(Mônica Barroso Costa – Promotora de Justiça no Estado da Bahia)
1. Introdução
A defesa de interesses coletivos vem se acentuando ultimamente. Cada vez mais se tem deixado de defender interesses individuais para se defender os interesses de um grupo determinado ou indeterminado de indivíduos. Essa é a atual tendência da defesa dos interesses em juízo, pois as lides têm tomado contornos mais abrangentes deixando de ser individualizadas para serem gerais, envolvendo grupos de pessoas. Por esse motivo adveio a Lei n. 7.347/85 que disciplina a ação civil pública e que serve para a defesa de tais interesses em Juízo, disciplinando quem e de que forma eles podem ser discutidos.
Em 1990 surgiu a Lei de Defesa do Consumidor (Lei n. 8078/90) que trata especificamente dos interesses do consumidor, tanto os individuais quanto os coletivos, e traz em seu bojo as formas como tais interesses podem ser defendidos em Juízo. Nessa lei surge a figura das ações coletivas, bem como é feita diferenciação entre interesses difusos, coletivos, individuais homogêneos. As alterações trazidas por esse código, apesar de ser do Consumidor, não se ateve apenas à defesa das relações de consumo, ele em verdade aprimora e eleva a tutela dos interesses transindividuais em juízo, constituindo um Diploma a serviço do acesso a justiça, porque O legislador ampliou sobremaneira as modalidades de interesses transindividuais passíveis de ser tutelados em juízo, aprimorou a questão da representatividade adequada, veiculou vocabulário jurídico mais preciso para indicar os vários institutos jurídicos que integram o seu conjunto de disciplinas, disciplinou com mais rigor os limites subjetivos da coisa julgada em matéria de interesses transindividuais. Enfim é o resultado do aprimoramento doutrinário ocorrido no lapso de tempo entre o advento da Lei nº 7.347/85 ( Lei da Ação Civil Pública) e a Lei nº 8.078/90 ( Código Brasileiro de Defesa do Consumidor).
2. Histórico
A ação coletiva encontra suas origens no Bill of Peace do século XVII do sistema norte-americano que evoluiu para a class action, esta, baseada na equity, pressupõe a existência de um número elevado de titulares de posições individuais de vantagem no plano substancial, possibilitando o tratamento processual unitário e simultâneo de todas elas, por intermédio da presença em juízo, de um único expoente da classe.
O legislador brasileiro trouxe para o nosso ordenamento os esquemas do direito norte-americano, entretanto tratou de os adaptar ao nosso sistema legal que é o de civil law. Inspirado nas class actions americanas criou, primeiro, as ações coletivas em defesa de interesses difusos e coletivos, de natureza indivisível, através da denominada lei da ação civil pública. Pela própria configuração da lei, destinada à proteção de bens coletivos, indivisivelmente considerados, não permitia que por seu intermédio se fizesse a reparação dos danos pessoalmente sofridos, cabendo aos indivíduos diretamente prejudicados valer-se das ações pessoais ressarcitórias, dentro dos esquemas do processo comum.
Em 1989 a Lei nº 7.913 cuidou da reparação dos danos causados aos investidores no mercado de valores imobiliários. Tal diploma legal pela primeira vez tratou da condenação que deveria reverter aos investidores lesados na proporção do seu prejuízo, bem como cuidou da habilitação dos beneficiários para receberem a parcela que lhes couber. Estava aí a primeira class action for damages do sistema brasileiro que foi consagrada definitivamente pelo Código de Defesa do Consumidor.
2.1. Origem do nome
É costume no nosso ordenamento jurídico a denominação das ações. O Código de Processo Civil está recheado de ações nominadas de acordo com o pedido formulado, como, por exemplo, a ação de consignação em pagamento (art. 890); a ação de divisão e demarcação de terras particulares (art. 946); a ação de prestação de contas (art. 914), e outras que ali se encontram.
