Hélia Karla Ramos Soares de Carvalho*
O tempo de serviço prestado sob condições especiais para efeitos de aposentadoria por tempo de contribuição é tema dos mais debatidos atualmente no âmbito do Direito Previdenciário. Desde longa data, o trabalho prestado sob condições especiais, ou seja, com exposição a agentes prejudiciais à saúde ou à integridade física, confere ao segurado o direito à aposentadoria especial, na forma prevista no art. 57 e seguintes da Lei nº 8.213, de 24.07.1991, a qual dispõe sobre os planos de benefícios da Previdência Social.
Considerou o legislador, com elogiável ponderação, que o segurado exposto por um longo período no ambiente de trabalho a agentes nocivos químicos, físicos, biológicos ou à associação de agentes prejudiciais à saúde ou à integridade física, mereceria aposentar-se um pouco mais cedo.
Por outro lado, quando o tempo de trabalho exercido nessas condições não fosse suficiente para a obtenção dessa espécie diferenciada de aposentadoria (15, 20 ou 25 anos, conforme o caso), o legislador previdenciário facultou a sua conversão para tempo de serviço em atividade comum, a fim de possibilitar a concessão de aposentadoria por tempo de contribuição.
Mister ressaltar que, até o advento da Lei nº 9.032, de 28/4/1995, para se proceder à conversão sobredita, bastava o enquadramento da atividade ou do agente químico ou físico nas relações constantes dos anexos dos Decretos nºs. 53.831, de 25 de março de 1964, e 83.080, de 24 de janeiro de 1979, para que a atividade fosse reconhecida como especial.
Já para as atividades exercidas posteriormente a essa data, ou seja, a partir de 29.04.1995, embora continuassem sendo utilizados os referidos anexos (até a edição do Decreto nº 2.172/97, quando passou a ser utilizado o anexo IV deste), tornou-se imprescindível, também, a demonstração de efetiva exposição aos agentes nocivos, o que se operacionalizava através do preenchimento dos formulários específicos de rubricas SB-40 ou DSS-8030.
Tal exigência perdurou até a edição da Medida Provisória nº 1.523/96, posteriormente convertida na Lei nº 9.528, de 10/12/1997, e que modificou a redação do art. 58 da Lei nº 8.213/91, passando a prescrever, em acréscimo, a necessidade de laudo técnico assinado por médico do trabalho ou engenheiro de segurança do trabalho.
Portanto, nos dias atuais, esse é o meio hábil para comprovação das atividades exercidas com exposição a agentes nocivos, servindo tanto para a concessão da aposentadoria especial, quanto para a conversão do tempo de serviço prestado naquelas condições.
É certo que grande parte dos juristas defendem que, a partir da edição da Medida Provisória nº 1.663-10, de 28/5/1998, não há mais possibilidade de conversão do tempo de serviço especial para comum, haja vista o parágrafo 5º do art. 57 da Lei nº 8.213/91 ter sido revogado expressamente por aquela Medida.
Talvez isso se deva ao fato de não ter sido efetuada análise acurada da evolução legislativa pertinente à matéria, o que derivou em inúmeros precedentes, sobretudo do Superior Tribunal de Justiça, a exemplo dos Recursos Especiais nºs 300125/RS; 392469/RS; 313089/PE; 381687/RS, contrários ao entendimento que se passa a abordar.
De fato, embora a MP 1.663-10 e suas reedições tenham, de fato, revogado expressamente o dispositivo legal supracitado da Lei nº 8.213/91, a redação deste foi alfim mantida com a superveniência da Lei nº 9.711, de 20.11.1998, que converteu a Medida Provisória 1.663-15.
Em suma, a possibilidade da conversão em análise deixou de ter amparo legal enquanto sucessivamente reeditada a MP 1.663-10, porém voltou a existir no mundo jurídico com a promulgação da Lei nº 9.711/98, já que essa não dispôs quanto à revogação expressa do parágrafo 5º do art. 57 da Lei nº 8.213/91.
Note-se haver persistido a redação do “caput” desse mesmo artigo 57, tal como veiculada na Lei nº 9.032/95, manutenção essa ordenada expressamente no art. 15 da Emenda Constitucional nº 20, de 15.12.1998, de modo que o regramento da aposentadoria especial continuou reservado à lei, em sentido estrito.
E não se diga que o art. 28 da Lei nº 9.711/98, por si só, impossibilita a conversão do tempo de serviço prestado em condições especiais, pois o nosso ordenamento jurídico só admite a revogação tácita de uma lei quando houver incompatibilidade entre ela e a lei antiga, ou pelo fato de a nova lei passar a regular inteiramente a matéria tratada na anterior (art. 2º, parágrafo 1º, do Decreto-Lei nº 4.657, de 04.09.1942 – Lei de Introdução ao Código Civil).
Com efeito, o art. 28 cuidou, tão-somente, de delegar ao Poder Executivo autorização para estabelecer critérios para a conversão do tempo de trabalho exercido até 28.05.1998 (o que resultou no parágrafo único do art. 70 do Decreto nº 3.048/99), sem prescrever qualquer vedação à conversão posterior a essa data.
Não há como negar que o art. 28 – cujo teor, aliás, permaneceu inalterado por ocasião da conversão em lei da MP 1.663-15 – encontrava sua razão de ser na revogação expressa constante à época da MP nº 1.663-10. Entretanto, o simples desacolhimento daquela parte da medida provisória pelo legislador já denota a clara intenção de preservar o direito à transmudação do tempo de serviço prestado em atividade especial para comum.
Por fim, consigne-se a flagrante ilegalidade do caput do art. 70 do Decreto nº 3.048, de 06.05.1999, ao vedar a conversão de tempo de serviço prestado sob condições especiais, uma vez que o direito pátrio inadmite a figura do decreto autônomo, em face do poder regulamentar previsto no art. 84, IV, da Constituição Federal. Assim, tratando-se de decreto regulamentar ou de execução, não caberia nele figurar a criação ou restrição de direitos, sobretudo em descompasso com os preceitos da lei que visa regulamentar.
Em conclusão, temos que a conversão de tempo de serviço posterior a 28/5/98 continua válida, desde que obedecidos os critérios do parágrafo único do art. 70 do Decreto 3.048/99 c/c art. 28 da Lei nº 9.711/98.
Revista Consultor Jurídico.
Hélia Karla Ramos Soares de Carvalho é analista judiciária, assessora no gabinete do Juizado Especial da Justiça Federal, Seção Judiciária da Paraíba.