A competência do CNJ não é e nem pode ser concorrente

Por Sérgio Niemeyer

O propósito deste artigo é responder e apresentar fundamentos críticos ao artigo escrito pelo Dr. Marcus Vinicius Furtado Coêlho, Secretário-Geral do Conselho Federal da OAB, intitulado «Função de CNJ é concorrente às corregedorias», publicado na revista eletrônica Consultor Jurídico de 14 de janeiro de 2012), e demonstrar que a competência do CNJ é tanto recursal quanto subsidiária à das Corregedorias, como já manifestaram alguns ministros do Supremo Tribunal Federal.

Toda a celeuma está em saber se a competência administrativo-correicional do CNJ para procedimentos disciplinares e/ou investigativos tendo por alvo juízes subordinados às Corregedorias do órgão jurisdicional em que exercem suas funções é concorrente ou não à destas.

De acordo com o Dr. Marcus Vinicius Furtado Coêlho, a competência do CNJ é concorrente à das diversas Corregedorias dos tribunais estaduais, tribunais regionais federais ou do trabalho.

Tal conclusão, contudo e concessa venia, não resiste a um exame crítico embalado pela lógica racional que deve governar todo lavor interpretativo de qualquer texto, inclusive o legal.

A polêmica que se formou, muito em razão da ação da mídia que concita um entendimento falso e divorciado dos cânones que empolgam a ciência do direito,([i]) orbita em torno do inciso III do § 4º do artigo 103-B da Constituição Federal.

De acordo com o § 4º do artigo 103-B, «[c]ompete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura».

Entre as competências expressamente estabelecidas pelo citado § 4º figura a do inciso III, in verbis: «receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializados, sem prejuízo da competência disciplinar e correicional dos tribunais, podendo avocar processos disciplinares em curso e determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa».

A controvérsia formou-se a partir da interpretação do texto constitucional, notadamente a respeito do trecho segundo o qual o CNJ é competente para «receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário […] sem prejuízo da competência disciplinar e correicional dos tribunais […]». Esse, aliás, o trecho expressamente transcrito pelo Dr. Marcus Vinicius Furtado Coêlho em seu artigo.

Aquele autor tenta demonstrar que a locução sem prejuízo de é suficiente para permitir a conclusão de que a competência do CNJ é concorrente à das Corregedorias dos tribunais, como se fossem competências paralelas.

Em sua argumentação, já a frontispício afirma que a locução sem prejuízo de é repetida «por dezenas de oportunidades» no texto constitucional, instilando, assim, uma mensagem subliminar para infundir a ideia de que essa locução tem a mesma intensão([ii]) e extensão toda vez que é empregada pela Constituição Federal.

Ao fazer isso, o Dr. Marcus Vinicius Furtado Coêlho incorre em um desfile de falácias (de relevância e linguísticas), a saber: a) generalização apressada, ao mencionar que o sintagma preposicional sem prejuízo de ocorre uma pluralidade de vezes deixando implícita a sugestão de que todas as ocorrências possuem o mesmo valor semântico; b) ignoratio elenchi, porque não leva em consideração elementos que devem entrar no lavor interpretativo, v.g., a harmonização do sistema como um todo coeso e coerente, sem absurdidades. Na sequência, demonstro que se se tomar em consideração tais elementos, a conclusão de que a competência do CNJ é concorrente à das Corregedorias conduz a um absurdo, o que implica ter de abandonar tal conclusão; c) non sequitur, uma vez que não há uma relação firme de causa e efeito entre as premissas postas e a conclusão extraída; d) equívoco, com dizer que a locução sem prejuízo de é empregada dezenas de vezes no texto constitucional, não sugere apenas que essa mesma locução aparece mais de 20 vezes na Constituição Federal,([iii]) pois cada dezena compõe-se de 10 unidades, sendo, portanto, lícito concluir que a menção indeterminada a dezenas só pode referir a um número inteiro de dezenas maior que a unidade, ou seja, a pelo menos duas ou mais dezenas, mas também que toda ocorrência dessa expressão possui o mesmo valor semântico. Mas isso não é verdade. O sintagma preposicional sem prejuízo de não possui o mesmo valor semântico em todas as ocorrências que se verificam no texto constitucional. Equipará-las ou assemelhá-las implica incorrer na falácia linguística do equívoco.

Em lógica, para demonstrar a invalidade de um argumento, basta apresentar um contraexemplo. É o que faço a seguir.

O artigo 150 dispõe que «[s]em prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios», a expressão sem prejuízo de significa que a vedação ali estatuída não inibe outras garantias deferidas pela Constituição ao contribuinte. Em outras palavras, confere às proibições elencadas nos incisos do artigo 150 o caráter de garantias outorgadas em favor do contribuinte como limitações do poder estatal de tributar, garantias essas que se colocam lado a lado de ouras especificadas pela própria Constituição. Numa palavra, tais garantias convivem e subsistem válidas concomitantemente, de modo que uma não afasta a outra.