Apesar dessa classificação ter inegável conteúdo prático, juridicamente o instituto jurídico-processual denominado ação não merece adjetivo. A denominação das ações, no dizer de Cândido Rangel Dinamarco, é fruto ainda de uma visão privatista do instituto e do processo como um todo, de acordo com critérios de Direito Civil, lembrando que de há muito já se concluiu pela autonomia da ação que pertence exclusivamente ao direito processual, que também constitui ciência autônoma1. Essa também é a posição de José Frederico Marques que ensina que essa denominação, por dizer respeito diretamente a pretensão deduzida, não constitui problema de direito processual e sim “do direito material em que são regulados os direitos subjetivos correspondentes.”2
A expressão “ação civil pública” foi utilizada por Calamandrei3 em contraponto a ação penal pública prevista em nosso ordenamento material e formal criminal, entretanto vem merecendo duras críticas pelos doutrinadores pátrios e que são aqui algumas abordadas:
1) O termo “civil” que integra a denominação em questão tem apenas o único objetivo de esclarecer que é “não-penal”, ou seja é uma ação que tem curso no juízo cível, não fazendo referência ao direito que se pretende tutelar, como nos casos antes apontados. De qualquer forma vale salientar que a ação não comporta qualquer tipo de adjetivação, pois é a mesma autônoma, não estando ligada a qualquer adjetivo que venha a lhe ser imposto, o que evita que alguns operadores do direito menos avisados e que não têm a necessária intimidade com certos conceitos doutrinários cometam o equívoco de contestar ou não conhecer certos direitos pleiteados em uma determinada ação alegando que o “nome” da mesma não está correto. Obviamente não é pelo adjetivo que se conhece a essência deste ou daquele instituto jurídico; independentemente de qual for o adjetivo utilizado sua natureza jurídica não se modificará.
2) Quanto ao vocábulo “pública” muitas explicações já foram traçadas para justificá-lo, entretanto nenhuma absolutamente convincente. Antes de qualquer consideração vale ressaltar que toda ação é pública, porque dirigida contra o Estado, onde o demandante detém o direito/poder de exigir um provimento que, afinal, será ofertado pelo próprio Estado.
A princípio, antes da edição da Lei n. 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública), se entendia que se denominava tal ação como pública porque privativa do Ministério Público, ou seja, a legitimidade ativa era de uma parte pública, entretanto após a edição da lei em questão que através do seu art. 5º ampliou a capacidade ativa para outras pessoas jurídicas e entidades representativas, tal entendimento precisou ser reformulado. Édis Milaré com clareza comentou o assunto:
Até há pouco, entendíamos que quando se falava em ação civil pública se queria em verdade referir ao problema da legitimação, e não ao do direito substancial discutido em juízo. Ação Civil Pública, então, era aquela que tinha como titular ativo uma parte pública – o Ministério Público (…) Agora, porém com a edição da Lei n. 7.347/85, que conferiu legitimidade para a ação civil pública de tutela de alguns interesses difusos não só ao Ministério Público, mas também às entidades estatais, autárquicas paraestatais e às associações que especifica (art. 5º), novo posicionamento se impõe diante da questão.4
Para se encontrar então um novo significado para o termo “pública” passou o mesmo a ser utilizado para caracterizar o conteúdo da ação em questão, ou seja, é a mesma pública por visar tutelar interesses públicos, entendendo como tais os difusos e coletivos. No dizer de Hugo Nigro Mazzilli a ação civil pública
… passou a significar, portanto, não só aquela proposta pelo Ministério Público, como a proposta pelos demais legitimados ativos do art. 5º da Lei n. 7.347/85 e do art. 82 do CDC, e ainda aquela proposta pelos sindicatos, associações de classe e outras entidades legitimadas na esfera constitucional, sempre com o objetivo de tutelar interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos (isto é, agora um enfoque subjetivo-objetivo, baseado na titularidade ativa e no objeto específico da prestação jurisdicional pretendida na esfera cível). 5
Para o mestre paulista tal justificativa tem razão de ser, pois ao conceituar interesse público ele o divide em primário (o interesse do bem geral) e aqui entrariam os difusos e coletivos, e em secundário (ou seja, o modo pelo qual os órgãos da Administração vêem o interesse público). Dessa forma seria coerente se dizer que a ação é pública, pois pleiteia interesse público (primário). Rodolfo de Camargo Mancuso ao se manifestar sobre o tema diz que não se trata de interesse público, pois nem sempre o particular está em contraponto a autoridade estatal, muitas vezes é o particular contra o próprio particular o que descaracterizaria o interesse público 6.
Outra justificativa para a inadequação do termo “pública” nos dá Ada Pellegrini Grinover ao comentar a Lei da Ação Civil Pública:
O texto legal fala impropriamente em ação civil pública. Impropriamente, porque nem a titularidade da ação é deferida exclusivamente a órgãos públicos (MP; União, Estados e Municípios), nem é objeto do processo a tutela do interesse público.7
Analisando o termo interesse público segundo a distinção feita por Mazzilli, entendo que a justificativa por ele dada se adequa ao caso em questão, pois em verdade a ação civil pública sempre tem por objeto interesse público, ainda que sob o nome de interesse público primário. O art. 1º e incisos IV e V da Lei nº 7.347/85 traz agora expressamente que, além dos demais valores tutelados, merece proteção legal qualquer outro interesse difuso ou coletivo, inclusive o que for concernente à proteção dos indivíduos contra abusos do poder econômico, pode-se concluir que a ação civil pública é instrumento absolutamente adequado à tutela de qualquer direito de natureza transindividual.
