Autor: Carlos Harten (*)
O Superior Tribunal de Justiça, por meio da 2ª Seção e pela relatoria do ministro Luis Felipe Salomão, julgará o Incidente de Assunção de Competência no REsp 1.303.374/ES, no qual decidirá se o prazo prescricional ânuo previsto no artigo 206, parágrafo 1º, II do CCB[1] se aplica a todas as pretensões envolvendo segurados e seguradoras ou apenas parte das pretensões deles, notadamente as indenizatórias em geral, as que tenham por pano de fundo a cobrança de indenização securitária e, ainda, a restituição de prêmios do contrato de seguro.
O IAC está previsto no novo Código de Processo Civil e pretende provocar o julgamento por órgão colegiado de maior composição com o fito de prevenir ou resolver controvérsia não repetitiva em matéria de Direito de relevante repercussão social, com efeito vinculativo obrigatório a todos os juízes e órgãos fracionários do próprio tribunal e dos que são a ele subordinados (artigo 947 do CPC). Trata-se de importante mecanismo de uniformização de jurisprudência, de forma a propiciar aos jurisdicionados tratamento isonômico e preservar a segurança jurídica.
O feito que originou a instauração do IAC trata da pretensão do segurado em ver mantida, nos termos inicialmente contratados, apólice de seguros que teria sido unilateralmente modificada pela seguradora, cumulada com o pedido de restituição de prêmios alegadamente majorados de forma indevida e reparação pelos danos morais sofridos.
O Tribunal de Justiça do Espírito Santo afastou a preliminar de prescrição levantada pela defesa. A seguradora interpôs recurso especial para o STJ com a tese de que seria anual o prazo de prescrição de todas as pretensões que envolvam interesses de segurado e segurador em contrato de seguro, independentemente do objeto da pretensão versar sobre a indenização securitária em si, restituição de prêmios e/ou pretensões indenizatórias em geral.
O relator, ministro Salomão, inicialmente negou provimento monocrático ao recurso especial, sob o fundamento de que rever o prazo prescricional aplicável a pretensão de manutenção de contrato de seguro rescindido esbarraria na Súmula 7 do STJ, tendo, contudo, após julgamento do agravo interno contra sua decisão, reformado a mesma para submeter o recurso especial ao colegiado e suscitar de ofício o IAC, com fulcro na seguinte fundamentação: “Esta Corte Superior não se defrontou, ainda, com importante tese engendrada pela recorrente, no sentido de, em contrato de seguro facultativo, ser ou não anual o prazo da prescrição em todas as pretensões que envolvam segurado e segurador, não apenas as indenizatórias”.
Ainda que a decisão do ministro Luis Felipe Salomão faça referência à inexistência de enfrentamento do STJ quanto à extensão da interpretação do artigo 206, parágrafo 1º, II do CCB, vê-se que o STJ há muito tem enfrentado o tema, já tendo inclusive julgamentos da 2ª Seção e também sob o rito dos repetitivos.
Como regra, o STJ tem mantido rígida a aplicação do prazo prescricional ânuo previsto no artigo 206, parágrafo 1º, II do CCB[2], tendo apenas em casos excepcionais afastada a sua aplicação, como foram os seguintes precedentes: (a) pretensão de revisão de prêmio em planos e seguros saúde com pedido de repetição de indébito, caso em que se aplicaria a prescrição trienal das ações por enriquecimento ilícito (REsp 1.360.969/RS, rel. ministro Marco Buzzi, rel. p/ acórdão ministro Marco Aurélio Bellizze, 2ª Seção, julgado em 10/8/2016, DJe 19/9/2016); (b) pedido de indenização por danos morais por não renovação de apólice, hipótese em que se aplicaria a prescrição trienal (REsp 1.290.116/SC, rel. ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 22/5/2014, DJe 13/6/2014); (c) alteração unilateral do regramento contratual, caso em que também se aplicaria a prescrição trienal (AgRg no REsp 1.330.776/RS, rel. ministro Raul Araújo, 4ª Turma, julgado em 18/12/2014, DJe 6/2/2015); (d) indenização por excesso de demora na autorização para reparos de veículos, pedido que deveria ser regido pela prescrição quinquenal prevista no artigo 27 do CDC (AgInt no REsp 1.192.274/SP, rel. ministro Raul Araújo, 4ª Turma, julgado em 2/2/2017, DJe 10/2/2017); (e) ou, ainda, pedido de pagamento de correção monetária por indenização tardiamente adimplida, caso em que seria aplicável o prazo prescricional de 10 anos (AgRg no REsp 1.269.986/AM, rel. ministro Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, julgado em 10/12/2013, DJe 3/2/2014).
