a ocupar as respectivas cadeiras aqueles candidatos mais votados na lista nominal apresentada pela coligação — e não do partido isoladamente considerado.
E o sistema eleitoral proporcional, de mais a mais, impõe que, para conhecermos os deputados e vereadores que vão compor o Poder Legislativo, “deve-se, antes, saber quais foram os partidos políticos vitoriosos para, depois, dentro de cada agremiação partidária que conseguiu um número mínimo de votos, observar quais são os mais votados. Encontram-se, então, os eleitos. Esse, inclusive, é um dos motivos de se atribuir o mandato ao partido e não ao político”.
Quando os partidos concorrem coligados com outros, esses votos serão os da coligação, não de um partido isoladamente considerado. De maneira mais clara, mas não menos objetiva, funciona assim o sistema proporcional: para se chegar ao resultado, “aplicam-se os chamados quocientes eleitoral (QE) e partidário (QP)”. O quociente eleitoral é definido pela soma do número de votos válidos (= votos de legenda e votos nominais, excluindo-se os brancos e os nulos), dividida pelo número de cadeiras em disputa. Apenas partidos isolados e coligações que atingem o quociente eleitoral têm direito a alguma vaga. A partir daí, analisa-se o quociente partidário, que é o resultado do número de votos válidos obtidos, pelo partido isolado ou pela coligação, dividido pelo quociente eleitoral. O saldo da conta corresponde ao número de cadeiras a serem ocupadas[3].
É por essas e por outras razões que: “O partido coligado não pode agir isoladamente no processo eleitoral, de acordo com o estabelecido no § 4º do art. 6º da Lei nº 9.504/97” (Acórdão de 26/9/2013 no REspe 41.662, rel. min. Laurita Vaz); “Formada Coligação, cessa a legitimidade dos Partidos Políticos, exceto para impugná-la”(Acórdão de 16/5/2013 no REspe 23.677, rel. min. Marco Aurélio). Também é por essas e por outras razões, enfim, que: “Tratando-se de eleições proporcionais, e como a distribuição de cadeiras entre os partidos políticos é realizada em razão da votação por eles obtida, não se desconhece que, fora das coligações, muitas agremiações partidárias, atuando isoladamente, sequer conseguiriam eleger seus próprios candidatos, eis que incapazes, elas mesmas, de atingir o quociente eleitoral” (STF, MS 30407/DF, rel. min. Celso de Mello). Logo, sob pena de ataques ao sistema eleitoral proporcional e à vontade do eleitorado, na hipótese de vagar uma cadeira parlamentar, o ocupante da cadeira será, necessariamente, o primeiro suplente da coligação.
Agora, a pergunta é: qual a razão para não se aplicar tal entendimento (constitucionalmente adequado) na hipótese de perda de mandato por infidelidade partidária? São dois os argumentos centrais vislumbrados na jurisprudência acerca do tema para refutar essa possibilidade na hipótese de infidelidade partidária, quais sejam: o primeiro é o fato de a coligação ter caráter temporário; o segundo, o fato de a relação de fidelidade consubstanciar liame jurídico entre candidato e partido, não entre aquele e eventual coligação. Assim, em se tratando de infidelidade partidária, atribui-se a titularidade da vaga remanescente ao partido político, mesmo tendo concorrido por meio de coligação partidária. Ambos não se sustentam, contudo.
Quanto ao argumento de que a coligação, para tais efeitos, é meramente temporária (verificado, por exemplo, na Consulta TSE 1.398), não há falar no mesmo, porquanto ignora os efeitos da formação da coligação partidária, ainda que realmente ela seja transitória. Isto é: ignora a formação da representação popular, que restou, aprioristicamente, vinculada à formação da coligação. É incontroversa, portanto, a existência meramente transitóriada Coligação. Porém, os seus efeitos são permanentes, porquanto assim o são os resultados eleitorais por ela angariados (por exemplo, STF, MS 30.407/DF, rel. min. Celso de Mello). Em outras palavras: “A transitoriedade da coligação não se confunde com os efeitos dos atos por ela praticados e dos resultados eleitorais por ela obtidos, que permanecem válidos e eficazes” (STF, MS 30.407/DF, rel. min. Celso de Mello).
