A autorização ambiental municipal

A autorização ambiental municipal tem gerado divergências na doutrina jurídica bem como na legislação ambiental pátria. Em torno do assunto, estão envolvidas questões relacionadas ao federalismo brasileiro, autonomia dos entes federados bem como problemas de hierarquia das normas jurídicas.

A principal controvérsia existente é se o município possui ou não poderes para realizar a autorização ambiental de atividades poluidoras e quais normas jurídicas podem outorgar competência para realizá-la. Este é um tema de extrema importância, já que com o crescimento dos municípios, cada dia mais as atividades desenvolvidas nestes podem causar poluição e degradar o meio ambiente. O presente artigo discute estas questões, defendendo a tese de que ao município é permitido autorizar atividades poluentes, desde que amparado por normas legais válidas.

A Constituição Federal, em seu artigo 18, garante que todos os entes federados, União, Estados, Distrito Federal e Municípios são autônomos. Vejamos o dispositivo:

“Art. 18. A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição.”

Assim, o Estado brasileiro é formado pela união de todos os entes acima citados, devendo portanto, haver respeito mútuo entre eles, obedecendo cada um a órbita de competência do outro.

E é justamente na competência de cada ente federado que as divergências surgem e o desacordo se instala. A competência legislativa de cada ente é determinada pela Constituição Federal de 1988 nos seus artigos 20 e segs.. Não se pretende aqui discorrer sobre todos os entes federados e dedicar-se-á, à competência municipal, especificamente na área ambiental.

Segundo MORAES (2000:273) o princípio geral que vai nortear a repartição das competências entre os entes federados é a predominância do interesse que, no âmbito municipal, seria dos assuntos concernentes ao interesse local. A regra geral de competência de acordo com a Constituição Federal de 1998 é que a União tem poderes gerais para legislar, cabendo aos Estados suplementar a legislação federal (art 24, §2º) bem como ao município a legislação federal e estadual (art. 30, II), neste caso desde que haja o interesse local. Assim, uma norma federal não pode ser contrariada por uma estadual ou municipal, sob pena de flagrante inconstitucionalidade. Esse é um princípio geral do Estado Democrático de Direito garantido pela Constituição Federal brasileira e é o que MACHADO (1998:49) chama de “sistema da fidelidade federal”.

Ocorre porém, que o município tem competência para legislar sobre assuntos de interesse local (art. 30, I, CF/88), o que amplia sua área de abrangência legislativa, devendo somente obedecer às disposições contidas nas normas superiores (estadual e federal)(1). Ressalta-se, no entanto, que os Estados e a União não têm um poder absoluto, devendo também ficar adstritos às suas competências, respeitando as disposições municipais legalmente impostas. Se tratar de um assunto local, não há que haver interferência do ente superior. Neste sentido, pertinente a lição de MACHADO (1998:49) ao afirmar que:

“A autonomia não significa desunião dos entes federados. Também não deve produzir conflito e dispersão de esforços. Mas a autonomia deve ensejar que o município tenha ou possa ter sistemas de atuação administrativa não semelhante ou desiguais aos vigentes nos Estados. Os Estados, por sua vez, poderão ter, também, sua organização administrativa ambiental diferente do governo federal. Assim, as normas gerais federais ambientais não podem ferir a autonomia dos Estados e dos Municípios, exigindo dos mesmos uma estrutura administrativa ambiental idêntica à praticada no âmbito federal.”

Após essa abordagem geral, trataremos especificamente sobre a proteção do meio ambiente. A Constituição Federal de 1988 assegura, em seu artigo 23, inciso VI e VII, que cabe à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, a defesa do meio ambiente, o combate à poluição, bem como preservar as florestas, a fauna e a flora. Assim, qualquer dos entes federados citados, possui competência para realizar estas atividades, desde não haja interferência na competência do outro. É o que MORAES (2000:274) denomina “áreas de atuação administrativa paralela”.

Tratando-se do licenciamento ambiental no âmbito dos entes federados, algumas divergências aparecem. Primeiramente, faremos uma análise breve sobre este instituto, para posteriormente tratarmos desta questão.