A ação civil pública, portanto, passou a ser o mais moderno e democrático instrumento de defesa dos interesses da comunidade como grupo social, interesses que jamais poderiam ser resolvidos se sua tutela fosse perseguida por algum dos seus integrantes.
Ação civil pública, ou ação coletiva, como prefere o Código do Consumidor, passou a significar, portanto, não só aquela proposta pelo Ministério Público, como pelos demais legitimados ativos do art. 5º da Lei nº 7.347/85 e do art. 82 do CDC, e ainda pelos sindicatos, associações de classe e outras entidades legitimadas na esfera constitucional, sempre com o objetivo de tutelar interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos.
A ação destinada à tutela dos chamados interesses difusos já era referida em doutrina como ação coletiva, tendo o Código do Consumidor preferido esta terminologia à da ação civil pública.
Com o advento da Lei nº 8.078/90 surge a nomenclatura de ações coletivas, tais ações têm por escopo a defesa em juízo dos interesses individuais homogêneos, pois para as demais modalidade de interesses supra-individuais a defesa será sempre feita por um substituto processual, que integra o rol (numerus clausus) dos legitimados para as ações essencialmente coletivas, que não contempla o interessado.
Esse diploma legal regulamenta as class actions for damages, ou seja, as ações civis de responsabilidade pelos danos sofridos por uma coletividade de indivíduos. Surgiu então a dúvida se o Código de Defesa do Consumidor teria revogado o inciso II do art. 1º da Lei nº 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública).
A tutela em si de direito material, que também é objeto do dispositivo legal citado, permanece íntegra. A lei nova apenas ratificou a tutela, delineando os elementos e as condições em que é suscetível de ocorrer. Derrogados foram apenas os dispositivos formais ou processuais daquela, naquilo em que contravieram normas da mesma natureza da lei mais recente.
Resulta daí que os elementos formais básicos para a proteção do direito segue o iter da Lei nº 7.347/85, que reflete a lei processual matriz. Aliás, o exame das normas instrumentais do Código de Defesa do Consumidor denuncia que sua aplicação tem muito mais caráter supletivo que fundamental.
Objetivam, portanto, tais ações coletivas a reparação, por processos coletivos, dos danos pessoalmente sofridos pelos consumidores. Para tanto, o código prevê regras de competência, estipula a intervenção sempre necessária do Ministério Público, contempla a ampla divulgação da demanda para facultar aos interessados a intervenção no processo, e determina que a sentença, quando condenatória, seja genérica, limitando-se a fixar a responsabilidade do réu pelos danos causados.
Vê-se pelo exposto que qualquer nome que seja atribuído: civil pública ou coletiva, como diz o Código de Defesa do Consumidor, é indiferente já que a nominação das ações, como dito ao início, é despicienda.
Se pode até chamá-la, se se prender ao direito material pleiteado, em ação coletiva em defesa do consumidor ou ação de interesse coletivo do consumidor, mas esta, bem como qualquer outra denominação que venha a ser criada é irrelevante para a apreciação da lide apresentada e que merece tutela jurisdicional.
3. Interesses ou Direitos?
Antes da Carta Magna de 1988 não existia referência a defesa de interesses. A defesa judicial sempre era de direito subjetivo referido a um titular determinado ou ao menos determinável o que impedia a defesa de “interesses” pertinentes, ao mesmo tempo, a toda uma coletividade e a cada um dos membros dessa coletividade. A estreiteza do conceito tradicional do direito subjetivo impedia essa tutela jurídica. Hoje, com a concepção mais larga do direito subjetivo, abrangendo também do que outrora se tinha como mero “interesse” na ótica individualista então predominante, ampliou-se o espetro de tutela jurídica e jurisdicional.
A Constituição Federal pôs fim a questão entre “interesse” e “direito”, pois se refere em seu art. 129, III a “interesses” e “direitos” dando a ambos a mesma tutela jurídica e jurisdicional. Aliado a isso a nosso legislador ordinário referiu-se indiferentemente a “interesses ou direitos” (CDC, art. 82 e incisos; inciso IV do art. 1º da Lei n. 7.347/85, inserido pelo art. 110 do CDC) tornando improfícua a discussão, pois, no dizer de Rodolfo Camargo Mancuso ao se referir a distinção entre interesse e direito:
O conceito clássico de direito subjetivo – “interesse juridicamente protegido” – o advérbio, aí, reporta-se a “direito” e, desse modo, o definido acaba por entrar na definição… 8
3.1. Generalidades
A evolução histórica do direito, que tradicionalmente teve caráter individualista, reclamou a proteção de alguns direitos que, mesmo sem poder identificar-se cada titular, pertencessem a grupos sociais, determinados ou não. Os estudiosos do tema passaram a considerar, como juridicamente reconhecidos, certos interesses pertencentes a grupos de pessoas, distinguindo a natureza desses grupos e que não são apenas as posições jurídicas já normatizadas e subjetivadas que são passíveis de tutela judicial. Ao contrário, são justamente os interesses e valores desprovidos de um “titular” que, sendo socialmente relevantes, merecem tratamento jurisdicional e de tipo diferenciado, dadas as suas peculiaridades.
