A ausência da regulamentação da lei do desarmamento

Thales Tácito Pontes Luz de Pádua Cerqueira

Promotor de Justiça/Promotor Eleitoral – MG
Professor de Direito Processual Penal 1 da FADOM(graduação) – Divinópolis/MG
Professor de Direito Eleitoral da FADOM(pós-graduação) – Divinópolis/MG
Professor de Pós-graduação(Direito Eleitoral) da Fundação Escola Superior do Ministério Público-Belo Horizonte
Professor/ Conferencista do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional do Ministério Público-Belo Horizonte
Professor de Direito Eleitoral, Prática Forense, Estatuto da Criança e do Adolescente e Processo Penal do Curso Satelitário- Instituto de Ensino Luiz Flávio Gomes (IELF) – São Paulo/SP
Autor do livro Direito Eleitoral Brasileiro, 2ª edição, Del Rey, 2002
Autor do livro – Manual de Prática Forense, 1ª edição(no prelo), RT, SP, 2004
Autor do livro – Manual de Direito Penal Eleitoral & Processo Penal Eleitoral, 1ª edição, JUSPODIVM, Salvador/BA, 2004

A AUSÊNCIA DA REGULAMENTAÇÃO DA LEI DO DESARMANENTO PELA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA(10826/03) GERA ATIPICIDADE PENAL, PELA TEORIA DA TIPICIDADE CONGLOBANTE ?

A Lei 10.826/03, no seu artigo 32, estabelece que
“Os possuidores e proprietários de armas de fogo não registradas poderão, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias após a publicação desta Lei, entregá-las à Polícia Federal, mediante recibo e, presumindo-se a boa-fé, poderão ser indenizados, nos termos do regulamento desta Lei”.

A questão é a seguinte:

Até a existência do Regulamento da Lei 10.826/03 pela Presidência da República, será típica a conduta daquele que for surpreendido com arma de fogo ?

A resposta comporta duas situações distintas:

1ª hipótese: sujeito preso em flagrante apenas por crime de ausência ou porte de arma de fogo

Neste caso, não haverá crime, por força da teoria do jurista argentino Raúl Eugênio Zaffaroni(tipicidade conglobante):

Para Eugênio Raúl Zaffaroni[1], tipicidade penal implica em antinormatividade(contrariedade à norma), não admitindo que na ordem normativa uma norma ordene o que a outra proíbe, pois neste caso deixa de ser ordem e de ser normativa e torna-se uma “desordem” arbitrária.

Para o mestre, as normas jurídicas não “vivem” isoladas, mas num entrelaçamento em que umas limitam as outras,e não podem ignorar-se mutualmente, pois uma ordem normativa não é um caos de normas proibitivas amontoadas em grandes quantidades, depósito de proibições arbitrárias, mas uma ordem de proibições, um conjunto de normas que guardam entre si uma certa ordem, cujo objetivo final é evitar a guerra civil.

Assim, essa ordem jurídica mínima que as normas devem guardar entre si impede que uma norma proíba o que a outra ordena, como também impede que uma norma proíba o que a outra fomenta(incentiva).

Portanto, pela interpretação lógica, o tipo não pode proibir o que o direito ordena ou fomenta.

Se a objetividade jurídica da Lei 10826/03 é desarmar a população(artigos 12 e seguintes – norma incriminadora) e o artigo 32 da mesma lei traz norma permissiva(entrega da arma de fogo não será crime se feita dentro de 180 dias da regulamentação da lei), até o advento da regulamentação da Lei 10.826/03 pela Presidência da República o prazo de 180 dias não se inicia, de forma que o fato é atípico penal no sistema conglobado de normas.

O precedente aconteceu na comarca de Caçador/SC, onde o TJSC rejeitou denúncia de porte ilegal de arma de fogo(artigo 16 da Lei 10826/03) em face da ausência do regulamento e, portanto, o prazo de entrega de 180 dias estar ainda vigendo.

2ª hipótese: sujeito preso em flagrante por crime de ausência ou porte de arma de fogo e outro(homicídio, tráfico, quadrilha ou bando etc) em conexão

Nesta situação não haverá aplicação da teoria da tipicidade conglobante e sim, crime da Lei 10826/03 em concurso com outro praticado, já que não se pode falar em “entrega” de arma para quem é surpreendido cometendo outro delito.

Aplica-se, nesta hipótese, o princípio da continuidade normativa típica.

A questão é: o artigo 36 do Estatuto do Desarmamento revogou a Lei 9437/97(Lei do Porte de Armas). Isto significa abolitio criminis para os casos anteriores a entrada em vigora do Estatuto do Desarmamento, ou seja, antes de 23.12.2003?
Não, o fato de uma lei revogar a outra não significa, por si só, abolitio criminis, quando ocorrer o chamado princípio da “continuidade normativa típica”, consagrado no Direito Português.

Os fatos típicos anteriores que se seguiram regulados pela nova lei subsumem-se a ela, devendo a denúncia ser feita com base na nova Lei.

Porém, apesar da tipificação nova, o preceito secundário(pena) deve ser da lei anterior, por ser benéfico. Idem quanto à Liberdade Provisória Ademais, para os 4 verbos novos trazidos pela Lei 10826/03 não se aplica os fatos anteriores à lei(princípio da irretroatividade da lei penal maligna – CF/88, artigo 5º).

O professor Luiz Flávio Gomes, Direito Penal, Parte Geral, volume 1, página 175 leciona:
“não se pode confundir mera revogação formal da lei penal com abolitio criminis. A revogação da lei anterior é necessária para o processo de abolitio criminis, porém, não o suficiente.
Além da revogação formal impõe-se verificar se o conteúdo normativo revogado não foi(ao mesmo tempo) preservado em(ou deslocado para) outro dispositivo legal, pois se foi, não se dará a abolitio criminis e sim, uma continuidade normativa-típica(o tipo penal não desapareceu, apenas mudou de lugar.

Para a abolitio criminis, como se vê, não basta a revogação da lei anterior, impõe-se sempre verificar se presente(ou não) a continuidade normativa-típica”.
Assim, não se pode sustentar que o meliante cometendo crimes e preso em flagrante, desejava “entregar” a arma de fogo após o delito(o que lhe daria atipicidade pela tipicidade conglobante – artigo 32 da Lei 10826/03).

Lembremos que a Justiça pode ser cega, mas tem cérebro.

Notas:

[1] Eugênio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli, in Manual de Direito Penal Brasileiro, Parte Geral, 4º edição, RT,
São Paulo, 2003, p.457 e ss.

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