A Ação Civil Pública no Estatuto da Criança e do Adolescente

Hugo Nigro Mazilli

RESUMO:
O autor faz uma análise da Ação Civil Pública no Direito Brasileiro, destacando sua fundamentação
constitucional e legal e sua natureza jurídica. Distingue o que são interesses difusos e coletivos,
identificando as hipóteses de legitimação ordinária e extraordinária. Analisa, especialmente, as
hipóteses de Ação Civil Pública no ECA.

1- O Que é Ação Civil Pública

O primeiro texto legal a mencionar a expressão “ação civil pública” foi o art. 3o , III da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei Complementar federal no 40, de 13-12-1981). A expressão, porém, só veio a ser consagrada na Lei no 7347/85, que cuidou da defesa do meio ambiente, do consumidor e de valores culturais.

A seguir, a Constituição Federal de 1988, abandonando a fórmula de numerus clausus, conferiu a ação civil pública ao Ministério Público para defesa do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos (art. 129, III).

Seguiram-se diversas leis ordinárias, no mesmo sentido, como a Lei no 7853/89 (para defesa das pessoas portadoras de deficiência), a Lei no 7913/89 (de responsabilidade por danos causados aos investidores no mercado de valores mobiliários), e, por fim, a Lei no 8069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente).

Na sua criação, com “ação civil pública”, por certo se queria apenas distinguir a ação de objeto não-penal, proposta pelo Ministério Público. Tratava-se de enfoque nitidamente subjetivo, baseado na titularidade ativa de qualquer ação civil, sem objeto mais específico, desde que proposta pelo Ministério Público.

Tanto a Lei no 7347/85, como as leis posteriores, e a própria Constituição, ao disciplinarem a “ação civil pública”, não a restringiram à iniciativa do Ministério Público.

Ação civil pública passou a significar não só a ação ajuizada pelo Ministério Público, como a ação proposta por outros legitimados ativos – pessoas jurídicas de direito público interno, associações e outras entidades – desde que seu objeto fosse a tutela de interesses difusos ou coletivos (agora um enfoque subjetivo-objetivo, baseado na titularidade ativa e no objeto específico da prestação jurisdicional).

O conceito de ação civil pública alcança hoje, portanto, mais que as ações de iniciativa ministerial; é útil, contudo, dar atenção especial a estas últimas, porque, ordinariamente, é o Ministério Público quem toma a iniciativa de sua propositura.
Em se tratando das ações de que cuida o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei no 8069/90), em regra seu ajuizamento cabe aos órgãos do Ministério Público investidos nas funções de Curadoria de Menores (os quais, nas novas Leis Orgânicas do Ministério Público, certamente oficiarão perante os Juízes da Infância e da Juventude, sendo provável que venham a chamar-se os Curadores da Infância e da Juventude, cf. arts. 146 e 148, IV, do Estatuto).

2 – O Que são Interesses Difusos

Partindo de uma distinção já propiciada pelos estudos de Carnelutti, Renato Alessi procurou distinguir duas facetas do interesse público.

O interesse público identifica o bem geral, ou seja, o interesse da coletividade como um todo: esse é o que se pode chamar de interesse público primário.

Já o interesse público visto pelo Estado é o que se pode chamar de interesse público secundário.

Embora naturalmente fosse desejável a perfeita e permanente coincidência entre o interesse público secundário e o interesse público primário, é mais do que claro para todos nós que o interesse do Estado como pessoa jurídica nem sempre coincide com o interesse público primário.

Assim, a decisão de construir uma usina nuclear neste ou naquele lugar pode ou não, efetivamente, ser opção segura em prol da população; a decisão de inundar mais cedo ou mais tarde uma vasta região de terras, para construir uma usina hidrelétrica pode ser mais ou menos acertada, sob o ângulo do interesse geral. As ações populares estão aí a confirmar o exemplo de que nem sempre o interesse público, visto pelo administrador, coincide com o verdadeiro interesse da coletividade.

Confundem-se antes com o interesse público primário os mais autênticos interesses difusos (o exemplo, por excelência, do meio ambiente); e, num sentido lato, também os interesses que, posto reflexamente, atinjam toda a sociedade (nesse sentido, até mesmo o interesse individual, se indisponível, deve se considerado interesse público).

Por difuso se quer, exatamente, entender o interesse de um grupo ou de grupos menos determinados de pessoas, entre as quais não haja vínculo jurídico ou fático muito preciso.

Por sua vez, interesse coletivo é o que abrange categoria determinada ou pelo menos determinável de indivíduos, como a dos associados de uma entidade de classe.

Assim como ocorre com o interesse individual indisponível, também o interesse coletivo, se indisponível, está inserido naquela noção mais abrangente de interesse público.

Todas estas noções introdutórias são indisponsáveis para conceituar o que seja ação civil pública, ainda que com o escopo mais específico de situá-lo dentro do campo de abrangência do Estatuto da Criança e do Adolescente.

3 – Legitimação Ordinária e Extraordinária

Ainda no campo introdutório deste estudo, é necessário anotar que a clássica maneira de buscar em juízo a defesa de interesses dá-se por meio da chamada legitimação ordinária, ou seja, o lesado defende seu próprio interesse.

Em nosso sistema jurídico, fica limitada a hipóteses excepcionais a chamada legitimação extraordinária, ou seja, a possibilidade de alguém, em nome próprio. defender interesse alheio (art. 6o do CPC). Quando isso ocorre, configura-se verdadeira substituição processual, inconfundível com a representação, pois nesta última alguém, em nome alheio, defende o interesse alheio.