Já quanto ao argumento remanescente, ainda que o liame jurídico existente entre candidato e partido seja imediato, este mesmo candidato, que acabou ocupando determinada cadeira num parlamento qualquer que seja ele, assim alcançou tal desiderato por intermédio da coligação, não do partido político isoladamente considerado.
De mais a mais, é importante anotar que o tema da fidelidade partidária não veio à tona para tutelar os partidos políticos, mas para tutelar a vontade popular, a vontade do eleitor sufraga nas urnas. E isso, diga-se de passagem, permeou toda esta discussão, desde o seu nascedouro nos autos da Consulta TSE 1.398.
Tratando-se de eleições proporcionais, e como a distribuição de cadeiras entre os partidos políticos é feita em razão da votação por eles obtida, não se desconhece que, fora das coligações, muitas agremiações partidárias, atuando isoladamente, sequer conseguiriam eleger seus próprios candidatos, eis que incapazes, elas mesmas, de atingir o quociente eleitoral. Acentue-se, por necessário, que, cuidando-se de coligações partidárias, os votos válidos atribuídos a cada um dos candidatos, não obstante filiados estes aos diversos partidos coligados, são computados em favor da própria coligação partidária, além de ser observada essa mesma regra para efeito dos cálculos destinados à determinação do quociente eleitoral e do quociente partidário, a significar, portanto, que esse cômputo dos votos válidos, efetuado para fins de definição dos candidatos e dos lugares a serem preenchidos, deverá ter como parâmetro a própria existência da coligação partidária e não a votação dada a cada um dos partidos coligados[4].
A jurisprudência é equivocada. O instituto da fidelidade partidária, que veio à tona justamente para preservar o sistema proporcional e dar concretude à vontade popular, o ataca – considerada a vertente jurisprudencial que nega ao primeiro suplente da coligação a assunção ao Cargo, atribuindo tal “benesse” ao primeiro suplente partidário, mesmo que a agremiação correspondente tenha disputado o pleito via Coligação partidária. É curioso que a jurisprudência dominante caminhe em sentido contrário.
4. Conclusão
O presente artigo objetivou perquirir de quem seria a cadeira parlamentar remanescente, considerada a perda do mandato daquele representante popular considerado “infiel”. A partir de uma análise do sistema eleitoral brasileiro, especialmente no que tange ao sistema proporcional, concluímos, pois, que eventual cadeira parlamentar remanescente, mesmo na hipótese de perda de mandado por infidelidade partidária, deverá ser ocupada pelo primeiro suplente da coligação partidária.
Se o preenchimento de cargos vagos é definido em função da coligação partidária, contemplando a lista de candidatos mais votados, independentemente dos partidos políticos a que estejam vinculados, não há razão para não se aplicar tal entendimento também às hipóteses de infidelidade partidária, sob pena de ataques ao sistema eleitoral proporcional e à vontade do eleitorado. É algo curioso que a jurisprudência dominante caminhe em sentido contrário.
Assim, conclui-se que, mesmo na hipótese de perda de mandado por infidelidade partidária, eventual cadeira parlamentar vaga deverá ser ocupada pelo primeiro suplente da coligação partidária. Logo, este terá, sobremaneira, legitimidade para ajuizar a respectiva ação judicial eleitoral, bem assim para intervir como interessado em determinadas ações já ajuizadas. E, na hipótese de reconhecimento de infidelidade partidária por parte do trânsfuga, é o suplente da coligação quem deverá ser chamado a ocupar e exercer o cargo na condição de titularidade.
Autores: Guilherme Barcelos é advogado, sócio do escritório Barcelos Alarcon Advogados (Brasília), mestrando em Direito pela Universidade do Vale dos Sinos (Unisinos), especialista em Direito Constitucional e em Direito Eleitoral. Membro-fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep).
Anderson Alarcon é advogado, professor, doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), mestre pela Universidade Estadual de Maringá (UEM) e especialista em Direito Público e em Direito Eleitoral pela Universidad Nacional Autónoma do México. Membro-fundador e da Coordenadoria de Relações Institucionais da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep) e procurador-geral da União dos Vereadores do Brasil (UVB).
João Vitor Borges Paulino é bacharelando em Direito na Universidade Estadual de Maringá (UEM).