Autor: Evandro Monezi Benevides (*)
Com o advento da Lei 13.467, de 13 de julho de 2017, inúmeras alterações foram introduzidas no texto da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que, de forma intencionalmente estratégica, atingiram direitos básicos (já consagrados) do trabalhador. Sem dúvida, a atual conformação política e econômica do país produziu ambiente favorável para uma verdadeira “caçada aos direitos fundamentais sociais”. Afinal, historicamente, a compreensão de que os direitos sociais constituem “exigência inarredável do exercício efetivo das liberdades e garantias da igualdade de chances (oportunidades), inerentes à noção de uma democracia em um Estado de Direito de conteúdo não meramente formal, mas, sim, guiado pelo valor da justiça material”, cai por terra diante das crises do sistema capitalista, ameaçando, principalmente, os direitos e garantias sociais dos trabalhadores. E o discurso justificador da derrocada desses direitos é sempre o mesmo: salvar a economia. Nessa medida, “entramos num contexto em que a extensão e a generalização do mercado — que se proclama ‘livre’ — fazem com que os direitos comecem a ser considerados como ‘custos sociais’ das empresas, que devem suprimi-los em nome da competitividade” e da superação da crise econômica, funcionando como peça de barganha.
No que se refere, então, às alterações promovidas pela referida lei, destaca-se a possibilidade de redução do tempo mínimo do intervalo intrajornada, popularmente conhecido como intervalo de almoço e descanso, de 1 hora para 30 minutos, no caso de trabalhos com jornada superior a 6 horas, mediante negociação coletiva, nos exatos termos do novo artigo 611-A, inciso III, da CLT.
Antes dessa inovação legislativa trazida pela Lei 13.467/17, só havia duas possibilidades de reduzir o tempo mínimo do intervalo intrajornada previsto no artigo 71, caput, e seus parágrafos, da CLT, quais sejam: (1) por ato do ministro do Trabalho, Indústria e Comércio, quando ouvido o Serviço de Alimentação de Previdência Social, comprovada a existência de refeitórios e desde que os trabalhadores não laborassem em sobrejornada; e (2) em função da natureza do serviço, como é o caso de motoristas, cobradores, fiscalização de campo etc., mediante, é claro, negociação coletiva.
Outra alteração referente a esse intervalo diz respeito às consequências da sua violação pelo empregador. O antigo parágrafo 4º, do artigo 71, da CLT, em consonância com o item I da Súmula 437, do TST, previa, nos casos de não concessão ou concessão parcial do intervalo de almoço e repouso, o pagamento total do período correspondente, e não apenas daquele suprimido, com acréscimo de, no mínimo, 50% sobre o valor da remuneração da hora normal. A nova redação daquele dispositivo agora estipula que a não concessão ou a concessão parcial do intervalo mínimo para repouso e alimentação implica o pagamento apenas do período suprimido, com acréscimo de 50% sobre o valor da remuneração da hora normal de trabalho, sendo que este passa a ter natureza indenizatória, ou seja, não produzirá reflexos em outras verbas de natureza salarial. Consequentemente, o empregador diminuirá seus gastos, ao mesmo tempo em que retira os direitos dos trabalhadores.
É preciso deixar claro que a novatio legis não atingiu o artigo 71 da CLT, que continua dispondo que, nos casos de trabalho contínuo, cuja duração exceda de 6 horas, é obrigatória a concessão de um intervalo para repouso ou alimentação, o qual será, no mínimo, de 1 hora. A diferença é que, com a reforma, esse intervalo mínimo de 1 hora poderá ser reduzido mediante negociação coletiva. Nesse contexto, o princípio da norma mais favorável, vertente do princípio da proteção, perde sua eficácia no sistema jurídico-trabalhista, sendo o primeiro passo para que negociações coletivas possam disciplinar normas de saúde, higiene e segurança do trabalho, algo que há muito já havia se consolidado como insuscetível, fato que fragiliza e ameaça os fundamentos principiológicos do Direito do Trabalho.
Na verdade, uma das intensões dessa alteração (e da reforma como um todo) foi colocar pá de cal no conflito (patrocinado pelo setor empresarial) que se formou nos tribunais trabalhistas a despeito da supremacia do negociado sobre o legislado, isto é: até que ponto as negociações devem se sobrepor à lei? Tal questão, no que se refere ao intervalo intrajornada, aparentemente estava superada, tanto que o Tribunal Superior do Trabalho consubstanciou na Súmula 437 o entendimento dominante de que a cláusula de negociação coletiva que suprimisse ou reduzisse o intervalo intrajornada seria inválida, haja vista tratar-se de medida de higiene, saúde e segurança do trabalho, garantido por norma de ordem pública e, portanto, infenso à negociação coletiva.
Inclusive, esse posicionamento era — e ainda é — partilhado por grande parte da doutrina, já que as normas que regulamentam segurança e medicina do trabalho constituem-se imperativos de proteção do hipossuficiente, sendo incabível a sua disposição pela vontade das partes, competindo ao próprio “legislador tutelar o trabalhador, impedindo-o de concordar com redução desse intervalo, em detrimento de sua própria segurança e saúde”.