Esse significado da locução sem prejuízo de difere daquele veiculado pela mesma expressão no inciso III do artigo 30 do texto constitucional, que preceitua competir aos Municípios «instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei». Neste, o sintagma preposicional não estabelece uma garantia, mas um dever jurídico do ente estatal de prestar contas na forma da lei a respeito das verbas arrecadadas e das despesas efetuadas. A distinção é nítida e inconfundível o valor semântico num e noutro caso.

Já quando ocorre no inciso III do § 4º do artigo 103-B da Carta da República, a locução sem prejuízo de possui um significado que não se confunde com aqueles dois outros atrás referidos, constituindo um tertium genus semântico das diversas ocorrências que se verificam no texto constitucional. Isso porque não significa nem uma garantia nem um dever jurídico, mas refere exclusivamente à distribuição do poder correicional entre os diversos órgãos que menciona, i.e., o CNJ e as Corregedorias dos tribunais.

A ideia de competência está atrelada à de distribuição de poder. Dizer que um órgão tem competência concorrente a outro significa dizer que podem atuar em igualdade de condições sobre determinada matéria. Mas tal igualdade não ocorre tout court, senão consoante determinados critérios. É a própria Constituição que indica como se deve compreender a competência concorrente quando a admite no artigo 24 conferindo poderes legiferantes comuns à União, Estados e Distrito Federal (artigo 24, §§ 1º a 4º).

Não se trata de uma concorrência puramente paralela, mas qualificada, limitada. Isso porque, como a própria palavra já deixa entrever, o concurso de competências não significa apenas concorrência paralela, mas encerra também a ideia de disputa entre os poderes assim distribuídos. É ínsito ao significado da palavra concorrência a ideia de competição, disputa, rivalidade.([iv]) Se se admitisse a concorrência puramente paralela, equipolente, então seria forçoso admitir que o ato de um ente ou órgão poderia conviver com o ato de outro que com ele fosse concorrentemente competente, sendo ambos os atos válidos e eficazes, ainda que conflitantes, o que constituiria manifesto absurdo, arrebatando a segurança jurídica e produzindo o caos. Por isso que só tem sentido falar de competência concorrente se esta for balizada verticalmente, não cumulativa, ou quando se estabelecer um critério de harmonização dos atos emanados dos diversos entes ou órgãos investidos em competência concorrente para eliminar a disputa que entre eles possa ocorrer.

No âmbito legislativo, os parágrafos do artigo 24 exemplificam a criação do critério adotado para tal fim. Em sede jurisdicional, o problema é resolvido pelo instituto da prevenção. Sempre que dois ou mais juízos forem competentes para conhecer de determinada matéria, os critérios de prevenção([v]) informam que um e apenas um deles poderá exercer sua competência, afastando a dos demais.

Deflui que a concorrência competencial não significa, seja no âmbito legiferante, seja no campo jurisdicional ou na província administrativa, uma confluência de dois entes ou órgãos que (con)correm para o mesmo ponto de convergência com igualdade de forças ou de poder. Se não fosse assim, seria inevitável o surgimento de conflitos entre os atos de um e de outro ente ou órgão em razão da força eficacial equipolente derivada de suas competências concorrentes cumulativas.

Quando o texto constitucional estabelece competir ao CNJ «receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário […] sem prejuízo da competência disciplinar e correicional dos tribunais […]», não o faz para instituir uma competência concorrente cumulativa, porque isso conduziria a um absurdo. Basta imaginar um mesmo procedimento que iniciasse, originariamente, seja por identidade de provocação ou não, tanto na Corregedoria de um tribunal quanto no CNJ, e em cada um desses órgãos culminasse com resultados inconciliáveis. Qual deveria prevalecer?

Se a competência entre ambos for concorrente no sentido sugerido pelo Dr. Marcus Vinicius Furtado Coêlho, ou seja, paralela, cumulativa, equipolente, então, aquela indagação não admite resposta e instaurar-se-ia um paradoxo em razão do conflito entre as duas decisões, já que por suposição são antípodas, e a falta de um critério de preferência as tornaria ineficazes, esvaziando os poderes tanto do CNJ quanto da Corregedoria.

Se não é óbvio, pelo menos é aconselhável que duas decisões opostas não podem subsistir num mesmo sistema, sob pena de provocar uma contradição destruidora dos fins perseguidos pelo próprio sistema. Por isso que tal resultado constitui evidente absurdo e, portanto, deve ser abandonado.

Poder-se-ia aqui argumentar que em tais hipóteses prevaleceria a decisão mais benéfica ao sindicado, de modo que se esta fosse proferida pela Corregedoria, revogada ficaria aquela proferida pelo CNJ e vice-versa. Mas já aí estar-se-ia importando e transformando conceitos principiológicos externos para dar-lhes uma amplitude ilícita, que não ocorre quando se trata de decisões proferidas por dois órgãos ou entes distintos, tudo com o fito de acomodar a interpretação à conclusão previamente desejada. Numa palavra, estar-se-ia lançando mão da falácia do leito de Procusto para emprestar eficácia a uma conclusão preestabelecida e de todo falsa. Ademais, com maioria de razão, os poderes competenciais do CNJ padeceriam esvaziados se suas decisões houvessem de ceder diante daquelas prolatadas pelas Corregedorias dos diversos tribunais sempre que as destas fossem mais favoráveis aos sindicados do que as daquele. Eis aí outro absurdo a aconselhar a derrelição da tese das competências concorrentes no sentido preconizado pelo Dr. Marcus Vinicius Furtado Coêlho, entre outros.