A lei adotou a distinção que os estudiosos já faziam do assunto. No caso dos interesses coletivos, já há muito ressaltava José Carlos Barbosa Moreira9 que as relações jurídicas dos integrantes do grupo podiam ser distintas, mas eram análogas por derivarem de uma relação jurídica-base. Os indivíduos, nessa categoria, não precisam ser determinados, mas são determináveis. Os interesses difusos, por outro lado, eram caracterizados como aqueles que, não tendo vínculos de agregação suficientes para sua institucionalização perante outras entidades ou órgãos representativos, estariam em estado fluido e dispersos pela sociedade civil como um todo. Nesse grupamento, os indivíduos são indeterminados, exatamente porque é impossível destacar cada integrante, isoladamente, do grupo que integra.
Entre os interesses difusos e coletivos, merecem destaque dois pontos de identificação existentes em seu perfil conceitual. O primeiro diz respeito aos destinatários: em ambos os direitos presente está a natureza da transindividualidade, de forma que hão de ser tratados em seu conjunto e não levando em conta os integrantes do universo titular do interesse. O segundo consiste na indivisibilidade do direito, o que está a significar que não se pode identificar o quinhão do direito de que cada integrante do grupo possa ser titular. O direito merece a proteção legal como um todo, abstraindo-se da situação jurídica individual de cada beneficiário.
O legislador brasileiro deparou-se com a necessidade de trazer para o âmbito do Direito Objetivo o gênero “interesses transindividuais”, subdividindo-o em difusos, coletivos e individuais homogêneos, que na verdade correspondem a diferentes “graus de coletivização”, seja numa perspectiva horizontal ou objetiva (amplitude da projeção do interesse ao interior da sociedade civil), seja numa perspectiva vertical ou subjetiva ( expressão numérica dos sujeitos concernentes e bem assim ao grau de sua indeterminação – absoluta ou relativa). Foram incluídas seqüencialmente no art. 81 da Lei n. 8.078/90 as três espécies antes referidas, sendo necessário distinguí-las, conforme a natureza coletiva lhes seja essencial ou contigente, e, no primeiro caso, em qual extensão e compreensão, dentro do “universo coletivo”. Assim é que nos “difusos” e nos “coletivos em sentido estrito” o caráter coletivo lhes é imanente, lhes integra a própria essência, já que pelos respectivos conceitos legais (incisos I e II), se vê que o objeto se apresenta indivisível e os sujeitos concernentes são, em princípio, indeterminados. A diferença específica fica por conta de que, nos “difusos”, por se reportarem a meras situações de fato, aquelas notas revelam-se absolutas (sujeitos absolutamente indeterminados e objeto absolutamente indivisível), ao passo que nos “coletivos em sentido estrito” elas se relativizam, porque os sujeitos – pela circunstância de estarem ligados entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base – já comportam certa visualização interior de certos segmentos da sociedade civil, ou seja, em “grupos, categorias ou classes”, na dicção legal.
Quanto aos individuais homogêneos, que estão elencados no mesmo dispositivo legal, guardam em comum com as outras espécies notas de uniformidade e de larga expressão numérica dos sujeitos concernentes, entretanto enquanto nos “difusos” e nos “coletivos em sentido estrito” essa uniformidade decorre de sua essência coletiva, já nos “individuais homogêneos” ela advém de circunstância externa, contingencial ou episódica, qual seja o fato deles decorrerem de uma “origem comum”. Assim, numa palavra, os “difusos” e os “coletivos em sentido estrito” são essencialmente coletivos ao passo que os “individuais homogêneos” recebem tratamento processual coletivo pelo modo uniformizado como se exteriorizam, assim parecendo ao legislador que sua tutela judicial seria mais adequada e eficaz.
Serão estudados cada um deles detalhadamente.
3.2. Interesses Difusos
Aliado ao que já foi acima dito, fazem-se necessárias algumas observações adicionais a respeito do tema que é bastante amplo e dá margem a várias considerações.