Ainda, um segundo aspecto importante dessas alterações é a contradição que o legislador reformista se prestou a promover ao incluir o artigo 611-B, inciso XVII, da CLT e seu parágrafo único, o qual estipula como sendo objeto ilícito de negociação coletiva de trabalho a supressão ou a redução de normas de saúde, higiene e segurança do trabalho previstas em lei ou em normas regulamentadoras do Ministério do Trabalho. Tal dispositivo, como se percebe, entra em claro conflito com o artigo 611-A, inciso III, que, doutra banda, permite a supressão ou redução do mínimo legal do intervalo intrajornada. Não fosse a expertise em “deformar” direitos trabalhistas, o legislador resolveu, então, incluir o parágrafo único ao artigo 611-B, como forma de eliminar essa contradição, sacramentando (sem piedade) que “regras sobre duração do trabalho e intervalos não são consideradas como normas de saúde, higiene e segurança do trabalho para os fins do disposto neste artigo”.
Veja que as novas regras que disciplinam o intervalo intrajornada (e não só elas) são “bastante extremada[s], parecendo enfocar, essencialmente, um único aspecto do assunto: o custo trabalhista para o empregador relativamente ao desrespeito ao intervalo intrajornada legalmente estipulado”. Sem dúvida, os “custos” com o trabalhador determinaram a “deforma” trabalhista a ponto de o próprio legislador promover verdadeira overhaulin em um entendimento (amplamente debatido pela doutrina e jurisprudência) que tinha como objetivo primeiro resguardar a segurança e a saúde do trabalhador.
É evidente que a Constituição Cidadã privilegia, no seu artigo 7º, inciso XXVI, a negociação coletiva mediante acordos e convenções coletivos de trabalho. Todavia, afasta peremptoriamente a violação de direitos sociais básicos do trabalhador por meio desses instrumentos. O próprio texto constitucional, no seu artigo 7º, XXII, prevê que “são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: […] XXII – redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança; […]”. Isso significa dizer que “os direitos sociais previstos no artigo 7º da CF/88 constituem cláusula pétrea e, portanto, não podem ser abolidos nem reduzidos por emenda constitucional, [bem como eventual] supressão de direitos trabalhistas também afrontaria o princípio que veda o retrocesso de avanços sociais”.
Não bastasse o artigo 7º, inciso XXII, da CF/88 para evidenciar a inconstitucionalidade de qualquer alteração referente à norma de medicina e segurança do trabalho, a constitucionalidade dos artigos 611-A, III e 611-B, XVII, e seu parágrafo único, ambos da CLT, também esbarram no parágrafo 2º do artigo 5º da Carta Magna, que estabelece: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
Essas garantias, topograficamente insculpidas no ceio dos direitos e garantias fundamentais, revelam, por si só, a intensão do constituinte originário em evitar que o trabalho humano volte a ter como finalidade primária a produção de riquezas mediante a violação da dignidade do trabalhador. O tempo em que empregados eram submetidos a jornadas extenuantes e em condições precárias de trabalho já passou (ou, ao menos, deveria). A visão objetificadora do trabalhador perdeu espaço com a constitucionalização do Direito do Trabalho, que conferiu eficácia plena às lutas por melhores condições de trabalho. Tanto é verdade que o Brasil promulgou, por intermédio do Decreto 1.254, de 1994, a Convenção 155, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sobre segurança e saúde dos trabalhadores e o meio ambiente de trabalho, que, dentre outras previsões, estipulou em seus artigos 4º e 5º a necessidade de uma política nacional unificada em matéria de medicina e segurança do trabalho.
Não se trata, então, de “salvar a economia” ou de fazer o país “entrar nos trilhos”. Os subterfúgios utilizados pelos detentores do poder político e econômico visam, na verdade, mascarar e ocultar as consequências da crise do sistema capitalista que se materializa na deterioração do meio ambiente, no consumo selvagem e desigual, na cultura de guerra e de violência e, em especial, na violação de direitos e garantias fundamentais. Logo, todo discurso reformista que se contrapõe à garantia de direitos socais constitucionais subjaz na necessidade desse sistema de produção em, de tempos em tempos, se oxigenar para, então, se manter operante.
Partindo de uma análise crítica dos direitos fundamentais sociais e do Direito do Trabalho constitucionalizado, não é possível encontrar validade constitucional na supressão ou redução de direitos que promovem segurança e medicina do trabalho, sendo que as alterações, referente a essa temática e, em especial, à questão do intervalo intrajornada, promovidas pela Lei 13.467/2017, apresentam-se como verdadeiras lacunas axiológicas, inquinadas de inconstitucionalidade. Outra conclusão, entretanto, seria o mesmo que negar sumariamente a histórica luta pela dignidade do trabalhador.
Autor: Evandro Monezi Benevides é graduando em Direito pela Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat).