Eduardo Fortunato Bim
SÃO PAULO – Recentes fatos da política nacional trouxeram à tona a discussão sobre a amplitude da cassação de mandato por quebra de decoro parlamentar. Discute-se se há a possibilidade de cassação do mandato por quebra do decoro quando os atos não foram praticados pelo parlamentar no exercício do mandato.
Ensejariam a perda do mandato por quebra de decoro parlamentar os atos praticados pelo membro da casa legislativa anteriores a sua diplomação ou quando praticados enquanto afastado da função parlamentar para assumir cargos executivos (ministérios, secretarias etc.) ou para tratar de doença ou de sua vida particular.
A questão é relevante, porque o parlamentar vencido na esfera política geralmente tenta a perpetuação de seu mandato no Judiciário, invocando razões jurídicas para obstar o julgamento político.
Nos três casos (funções executivas, licença ou fatos anteriores à diplomação), a cassação por falta de decoro parlamentar é possível. O decoro parlamentar serve para extirpar a maçã podre do parlamento, que compromete a imagem e abala a segurança e estabilidade das instituições, uma vez que a simples existência do Estado não é suficiente para acabar com a guerra de todos contra todos; somente a crença e o respeito nas instituições é capaz de fazê-lo. A imposição de decoro parlamentar é uma defesa do parlamento, razão pela qual a condição de parlamentar é a que importa, não a temporariedade ou qualidade do ato tido como indecoroso.
Embora seja comum a propagação de que o decoro parlamentar seja de competência política do Legislativo, nossa Constituição não é tão vaga assim. Pela leitura do § 1o do artigo 55, percebe-se que existem três hipóteses constitucionais de quebra de decoro parlamentar: os casos previstos no regimento (a mais ampla de todas); o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional e a percepção de vantagens indevidas. Quando a acusação do comportamento incompatível com o decoro parlamentar for formalizada, é preciso que, sob ofensa à Constituição, descreva conduta prescrita em uma dessas hipóteses constitucionais. Qualquer conduta que nelas não se encaixe não poderá ensejar o processo de cassação, autorizando a sua contestação (preventiva ou repressiva) pelo Judiciário.
A imunidade judicial sobre o entendimento do juízo político sobre a cassação do
parlamentar funda-se em precedentes do Supremo Tribunal Federal. Entende o Supremo que a cassação do mandato é uma questão política (political question doctrine), impossibilitando ao Judiciário conhecer sobre o mérito da cassação por derivar da interpretação de normas regimentais, ou seja, se houve ou não quebra de decoro parlamentar.
A possibilidade de contestação no Judiciário da perda (ou a sua iminência) do mandato por ato incompatível com o decoro parlamentar deve ser vista com seriedade. Embora o STF seja um tribunal relativamente estável, a sua nova composição propende a não deixar os atos legislativos interna corporis isentos de apreciação judicial quando a questão envolver os direitos subjetivos, persistindo o interesse sobre a possibilidade de cassação por quebra de decoro parlamentar por atos _previstos em uma das três hipóteses constitucionais_ que sejam anteriores à diplomação do parlamentar ou que sejam praticados quando em um dos afastamentos constitucionais, ainda que haja a possibilidade do STF não conhecer a questão.
Se o parlamentar não perde o seu status de parlamentar quando exerce funções executivas ou se licencia, não há motivo para torná-lo imune ao processo de cassação por falta de decoro. Quando os atos são anteriores à legislatura, também não existe motivo para a pretensa imunidade. A imagem e a confiança do povo nas instituições são seriamente abaladas, sendo desnecessária a contemporaneidade do ato tido como indecoroso com o mandato, como entendeu o STF.
Não há que se falar em interferência entre os Poderes quando o ato indecoroso é praticado por parlamentar que tenha se afastado para ser ministro ou secretário de Estado. A perda do mandato não interfere na política do Executivo, podendo o ex-parlamentar continuar no cargo executivo. Pelos mesmos motivos, não há que se falar em invasão ou ingerência indevida na privacidade do parlamentar quando o ato indecoroso é praticado em sua vida privada, como um cidadão comum.
Se o Judiciário superar a tese do não conhecimento jurisdicional do ato tido como indecoroso, uma vez que no procedimento de cassação de mandato está em jogo direitos subjetivos do parlamentar, não deve vingar o entendimento de que atos praticados durante o afastamento do cargo para o exercício de funções políticas, para licença saúde ou para tratar de interesse particular, são insuscetíveis de serem qualificados como incompatíveis com o decoro parlamentar.