Por interesses difusos se pode dizer que são interesses de grupos menos determinados de pessoas, sendo que entre elas não há vínculo jurídico ou fático muito preciso. Na feliz expressão de Hugo Nigro Mazzilli, “são como um feixe de interesses individuais, com pontos em comum”, ou seja, um conjunto de interesses individuais, em que cada um dos elementos do grupo indeterminado de pessoas possui seu interesse, mas que guardam pontos comuns entre si.
Ainda que não se possa afirmar que a intensidade do interesse de cada indivíduo que integra esse grupo (não determinado nem determinável) seja a mesma, fruto da inexistência de vínculo jurídico ou, como ocorre em alguns casos, inexistência de um vínculo fático bem preciso a uni-los, não se pode ignorar que tais interesses, em alguns pontos coincidem.
O fator quantitativo também serve para identificar os interesses difusos, diferenciando-os das demais categorias de interesses metaindividuais: os interesses difusos podem dizer respeito até a toda humanidade, o que não acontece, por exemplo, com os interesses coletivos em sentido estrito.
Além disso, o fator qualitativo também servirá para identificar os interesses difusos, porque consideram o homem exclusivamente em sua dimensão de ser humano.
Para resumir, pode-se afirmar que difusos são os interesses em que os titulares não são passíveis de ser determinados ou determináveis e se encontram ligados por mera circunstâncias de fato, ainda que não muito precisas. São interesses indivisíveis e, embora comuns a uma categoria mais ou menos abrangente de pessoas, não se pode afirmar, com precisão a quem pertençam, tampouco a parcela destinada a cada um dos integrantes desse grupo indeterminado.
Exemplificando, Kazuo Watanabe10, ao comentar a respeito de interesses difusos traz, os seguintes casos que elucidam a questão:
a) publicidade enganosa ou abusiva, veiculada através de imprensa falada, escrita ou televisionada, a afetar uma multidão incalculável de pessoas, sem que entre elas exista uma relação- base. O bem jurídica tutelado pelo art. 37 e parágrafos do Código é indivisível no sentido de que basta uma única ofensa para que todos os consumidores sejam atingidos e também no sentido de que a satisfação de um deles, pela cessação da publicidade ilegal, beneficia contemporaneamente a todos eles. As pessoas legitimadas a agir, nos termos do art. 82, poderão postular em juízo o provimento adequado à tutela dos interesses ou direitos difusos da coletividade atingida pela publicidade enganosa ou abusiva; b) colocação no mercado de produtos com alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança dos consumidores, o que é vedado pelo art. 10 do Código. O ato do fornecedor atinge todos os consumidores potenciais do produto, que são em número incalculável e não vinculados entre si por qualquer relação-base. Da mesma forma que no exemplo anterior, o bem jurídico tutelado é indivisível, pois uma única ofensa é suficiente para a lesão de todos os consumidores, e igualmente a satisfação de um deles, pela retirado do produto do mercado, beneficia ao mesmo tempo a todos eles.
Para defesa dos interesses difusos, como nos casos apontados, basta uma única ação judicial coletiva, sendo o caso tratado molecularmente, pois a sentença faz coisa julgada erga omnes, sendo desnecessária várias ações para que se tenha a solução de um mesmo caso. Vale tal explicação, pois se tem ingressado com ações distintas setorizando aquilo que não está setorizado, dizendo na vestibular que tal ação se refere a um determinado segmento da sociedade (moradores de um Estado ou Município, por exemplo) desnaturando por completo a natureza indivisível do interesse, atomizando os conflitos quando o interesse do legislador foi tratá-los molecularmente para assim se obter um tutela mais efetiva e abrangente.
3.3. Interesses Coletivos
Segundo o Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 81, parágrafo único, inciso II, coletivos são os interesses transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si, ou com a parte contrária, por uma relação jurídica base.
Se pode dizer que coletivos são os interesses que compreendem uma categoria determinada, ou pelo menos determinável de pessoas, dizendo respeito a um grupo, classe ou categoria de indivíduos ligados por uma mesma relação jurídica-base e não apenas por meras circunstâncias fáticas, como acontecia na modalidade de interesses supra-individuais antes analisada (nos interesses difusos).
Os interesses coletivos, contudo, se afastam dos supra-individuais diante da existência de uma possibilidade de determinação dos mesmos (são determináveis até mesmo pela própria existência de uma relação jurídica a uni-los, o que facilita, em muitos casos a individuação dos interessados): todos estão unidos porque pertencem a uma mesma categoria, com ela mantendo cada qual uma relação jurídica idêntica e, por definição, acham-se unidos para alcançar aquilo que sintetiza as aspirações do grupo, identificando-o como tal. Daí, poder-se afirmar que o traço distintivo básico do interesse coletivo é a “organização” . Sem um mínimo de organização, os interesses não podem se “coletivizar”, não podem se aglutinar de forma coesa e eficaz no seio de um grupo determinado.
Não se trata da defesa do interesse pessoal do grupo; não se trata, tampouco, de mera soma ou justaposição de interesses dos integrantes do grupo; trata-se de interesses que depassam esses dois limites, ficando afetos a um ente coletivo, nascido a partir do momento em que certos interesses individuais, atraídos por semelhança e harmonizados pelo fim comum se amalgamam no grupo. Quer dizer: o sindicato representa a “profissão”, e não seus aderentes; uma associação de pais representa a “família”, e não o conjunto de seus filiados. Por via de conseqüência, o interesse coletivo torna-se para o grupo um interesse direto e pessoal, legitimando o grupo a representar a coletividade com um todo. Seriam, assim, tais interesses
afetos a vários sujeitos não considerados individualmente, mas sim por sua qualidade de membro de comunidades menores ou grupos intercalares, situados entre o indivíduo e o Estado11
Pode-se dizer, portanto, que são elementos fundamentais para caracterizar o “interesse coletivo” : um mínimo de organização, a fim de que os interesse ganhem coesão e a identificação necessária; a afetação desses interesses a grupos determinados (ou ao menos determináveis), que serão os seus portadores; um vínculo jurídico básico, comum a todos os participantes, conferindo-lhe a situação jurídica diferenciada.
Sintetizando o que foi dito a respeito de interesse coletivo, trazemos o conceito de Santoro Passarelli:
interessi di una plurilità di personne a un bene idoneo a soddisfare un bisogno comune. Esso non è la somma di interessi individuali, ma la loro combinazione, ed è indivisibili nel senso che viene soddisfatto non già da più beni atti a soddisfare i bisogni individuali, ma da un único bene atto a soddisfare il bisogno della collettività.12
3.4. Interesses Individuais Homogêneos
Os interesses que compartilham os titulares dos interesses individuais homogêneos são divisíveis, cindíveis, passíveis de ser atribuídos a cada um dos interessados, na proporção que cabe a cada um deles, mas que, por terem uma origem comum, são tratados coletivamente.
Demais, esses interesses originam-se não de uma idêntica relação jurídica, mas sim de circunstâncias fáticas. Não há, portanto, relação jurídica-base a unir os interessados.
Aliás, é justamente a circunstância de que a união dos titulares de um interesse individual homogêneo tem sua origem numa situação fática que faz com que esses interesses se aproximem dos difusos e se afastem dos coletivos em sentido estrito.
Com efeito, basta lembrar que os interesses difusos também têm origem numa situação fática, não havendo relação jurídica básica comum a unir os titulares indetermináveis dos mesmos.
As principais diferenças entre os interesses individuais homogêneos e os difusos, portanto, residem na divisibilidade daqueles e indivisibilidade destes e, ainda, na possibilidade de identificação dos interessados naquela modalidade e na impossibilidade de identificação desta.
As principais diferenças entre os interesses individuais homogêneos e os coletivos (stricto sensu) situam-se também na divisibilidade daqueles e indivisibilidade destes e no fato de a ligação dos interessados que são titulares dos interesses coletivos no sentido estrito se dar por uma mesma relação jurídica-base.
Essa categoria de direitos, passíveis de ser tutelados coletivamente em juízo, surge, ao menos com essa denominação, no Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, que veio permitir que esses direitos cujos titulares são plenamente identificáveis e cujo objeto é cindível sejam defendidos coletivamente em juízo.
4. O Ministério Público
A forma de intervenção do Ministério Público no processo civil se dá de acordo com o interesse público a ser discutido. Para defesa daqueles interesse indisponíveis tidos pela ordem jurídica como essenciais a sociedade é outorgada ao Ministério Público a possibilidade de manejar a ação civil pública, já quando o interesse, apesar de indisponível, depende da iniciativa de seu respectivo titular, cabe ao Ministério Público o seu acompanhamento para fiscalização de que será o mesmo respeitado, sem, entretanto, tirar do titular a possibilidade da escolha do momento oportuno para sua reclamação.
