Antônio Carlos de Lima*
A lei 10.406/02, que instituiu o novo Código Civil Brasileiro e começa a vigorar a partir de 11 de janeiro de 2003, em seu artigo 13, diz: “Salvo por exigência médica, é defeso (proibido) o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes”. Será que o legislador ordinário quis proibir a cirurgia transgenital? Afinal, é possível ou não realizar uma cirurgia de reversão de sexo legalmente em nosso País? Sem a pretensão de esgotar o assunto, teceremos aqui algumas considerações.
A psiquiatria trata o transexualismo como uma doença (CID-10) denominada de transtornos de personalidade da identidade sexual, definindo-o como “um desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto. Este desejo se acompanha, em geral, de um sentimento de mal-estar ou de inadaptação por referência a seu próprio sexo anatômico e do desejo de submeter-se a uma intervenção cirúrgica ou a um tratamento hormonal a fim de tornar seu corpo tão conforme quanto possível ao sexo desejado”.
Hodiernamente, a ciência prefere tratar o transexualismo como uma questão neurológica e não mais, psicológica. Nominando-o de neurodiscordância de gênero, pois o transexualismo sempre envolve um transtorno na identidade de gênero. Não basta que a pessoa queira pertencer ao outro sexo para usufruir de vantagens culturais ou que goste de atividades típicas do outro sexo. Também não é transexual um homem afeminado que, ainda assim, sente-se homem, ou uma mulher masculina que, mesmo assim, não tem dúvida de que é mulher, mesmo que diferente da norma. Cuida a psicologia de fazer um diagnóstico correto do quadro clínico de transexualismo, bem como atuar com terapia pré e pós-cirurgia.
Historicamente, temos como primeiro paciente a ser submetido a uma cirurgia de mudança de sexo o soldado norte-americano George Jorgensen, transexual homem para mulher, que, em 1952 adotou o nome de Christine Jorgensen, tendo sido operado em Copenhague, pelo cirurgião plástico Paul Fogh-Andersen.
No Brasil, a primeira cirurgia de redesignação sexual ocorreu em 1971, quando o transexual homem para mulher, Waldir Nogueira, foi operado. O cirurgião Roberto Farina foi processado criminalmente e, também, pelo Conselho Federal de Medicina. Em primeira instância, foi condenado. Ele foi preso e perdeu o direito de exercício da medicina.
O caso mais famoso de transexualismo ocorreu na década de 1980, quando Luís Roberto Gambine Moreira, mais conhecido por Roberta Close, modelo de sucesso, submeteu-se à cirurgia transgenital no exterior, casou-se e luta, até hoje, na Justiça brasileira, sem grandes sucessos, pela mudança do nome e sexo em seus documentos.
Em 10/9/97, o Conselho Federal de Medicina emanou a resolução nº 1.482/97, liberando eticamente os médicos para a realização da cirurgia de transgenitalização no Brasil, considerando a mesma legal, unicamente quando realizada a título de pesquisa em hospital universitário ou público. Tal cirurgia, em nosso país, torna-se possível com esta resolução do CFM, salvo restrição necessária de ser o indivíduo maior de 21 anos de idade (18 a partir de 11.01.2003), ter-se submetido à terapia por, no mínimo, dois anos, ser diagnosticado e tratado por uma equipe multidisciplinar, e ausência de características físicas inapropriadas para a cirurgia.
Quanto ao transexualismo feminino, vislumbra-se que esta técnica cirúrgica é mais complexa, sendo recomendado, no atual alcance da ciência, somente terapia hormonal forte para desenvolver o clitóris original.
Na esfera jurídica, entendemos que o artigo 5º da Constituição Federal não veda a orientação sexual dos brasileiros, sendo esta livre. Em seu artigo 199, mencionada que: “…A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento,…”. Já foram criadas as leis ordinárias: 9.434/97 e 10.205/01, disciplinando estes assuntos. Entendo que mesmo com o advento do art. 13 do novo Código Civil, o legislador brasileiro continua a permitir tacitamente a prática da cirurgia transgenital no Brasil, bem como ser perfeitamente possível a busca da tutela jurisdicional para a retificação do nome e do sexo do interessado.
Evidente que extirpar o pênis e os testículos de alguém e, artificialmente, criar uma vagina forjada na região apropriada, não passa apenas pelo simples ato cirúrgico. Este paciente deve estar preparado da irreversibilidade do ato. Por isso, o acompanhamento multidisciplinar, previsto na resolução do Conselho Federal de Medicina, é muito importante.
Não podemos deixar de observar que estas operações são gratuitas na Grã-Bretanha e realizadas normalmente na França. O Brasil é um país preconceituoso e extremamente falso moralista, mas não podemos negar o direito à saúde dos brasileiros, como estatui a definição da Organização Mundial de Saúde: “a saúde é um completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença ou enfermidade”.
Assim, deve-se observar que indivíduos com transtorno de identidade de gênero merecem ser tratados condignamente. A frustração, a dor e o sofrimento, que podem levar à depressão e outros desdobramentos, são constantes neste quadro clínico. Cabe ao profissional de saúde atuar de modo a possibilitar que este indivíduo venha a se aceitar como um todo coerente, resgatando a saúde, o bem-estar e a felicidade. Afinal, somos todos seres humanos!
Revista Consultor Jurídico
Antônio Carlos de Lima é professor de Direito da Unip e Fasam