Em matéria de interesses coletivos e difusos, antes das já citadas leis – Lei no 7347/85 (Lei da ação civil pública, de proteção ao meio ambiente, ao consumidor e ao patrimônio cultural), Lei no 7853/90 (Lei da ação civil pública de proteção às pessoas portadoras de deficiência), Lei no 1913/89 (Lei da ação civil pública para proteção dos investidores no mercado mobiliário) e Lei no 8069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente) -, poucas fórmulas havia para a defesa global em juízo dos ditos interesses coletivos e difusos (como a ação popular e as ações cíveis propostas pelo Ministério Público). Nesses casos, a legitimação ordinária nem mesmo seria praticável, pois não seria viável o comparecimento de todos os lesados a
juízo.

No caso dos conflitos de interesses difusos, mister se tornou encontrar uma fórmula que, dentro da tradição de nosso Direito, também desse acesso ao Judiciário.

Essa fórmula foi a ação civil pública.

4 – A Defesa de Interesses Difusos e Coletivos na Área de Proteção à Criança e à Juventude

À vista dos bons frutos da Lei no 7347/85, a Constituição de 1988 não só ampliou o rol dos legitimados ativos para a defesa dos interesses transindividuais, como alargou as hipóteses de cabimento da sua tutela judicial (v.g., art. 5o, XXI – que confere às entidades associativas a representação de seus filiados em juízo ou extrajudicialmente; art. 5o, LXX – que cuida do mandado de segurança coletivo; art. 8o, III – que confere aos sindicatos a representação judicial ou administrativa dos interesses coletivos ou individuais da categoria etc.).

Analisando os principais direitos ligados à população da infância e da juventude, como foram elencados pelo art. 227, caput, da Constituição da República, vemos que a indisponibilidade é sua nota predominante, o que torna o Ministério Público naturalmente legitimado à sua defesa (art. 127 da CR).

Com efeito, diz o art. 227 da Constituição ser “dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

A análise do Estatuto da Criança e do Adolescente, como um todo, reforça esta conclusão, seja quando cuida dos seus direitos fundamentais (art. 7o e s.: direito à vida e à saúde; à liberdade, ao respeito e à dignidade; à convivência familiar e comunitária; à educação, ao esporte e ao lazer; à profissionalização e à proteção no trabalho), seja quando cuida dos seus direitos individuais (art. 1006 e s.).

5 – Hipóteses de Ações Civis Públicas

A atuação do Ministério Público, na área de proteção da criança e da juventude, pode dar-se pela propositura de inúmeras ações civis públicas.

Inicialmente, não se pode afastar a possibilidade de ajuizamento de representações interventivas ou de ações diretas de inconstitucionalidade de norma federal, estadual ou municipal (até mesmo por omissão) ou, ainda, de ajuizamento de mandado de injunção, quando a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício de direitos e liberdades constitucionais.

Também deve ser lembrado o importante papel fiscalizador exercido pelo Ministério Público quanto aos gastos públicos, às campanhas, aos subsídios e investimentos estatais ligados à área em exame.

Igualmente, devem ser consideradas as ações civis públicas destinadas a proteger a criança e o adolescente enquanto destinatários de propaganda ou na qualidade de consumidores (arts. 77-82 do Estatuto e Lei no 7347, de 1985).

Pelo novo Estatuto, regem-se pelas disposições da Lei no 8069/90 as ações de responsabilidade por ofensa aos direitos assegurados à criança e ao adolescente, referentes ao não-oferecimento ou oferta irregular:
– do ensino obrigatório;
– de atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência;
– de atendimento em creche e pré-escola;
– de ensino noturno;
– de programas suplementares de oferta de material didático-escolar, transporte e assistência à saúde;
– de serviço de assistência social;
– de acesso às ações e serviços de saúde;
– de escolarização e profissionalização dos adolescentes privados de liberdade (cf. art. 208).

Como exemplos concretos, podem ser mencionadas as seguintes ações civis públicas:
a) contra a Fazenda Pública e os empregadores em geral, para assegurar condições de aleitamento materno (art. 9o);
b) contra a Fazenda Pública para assegurar condições de saúde e de educação (arts. 11 e § 2o, e 54, § 1o);
c) contra hospitais, para que cumpram disposições do Estatuto (art. 10);
d) contra empresas de comunicação (arts. 76 e 147, § 3o);
e) contra editoras (arts. 78-79 e 257);
f) contra entidades de atendimento (arts. 97, parágrafo único; 148, V; 191);
g) contra os próprios pais ou responsáveis (arts. 129, 155, 156);
h) de execução das multas (art. 214, § 1o).

Reiterem-se, enfim, duas questões fundamentais, assim interpretadas num contexto que concorre para melhor proteção da criança e do adolescente.

De um lado, a enumeração de ações civis públicas de iniciativa ministerial é meramente exemplificativa, haja vista a norma residual ou de extensão contida não só no art. 201, VI, do Estatuto, como no art. 129, III, da Constituição federal.

De outro, nessa área, não é nem podera ser exclusiva a legitimidade ativa do Ministério Público (arts. 201, § 1o, e 210 do Estatuto; art. 129, § 1o, da CR); sua iniciativa não exclui a de terceiros, na forma da lei.

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