O licenciamento ambiental surgiu no ordenamento jurídico com a Lei 6938 de 31/08/1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, sendo um dos instrumentos desta, previsto no artigo 9º, IV, in fine:

Art. 9º. São instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente:

(…)

IV – o licenciamento e a revisão de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras;

Em resumo, tem por objetivo fazer com que as atividades efetiva ou potencialmente poluidoras, com possibilidade de causarem degradação ambiental, submetam-se à tutela do Estado para que minimizem seus impactos negativos no meio ambiente e, caso estes ocorram, realizem os poluidores medidas mitigadoras e/ou compensatórias ao dano. É portanto um instrumento de regulação ambiental.

Há uma discussão na doutrina, sobre qual a terminologia correta para o licenciamento ambiental, se é licença ou autorização da Administração Pública. Tem-se que licença é ato vinculado, ou seja, desde que o administrado preencha os requisitos previstos na norma, ele terá direito a esta. Já a autorização, é ato discricionário, cabendo à Administração Pública o exame da conveniência e oportunidade do ato. Assim, não tem o administrado direito à autorização se preencher os requisitos legais, dependendo da concessão do órgão do Estado. Entende-se que o termo adequado seja autorização e não licenciamento ambiental. Portanto, quando tratar no âmbito do município, utilizar-se-á a linguagem adequada.

Mas não é essa a discussão aqui e, sim, se o Município pode ou não realizar o licenciamento ambiental.

Em geral tem-se que todas as atividades realizadas no Brasil são permitidas, desde que não proibidas ou restringidas por lei. Este é o dispositivo do parágrafo único do artigo 170 da Constituição Federal, in verbis:

“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

(…)

Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.”

Assim, para haver a restrição à livre iniciativa, tem que ocorrer a previsão em lei, entendendo-se esta no sentido estrito, não sendo abrangidas outras normas jurídicas que não sejam leis.

Um exemplo desta restrição à livre iniciativa é o licenciamento ambiental, estabelecido em lei. A competência para realizá-lo, está previsto no artigo 10 da Lei 6938/81, transcrito abaixo:

“Art. 10. A construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais, considerados efetiva e potencialmente poluidores, bem como os capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, dependerão de prévio licenciamento de órgão estadual competente, integrante do Sistema Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA, e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis – IBAMA, em caráter supletivo, sem prejuízo de outras licenças exigíveis.”

Pela leitura do artigo acima, percebe-se que a lei outorgou competência para licenciar as atividades, somente ao órgão estadual competente, integrante do SISNAMA ou ao IBAMA, órgão federal, em caráter supletivo. Portanto, o legislador federal, pela Lei 6938/81, não outorgou poderes ao Município para realizar o licenciamento ambiental previsto nesta lei e regulamentado pelas demais normas jurídicas extravagantes.

No entanto, a Resolução 237 do CONAMA, que tem por objetivo estabelecer regras para o licenciamento ambiental previsto na lei 6938/81, previu em seu artigo 6º, que o Município pode realizar o licenciamento ambiental, desde que o impacto ambiental seja local ou que haja uma delegação de poderes pelo Estado a este. Veja a redação do artigo:

“Art. 6º. Compete ao órgão ambiental municipal, ouvidos os órgãos competentes da União, dos Estados e do Distrito Federal, quando couber, o licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades de impacto ambiental local e daquelas que lhe forem delegadas pelo Estado por instrumento legal ou convênio.”

Diante disso temos uma antinomia de normas e, para solucioná-las, recorrer-se-á às lições de FERRAZ JÚNIOR e BOBBIO. Estamos diante de uma antinomia aparente (já que há solução normativa para ela) e própria (já que ocorre por razões formais). Este último autor aponta 3 critérios para solucionar as antinomias: o critério cronológico, o hierárquico e o da especialidade. Importa-nos aqui utilizarmos o segundo, o qual, segundo o autor, quer dizer que “(…) de dos normas incompatibles prevalece la norma jierárquicamente superior: lex superior derrogat inferiori”. Assim, a norma constitucional prevalece sobre a lei ordinária e, in casu, as disposições contidas na lei 6938/81 derrogam as contidas na Resolução 237 do CONAMA.