Já se a resposta à indagação formulada for no sentido de que prevaleceria o resultado alcançado pelo CNJ, independentemente de qual seja mais favorável ao sindicado, então, força convir haver uma ordem de hierarquia que o caracteriza como ente superior em relação às Corregedorias. Se é assim, sua competência jamais poderia ser considerada concorrente porque sempre prevaleceria em detrimento à das Corregedorias. Por outro lado, é imediato inferir que se a competência do CNJ prevalecer sempre em detrimento da competência das Corregedorias dos tribunais, então estas ficam prejudicadas. Isso significa que sofrem prejuízo e perdem sua razão de ser. Mas se a competência das Corregedorias sofrer prejuízo, ofendido estará o preceito constitucional que assegura que a atuação do CNJ não será causa de prejuízo para a competência das Corregedorias.

Daí haver apenas uma maneira de conciliar essas competências, que é por meio da interpretação conforme a Constituição do sintagma preposicional sem prejuízo de, contido no inciso III do § 4º do artigo 103-B. Tal interpretação opera no sentido de admitir que introduz a competência do CNJ como recursal, harmonizando-se com as garantias constitucionais que informam o duplo grau de jurisdição inclusive nos processos administrativos, e como competência subsidiária avocatória, que o autoriza atrair para si qualquer procedimento que tenha sido iniciado perante as Corregedorias, desde que atendidas determinadas regras previamente estabelecidas para tal avocação, regras essas que o próprio CNJ pode estatuir a fim de regulamentar tais procedimentos.

Em abono desse entendimento vale lembrar que todo juízo representa uma relação entre conceitos, e sendo assim, só se pode avocar aquilo que já se iniciou em outro lugar. Avocar significa chamar, invocar, fazer vir, atrair a si, de modo que só tem sentido avocar o que já existe ou haja iniciado em outro lugar, do contrário, não haverá nada a avocar.

É, pois, nesse sentido que a Constituição atribui ao CNJ competência para «receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializados», reclamações que devem ter ensejado sindicâncias perante a Corregedoria local e que ulteriormente sobem para apreciação pelo CNJ, seja em grau de recurso, seja por avocação, mas nunca originariamente. A não ser assim, o CNJ não exerceria o papel de órgão correicional superior que lhe foi reservado pela Constituição ao instituí-lo logo a seguir às normas que instituem a Suprema Corte.

Por fim, diversamente do que vem sendo falsamente propalado e defendido por alguns, ou muitos, e por uma mídia neófita, o entendimento aqui perfilhado não esvazia o CNJ dos poderes que o legislador constituinte reformador pretendeu atribuir-lhe. Antes, percebe que tais poderes são muito mais abrangentes e gerais do que se tem pensado, porquanto no meu sentir aí se inclui o poder regulamentar para estabelecer regras gerais sobre os procedimentos a serem conduzidos pelas Corregedorias e cuja inobservância pode acarretar a avocação do procedimento, afastando, conseguintemente, a competência daquelas por violação de uma regra geral, mas não rivalizando com elas, o que, diga-se de passagem, seria muito ruim para a imagem de qualquer Corregedoria, bem como regulamentar os pressupostos e requisitos para acesso ao CNJ em grau de recurso. Com isso, preservam-se os princípios constitucionais que asseguram o pacto federativo e a competência do CNJ, agora sim, sem prejuízo da competência das Corregedorias dos tribunais.

Quod erat demonstrandum.

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([i]) A palavra direito é escrita em minúsculas por observação da Base XIX do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.

([ii]) Intensão, com esse ─ s ─, designa sentido ou significado. O termo é empregado em filosofia da linguagem por oposição a extensão.

([iii]) A Constituição Federal emprega a locução sem prejuízo de ─ consideradas suas variações que articulam a preposição de com os artigos definidos o e a ─ exatas 24 vezes, no texto principal, e 4 vezes no texto do ADCT, totalizando 28 ocorrências, salvo equívoco escusável de contagem.

([iv]) Entre as acepções de concorrência, destaca-se aquela que encerra a noção de rivalidade, disputa, competição: «ato ou efeito de disputar a primazia com outra(s) pessoa(s) ou coisa(s); competição, disputa» (Houaiss, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. P. 788, s.v. concorrência); «pretensão de mais de uma pessoa à mesma coisa: Entrar em concorrência com alguém. || Competência, rivalidade» (Dicionário eletrônico Aulete digital, s.v. concorrência, verbete original).

([v]) Para os fins deste ensaio não convém elencar ou discretear sobre tais critérios, apenas esclarecer que existem e em razão deles um juízo torna-se competente em detrimento de qualquer outro que possa haver com igual competência.

Sérgio Niemeyer é advogado, mestre e doutorando em Direito pela USP

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