A princípio merece se discutir essa tradicional divisão de tarefas do Ministério Público, afinal de contas ele participa do contraditório seja a que título for sua intervenção, podendo produzir provas, participando de todos os atos processuais, enfim se comportando perante o juiz como parte e sendo assim tratado. Por esse motivo assim escreveu Vicente Greco ao se referir a essa divisão:
…merece críticas porque não define exatamente a razão da intervenção e a sua verdadeira posição processual. Com efeito, todo aquele que está presente no contraditório perante o juiz á parte. Portanto, dizer que o Ministério Público ora é parte ora é fiscal da lei não define uma verdadeira distinção de atividades, porque seja como autor ou como réu, seja como interveniente eqüidistante a autor e réu, o Ministério Público desde que participante do contraditório, também é parte. Modernamente, procura-se buscar a distinção da atividade do Ministério Público no processo civil segundo a natureza do interesse público que determina essa mesma intervenção. É preciso destacar preliminarmente que, no processo civil, a intervenção do Ministério Público tem como pressuposto genérico necessário a existência, na lide, de um interesse público. Ora, esse interesse público pode estar definido como ligado ao autor, como ligado ao réu, ou pode estar indefinido. Assim, é possível classificar a atuação do Ministério Público no processo civil segundo o interesse público que ele defende, da seguinte forma: o Ministério Público intervém no processo civil em virtude e para a defesa de um interesse público determinado, ou intervém na defesa de um interesse público indeterminado.13
Apesar do exposto, o art. 5º da Lei n. 7.347/85, prevê a participação do Ministério Público lhe atribuindo duas formas de intervenção nesse tipo de ação: seja como parte, seja como fiscal da lei, tais formas de participação serão a seguir analisadas.
4.1. Como Parte
Está o Ministério Público legitimado para o ingresso de ação civil para interesses de difusos e coletivos, é o que diz o art. 129, III da Constituição Federal. A lei que rege a ação civil pública já atribuía tal legitimação ao parquet e assim também o fez o Código de Defesa do Consumidor em seu art. 82, sendo que nesse ordenamento foi ampliado o raio de ação da instituição para incluir também a defesa dos interesses individuais homogêneos.
Querem alguns autores classificar a legitimação do Ministério Público como extraordinária quando é parte, pois estaria defendendo não interesse próprio, mas de um grupo de pessoas
Age em nome próprio pela específica legitimação que a ordem jurídica lhe conferiu, mas os interesses cuja proteção persegue por meio da ação pertencem a terceiros, sejam estes determinados, determináveis ou indetermináveis, mas sempre terceiros. É a estes que cabe a titularidade dos interesses sob tutela. Por essa razão, a legitimação do Ministério Público na ação civil pública é extraordinária14
Outros autores, como Rodolfo de Camargo Mancuso, entendem que a legitimação do Ministério Público é ordinária, pois é a lei que lhe confere legitimidade para o ingresso com a ação, além disso alguns interesses não podem ser atribuídos a qualquer coletividade, pois pertencentes a humanidade, como é o caso da preservação da floresta amazônica, por exemplo, nesses casos o Ministério Público não está a substituir essa ou aquela parte, mas defendendo em juízo, em nome próprio, interesse público por determinação legal.
Vale trazer aqui lição de Mancuso:
Presentemente, os interesses difusos já passaram a ser acionáveis, visto que o legislador reconheceu sua existência e a possibilidade de se os fazer em juízo. Com isso, cremos que não mais padece dúvida quanto à sua “legitimidade”, nem há por que considerar o tema sob a rubrica de legitimação extraordinária. Se, v.g., a Associação de Defesa da Serra do Mar promove uma ação civil pública para responsabilizar as empresas causadoras da poluição que vitimou a floresta, ela estará agindo autorizada pela lei (n. 7.347/85, art. 5º) e defendendo posição jurídica própria. Basta, portanto, que se interprete com a devida abertura e atualidade o art. 6º do CPC e se poderá concluir que é ordinária a legitimação das entidades referidas no art. 5º da citada lei sobre os interesses difusos. 15
Como dito anteriormente, a legitimação para agir do Ministério Público não se limita aos interesses difusos e coletivos engloba também os individuais homogêneos, apesar de existir polêmica quanto a estes últimos, pois alegam alguns doutrinadores que são os mesmos cindíveis e disponíveis, portanto inclusos na esfera da defesa individual por cada um dos interessados. Contrariando essa linha de raciocínio, Mancuso e Kazuo Watanabe afirmam que a Constituição Federal, ao determinar em seu art. 127, caput, que compete ao Ministério Público a defesa “dos interesses sociais e individuais indisponíveis” estendem o seu campo de atuação para aqueles interesses que apesar de individuais apresentam grande destaque na sociedade devendo ser tutelados pelo Ministério Público.
Em linha de princípio, somente os interesses individuais indisponíveis estão sob a proteção do parquet. Foi a relevância social da tutela a título coletivo dos interesses ou direitos individuais homogêneos que levou o legislador a atribuir ao Ministério Público e a outros entes públicos a legitimação para agir nessa modalidade de demanda molecular. 16
4.2. Como fiscal da lei
Quando não é parte, deve o Ministério Público intervir obrigatoriamente como custos legis tendo em vista os interesses envolvidos.