Em outros casos, insta destacar que o STJ também já teve a oportunidade de enfrentar a tese de que o prazo prescricional do pedido de complementação da indenização securitária seria diverso do prazo da própria pretensão de cobrança da indenização prevista em contrato, tendo rechaçado essa interpretação restritiva com o fundamento de que “aquele (complemento) está contido nesta (totalidade)” (REsp 1.220.068/MG, rel. ministro Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, DJe 1º/2/2012), mantendo, com isso, o prazo ânuo do artigo 206, parágrafo 1º, II do CCB. Já houve, contudo, precedente em sentido contrário: “Depois de a seguradora ter reconhecido a sua obrigação e pago a indenização, a ação de cobrança do complemento da indenização prescreve no prazo longo dos direitos pessoais (20 anos, destaque nosso)” (REsp 453.221/MG, rel. ministro Ruy Rosado de Aguiar, 4ª Turma, julgado em 26/5/2003, DJ 8/9/2003, p. 336).
Também, ainda que na ementa o ministro Salomão faça referência à definição de prazo para prescrição de pretensões indenizatórias em seguros facultativos, a 2ª Seção definiu que o IAC julgará tese bastante ampla, qual seja, a aplicação ou não do “prazo anual de prescrição em todas as pretensões que envolvam interesses de segurado e segurador em contrato de seguro”.
Com a extensão da tese admitida pela 2ª Seção para resolver a controvérsia do prazo prescricional para todas as pretensões entre segurado e segurador, não apenas indenizatórias, complementares ou limitadas a determinado ramo securitário (DPVAT, seguro saúde, Vida, SFH etc.), o STJ poderá rever anos de jurisprudência consolidada, estável, sumulada e apenas pontualmente excepcionada.
Naturalmente, todo e qualquer precedente pode ser revisto e ter as suas conclusões modificadas quando presente os requisitos para tanto, o que ocorre com certa frequência. Contudo, deve haver relevante modificação social, política ou econômica para embasar a modificação do entendimento, precedida de grande debate e análise dos efeitos, sobretudo econômicos, especialmente diante de um instrumento tão massificado e importante na vida negocial como o contrato de seguro.
A mesma relevância social que fundamenta o cabimento do IAC impõe a excepcionalidade para a superação de precedentes que dão estabilidade às relações jurídicas.
Os fundos administrados pelas seguradoras e que garantem a indenização para os sinistros precisam de equilíbrio e segurança de solvência. Modificar o prazo prescricional de pretensão que possa vir a cobrar do fundo é, em última medida, ampliar a incerteza sobre as obrigações que recaem sobre ele. Ao lado disto, embora a decisão do ministro Luis Felipe Salomão fale em ausência de repetição, não só o número de casos no STJ, mas a própria experiência mostra que os prazos prescricionais são um dos principais temas de enfrentamento nas lides securitárias, e, por isso mesmo, qualquer interpretação que alongue o tempo prescricional, seja por prazo aplicável ou termo inicial, tende a aumentar a litigiosidade, permitindo que novas pretensões cheguem ao Judiciário.
Por todas essas razões, parece-me que a 2ª Seção do STJ tem sob sua competência o julgamento de uma das causas de maior repercussão do setor securitário, devendo ser amplamente debatida na sociedade, com a realização de audiências públicas, participação de órgãos, entidades e indivíduos com interesse na resolução da controvérsia, conforme previsto no artigo 271-D do regimento interno do STJ e no artigo 983 do CPC.
A comissões de Direito Securitário do Conselho Federal da OAB e das seccionais de Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Paraná, Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e Distrito Federal reuniram-se nos últimos dias 28 e 29 de setembro na OAB-SC para o II Congresso Internacional das Comissões de Direito Securitário da OAB. Em um dos painéis, foi inclusive debatido o IAC no REsp 1.303.374/ES e suas consequências para o mercado segurador.
Confiamos, assim, que a 2ª Seção do STJ enfrentará o tema com a atenção e técnica usuais, contribuindo para a segurança jurídica e redução de controvérsias nas lides securitárias.
Autor: Carlos Harten é sócio-diretor de Queiroz Cavalcanti Advocacia, presidente da Comissão Especial de Direito Securitário do Conselho Federal da OAB. Possui diploma de Estudios Avanzados pela Universidade de Salamanca/Espanha e Executive Programme pelo Insead/França.