A cassação de José Dirceu

João José Leal

BRUSQUE – A decisão da Câmara Federal já era esperada. Mais uma vez, ficou demonstrado que, quando a opinião pública pressiona, o Congresso acaba cortando na própria carne. Nosso Parlamento pode ter muitos defeitos, mas não deixa de ser sensível à vontade popular. E existe uma expectativa popular no sentido de que os principais responsáveis pela prática do repugnante processo de corrupção, que tomou conta de Brasília, sejam realmente cassados.

Portanto, é preciso continuar a pressão sobre os “representantes do povo brasileiro”, porque está comprovado documentalmente que outros 13 deputados receberam dinheiro repassado pelo esquema de corrupção operacionalizado por Marcos Valério e pelos principais dirigentes do PT.

É triste, mas ao mesmo tempo causa indignação, ver um político com a biografia de José Dirceu ser defenestrado da política nacional, de forma tão humilhante. Triste ironia de ter sido duas vezes cassado. Uma pelo governo militar, nos tempos em que foi líder estudantil e militante esquerdista, quando lutou pelo ideal de liberdade e de justiça social para um povo tão sofrido e humilhado. Até ser preso e banido do país.

A segunda, por seus próprios pares de mandato popular, após um longo e tumultuado processo disciplinar, durante o qual teve assegurado o direito à ampla defesa. Tão ampla e excessiva que, nos últimos meses, o STF dedicou boa parte do precioso tempo para garantir-lhe um especial devido processo legal e, em conseqüência, para anular diversos atos praticados pela Comissão de Ética da Câmara dos Deputados. No próprio dia da sessão de cassação, o STF passou a tarde a discutir filigranas teóricodoutrinárias relacionadas ao processo político de cassação conduzido pela referida comissão.

José Dirceu foi cassado, mas conseguiu a proeza de fazer com que o STF tomasse decisões que interferiram na esfera de competência privativa do Poder Legislativo. Este acabou sendo desautorizado, desmoralizado e humilhado por decisões que deram ao “devido processo legal” uma hermenêutica recheada de formalismos abstratos e vazios, uma autêntica hermenêutica de vitrina, apoiada em doutrinas e jurisprudência alienígenas, principalmente – quanto a esta última – a da Suprema Corte norteamericana.

Como se esta julgasse para o Brasil ou como se a referida Corte fosse paradigma de justiça substancial efetivamente justa. Basta lembrar que, durante dez anos, aquela Corte discutiu e afinal decidiu pela legitimidade políticojurídica da pena morte, em face da Constituição norteamericana. Atualmente, prisioneiros de guerra afegãos e iraquianos estão sendo tratados com crueldade extrema, com ofensa às leis internacionais e às regras do mais elementar devido processo. E aquela Corte tem sido conivente com essa hedionda prática do Estado norteamericano.

Não creio que os graves atos de improbidade políticojurídica pelos quais José Dirceu foi julgado e cassado por seus pares tenham sido praticados sem o conhecimento e o aval dos principais dirigentes de se partido político e do governo a que serviu, aí incluído o próprio presidente da República. Afinal, tudo indica que os milhões pagos aos parlamentares envolvidos no esquema do Mensalão visavam assegurar o necessário apoio político ao governo. Este fato é suficiente para demonstrar que o agora deputado cassado não tomou decisões sozinho, nem agiu por conta própria.

No entanto, José Dirceu, diferentemente de seu ex-aliado Roberto Jefferson, preferiu caminhar sozinho para o patíbulo da guilhotina política. Mesmo abandonado por pelo presidente Lula, a quem, politicamente, serviu por longos anos. Há alguns dias, em entrevista à mídia, o presidente já havia afirmado que a cassação de seu companheiro e ex-ministro da Casa Civil era considerada certa e se conformara com o fato que acreditava consumado

Mais do que isso: o presidente Lula já há algum tempo vem sinalizando que a cassação de José Dirceu e dos demais deputados do PT envolvidos no Mensalão seria o preço a pagar pelas denúncias de corrupção. É a lógica sinistra da máquina política. Com os processos de cassação encerrados, o governo acredita que pode superar a crise e virar a página deste grave e cinzento momento em que se encontra mergulhado. Afinal é preciso pagar um preço por tamanho descalabro éticopolítico. E, se o rei é intocável, os valetes que ponham o pescoço para o golpe da lâmina.

Diferentemente da eleição de Aldo Rebelo para a presidência da Casa, quando o governo liberou milhões para conseguir votos de deputados da base aliada, na sessão da Câmara da última quarta feira, ocorreu exatamente o contrário. Verificou-se um vazio do governo no recinto do plenário e dos corredores da Câmara. Nenhum ministro do governo esteve presente para dar apoio e, muito menos, para pedir por José Dirceu.

O grande timoneiro do Partido dos Trabalhadores estava só. Em seu favor, apenas os pedidos envoltos no manto da suspeição ética de Severino Cavalcanti, o voto silencioso de seus companheiros de partido e da fragilizada base aliada. Ao final da votação, 293 deputados haviam decidido pela cassação do mandato do deputado José Dirceu.

A ditadura militar, que dispunha de toda a força necessária, não conseguiu sufocar uma liderança política forjada em meio a muita luta e sacrifícios. Agora, o Estado Democrático, que exige o compromisso com a ética e a moralidade na condução da administração pública, eliminou José Dirceu da vida política.

E fica a lição. O passado, por mais brilhante e admirável, não constitui um passaporte de imunidade para as falcatruas do futuro.

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