Para dar maior guarida à invalidade do artigo 6º da Resolução 237 do CONAMA, na lei 6938/81, artigo 8º, I, previu-se que o CONAMA tem, dentre outras competências, estabelecer normas e critérios para o licenciamento de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras a ser concedido pelos Estados. Assim o CONAMA ao atribuir competência pra o município licenciar atividades poluidoras, ultrapassou os limites de sua competência contidas no artigo citado acima. Logo, são ilegais as disposições da Resolução do CONAMA nº 237 em relação à extensão de competência licenciadora aos municípios. Este também é o entendimento de OLIVEIRA (1999:109):

“Do exposto, verifica-se que os dispositivos da Resolução CONAMA nº 237/97, conferindo aos municípios capacidade para emitir licenças ambientais, são absolutamente inválidos. Estes dispositivos ultrapassam, de muito, a competência legal do Conselho estabelecida no art. 8º, inciso I da Lei 6938/81(…) Assim, a competência do CONAMA se limita a estabelecer critérios e normas gerais para o licenciamento, não estando, obviamente, incluída a de conferir capacidade para licenciar.”

Compartilha deste entendimento, o jurista ANTUNES (2001:107/108) ao afirmar sobre o artigo 5º e 6º da Resolução 237 do CONAMA que:

“A mesma Resolução, ilegalmente, invadiu a competência exclusiva dos Estados naquilo que diz respeito ao licenciamento ambiental, ao lhes retirar atribuições e delegá-las aos Municípios (arts. 5º e 6º). Curioso foi que a atribuição de licenciamento ambiental aos “entes federados” ficou condicionada à existência de Conselhos de Meio Ambiente, com caráter deliberativo e participação social e, ainda, que eles possuam profissionais habilitados (art. 20). O CONAMA, no particular, logrou se superar. Ou os Estados e Municípios possuem competência para licenciar em termos ambientais – competência outorgado pela Constituição Federal – ou não possuem. Não se conhece nenhum artigo da Constituição que autorize o CONAMA a estabelecer condições para o exercício, pelos integrantes da Federação, de suas competências constitucionais.”

Mas como poderá o município realizar a autorização ambiental em assuntos de interesse local? Será permitido pelo ordenamento jurídico pátrio?

Tem-se que ao município é possível realizar a autorização (licenciamento) ambiental de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras capazes de causar degradação ambiental. Porém esta atividade não pode estar contida na norma geral do licenciamento ambiental, ou seja, no anexo I da resolução 237 do CONAMA, já que conforme o artigo 7º da Resolução 237 do CONAMA, os empreendimentos serão licenciados em um único nível de competência. Neste anexo, estão previstas todas as atividades que, para serem exercidas, terão que se submeter ao licenciamento ambiental previsto na lei 6938/81, cujos órgãos competentes para licenciar as atividades são o estadual e, supletivamente o federal, integrantes do SISNAMA (Sistema Nacional do Meio Ambiente). Caberá à lei municipal definir quais atividades e como será o procedimento da autorização ambiental(2).

Uma outra possibilidade para que tenha validade os dispositivos da Resolução 237 do CONAMA, que tratam do licenciamento ambiental no âmbito do municipal, seria modificar a lei 6938/81, sobretudo em seus artigo 10, acrescentando poderes ao município para realizar o licenciamento ambiental previsto nesta última lei. Neste caso sim, teria o município poderes para licenciar as atividades previstas no anexo I da Resolução 237 do CONAMA, conforme o disposto no artigo 6º desta norma.