Em virtude de certos interesses serem relevantíssimos socialmente e, por isso, considerados pela lei como indisponíveis, não importa a titularidade dos mesmos, o Ministério Público é sempre chamado
…a participar imparcialmente do processo, colaborando com o juiz e com as partes, tudo no intuito de permitir a mais perfeita definição jurisdicional do interesse; a defesa da indisponibilidade, nesse caso, significa lutar pelo reconhecimento tanto da existência como da inexistência do interesse. 17
Os interesses difusos e coletivos foram alçados pelo Estado como interesses máximos da sociedade. Quando a Constituição dá a esses interesses o caráter de indisponibilidade significa dizer que submeteu todos os demais interesses a esses que são considerados essenciais a sociedade não podendo ser postergados nem pelos indivíduos, nem pelo próprio Estado.
A indisponibilidade que caracteriza tais interesses implica na impossibilidade de renúncia dos mesmos por seus titulares, ou pelos órgãos incumbidos de sua proteção. É sabido que tais interesses, via de regra, envolvem os interesses econômicos de vários grupos, havendo sempre o risco de colusão entre as partes, pressões do autor coletivo visando receber vantagens em troca da desistência da causa. Por esse motivo se faz imprescindível a intervenção ministerial sempre que um desses interesses vai a juízo.
5. Conclusão
Com a elaboração do presente trabalho foi possível concluir que atualmente os interesses e direitos dos consumidores têm uma nova arma em sua defesa. Após a promulgação da Lei nº 8.708/90, Código de Defesa do Consumidor, um grande passo foi dado em caminho do resgate da cidadania. Com o advento desse instrumento legal muitas queixas que antes ficava apenas no plano de lamentações passaram a lides resolvidas judicialmente sob uma nova ótica no julgamento e apreciação desses casos.
O Ministério Público, que atingiu após a Constituição Federal papel de verdadeiro “ombudsman” do povo, tem tido papel determinante na defesa dos interesses coletivos do consumidor que antes não eram levados à sério, especialmente pelos grandes grupos econômicos-financeiros que dominam o mercado de consumo.
É necessária uma nova mentalidade, uma nova consciência de cidadania e de direitos que cada um tem e deve preservar. Com o amadurecimento dessa idéia e do conhecimento que nossa legislação já prevê instrumentos adequados, como a ação civil pública, para a sua defesa é que construiremos um país melhor, com igualdade de oportunidades, com respeito ao próximo e melhor qualidade de vida para todos.
Talvez seja um ideal utópico, mas são essas utopias, quando instrumentalizadas, que modificam uma sociedade, uma época e um povo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
1DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moderno. 2ª ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1986, p.117 ss.
2 MARQUES, José Frederico. Manual de Direito Processual Civil. 1º vol. Rio de Janeiro: Forense, 1974, p. 163
3 CALAMANDREI, Piero. Instituciones de Derecho Procesal Civil. v. I. Trad. Castelhana, 1973, p. 38
4 O ministério Público e a ação ambiental. Cadernos Informativos. São Paulo: APMP, 1988.p.33
5 MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. 5ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 1993. p. 32
6 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação Civil Pública. 5ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais.1997. p. 18.
7 GRINOVER, Ada Pellegrini. Ações Coletivas para a tutela do ambiente e dos consumidores. Seleções Jurídicas. COAD, set. 1986, p. 3
8 MANCUSO, Rodolfo Camargo. Ob. citada Manual do Consumidor em Juízo, pág. 24.
9 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Ações Coletivas na Constituição Federal de 1988. Revista de Processo. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, nº 61, p. 188-189
10 WATANABE, Kazuo. Código de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 5ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária. 1988. p.625
11 BASTOS, Celso. A tutela dos interesses difusos no direito constitucional brasileiro. RePro 23. São Paulo: RT, jul/set 1981. p.40.
12 PASSARELLI, Santoro, apud VIGORITI, Vicenzo. Interessi collettivi e processo. Milão: Giuffrè,1979
13 GRECO FILHO, Vicente. Ob. cit. p. 154
14 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ação Civil Pública comentários por artigo. 1ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora. 1995. P. 78
15 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses Difusos: conceito e legitimação para agir. São Paulo: RT, 1988 (3ª ed. 1994). p. 175
16 WATANABE, Kazuo. Ob. cit. p. 640
17 MACHADO, Antônio Claúdio da Costa. A intervenção do Ministério Público no Processo Civil Brasileiro.2ª ed. São Paulo: Saraiva. 1998. p. 65