Como ao município cabe suplementar a legislação federal e estadual, poderá instituir normas ambientais que regulem o exercício das atividades previstas no anexo I da Resolução 237 do CONAMA, desde que: haja o interesse local, não seja o licenciamento destas atividades(3) e também não abranda as disposições legais federais e estaduais. Portanto pode exigir outras condutas, licenças ou autorizações além das que são exigidas pelo licenciamento ambiental previsto na Lei 6938/81, pois esta, em seu artigo 10, dispõe que haverá o licenciamento da atividade “sem prejuízo de outras licenças exigíveis”. Pode até mesmo exigir a realização do Estudo de Impacto Ambiental para as atividades causadores de significativa degradação ambiental, desde que siga as regras acima. Neste sentido, bastante pertinente a lição de ANTUNES (2001:104) ao afirmar que:

“(…) o licenciamento é basicamente uma atividade a ser exercida pelo Poder Público estadual. As autoridades federais somente podem atuar em casos definidos, ou supletivamente à autoridade estadual. Os municípios poderão complementar, no que couber, as exigências dos órgãos estaduais para atender necessidades locais.”

Porém, com base na legislação vigente, uma pergunta merece ser respondida: quais os tipos de autorizações ambientais poderão ocorrer no âmbito municipal? Para responder, nos basearemos na lição do mestre MACHADO (págs. 303 e segs).

Primeiramente, ela pode ocorrer como planejamento municipal e/ou zoneamento ambiental, os quais visam ordenar o território do município de acordo com o interesse local. Poderá fazer isto no Plano Diretor e/ou através de lei municipal.

Em segundo lugar, poderá o município instituir o EPIA (Estudo prévio de impacto ambiental) para atividades onde ocorra probabilidade ou perigo de significativa degradação do meio ambiente, pois, em caso contrário, se causar significativa degradação, a competência para licenciar (autorizar) a atividade é do órgão estadual ou, supletivamente, federal(4). É de bom alvitre lembrar que deve haver o interesse local, para que haja a instituição do EPIA. Deve também, neste caso, estabelecer todo o procedimento do estudo, com prazos, conteúdos, etc…. É o que MACHADO (1998:304) denominou “Declaração de Impacto Ambiental”, à semelhança do Estudo de Impacto Ambiental. Ressalta-se que este último pode ser exigido pelo município, tendo em vista o interesse local, não podendo apenas licenciar a atividade novamente, nos termos da Lei 6938/81.

Poderá também o município criar sanções ambientais municipais, desde que não sejam crimes e contravenções, já que estes são de competência exclusiva da União (art. 22, I, CF/88). Pode assim criar multas ou interdições de estabelecimentos, para aquele que desrespeitar as normas ambientais municipais.

Vimos no presente artigo, que o legislador pátrio foi confuso ao regulamentar o licenciamento ambiental no âmbito do município. Este, desde que amparado por lei, pode estabelecer a forma da autorização ambiental municipal e quais atividades que porventura, tenham que se submeter a esta. Para isso, deve respeitar não só a legislação federal como a do Estado ao qual pertence.

Em tempos como os de hoje, onde as atividades humanas cada vez mais são causadoras de poluição ambiental, utilizando mais e mais rápido os recursos ambientais existentes, instituir a autorização ambiental no âmbito municipal, é tornar realidade as disposições constitucionais que têm por escopo preservar e conservar o meio ambiente para as futuras gerações.

NOTAS

1.Vide Súmula 419 do Supremo Tribunal Federal.

2.Ressalta-se que neste caso, deve haver o interesse local, pois a competência para legislar sobre meio ambiente e controle da poluição é concorrente, não outorgando a Constituição Federal poderes ao município (artigo 24, VI).

3.Tendo em vista a legislação vigente.

4.Cf. artigo 225, §1º, IV da CF/88, artigo 10 da Lei 6938/81 e artigo 3º e segs. da Resolução 237 do CONAMA.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 5ª Edição. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2001.

BOBBIO, Norberto. Teoria General del Derecho. Madrid: Debate,1993.

FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994. p. 47.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 7ª Edição. São Paulo: Atlas, 2000.

MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 7ª Edição. São Paulo: Malheiros, 1998.

OLIVEIRA, Antônio Inagê de Assis. O licenciamento ambiental. São Paulo: Iglu, 1999.

* Leonardo Pereira Rezende
Advogado, mestre em Extensão Rural pela Universidade Federal de Viçosa, conselheiro do CODEMA de Viçosa (MG), professor de Direito Ambiental da UNIPAC/MG

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