Autor: Diogo Cabeda (*)
Na esteira dos grandes episódios de corrupção recentes e da consequente intervenção do Estado nas suas mais variadas esferas de competência, um interessante debate jurídico tem sido construído: a aplicação das normas penais simultaneamente às da legislação tributária.
Passados, em um piscar de olhos, quase quatro anos da deflagração da operação “lava jato”, a qual evidenciou uma incontável sucessão de atos criminosos, aos poucos estão amadurecendo novos espectros na relação penal-tributária. A partir da atuação da Receita Federal em paralelo ou em conjunto com o Ministério Público e a Polícia Federal, enfrenta-se hoje a necessidade de harmonizar as consequências penais quando da ocorrência simultânea de fatos geradores de tributos, em especial do Imposto de Renda.
A matéria não é recente (o artigo 26 da Lei 4.506/64 já ordenava que os rendimentos derivados de atividades ilícitas ou percebidos com infração à lei fossem sujeitos à tributação), mas obteve maior atenção por parte de especialistas nas duas áreas devido a uma série de situações pouco exploradas e ainda bastante incertas. Neste contexto, novas teses estão sendo avaliadas, e o próprio Judiciário adota cautela em tomar uma posição definitiva sobre o assunto.
Pois bem, sob os comandos do Código Penal Brasileiro, em especial o artigo 91, é notório que a condenação na esfera criminal tem como consequência não só a restrição da liberdade, mas também o confisco do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pela prática do ato criminoso. Na mesma linha, o implemento da colaboração premiada, prevista na Lei 12.850/13, poderá ter como resultado a recuperação do produto das infrações penais praticadas pelo agente ou pela organização criminosa. Nessas situações, as quantias desviadas ou recebidas a título de propina devem ser devolvidas ou ressarcidas, invariavelmente, a quem de direito.
Contudo, da mesma forma que o Direito Penal chama para si o encargo da atuação do Estado perante atos ilícitos, o nosso sistema tributário vincula as autoridades fazendárias a alcançar os acréscimos patrimoniais como se qualquer outro rendimento fosse, assim como a aplicar a lei diante das mais variadas infrações fiscais. Desse modo, sobre um mesmo fato jurídico atuam as duas forças mais contundentes do poder estatal, o que, sem dúvida, representa um risco incalculável para o réu-contribuinte, principalmente ao testar os limites de sua capacidade contributiva.
Na atuação prática dos agentes do Estado, um dos primeiros impasses se dá na identificação do real beneficiário dos pagamentos. Os repasses, normalmente, dão-se configurados de forma fraudulenta, mascarados mediante contratos de prestação de serviço que podem ser superfaturados ou, muitas vezes, nem existirem. Nesses casos, redireciona-se o lançamento tributário para as pessoas físicas beneficiadas e cobra-se o Imposto de Renda destas. Para tal, faz-se necessário aprofundar as investigações e analisar a casuística conforme os elementos de prova levantados, o que demanda muita investigação, principalmente na área (nas áreas?) de auditoria contábil e fiscal.
Porém, esses eventos também se desdobram em novos ilícitos no âmbito penal e tributário: enquadram-se como crimes de lavagem de dinheiro ao mesmo tempo que geram penalidades fiscais conhecidas como pagamento sem causa ou a beneficiário não identificado. Incidem sobre um mesmo feito; assim, uma norma penal, prevista na Lei do Branqueamento de Capitais; e outra tributária, nos ditames do Regulamento do Imposto de Renda.
Nessa direção, de acordo com o que prevê a Lei 9.613/98, os pagamentos identificados, feitos por meio de contratos simulados e que ocultam ou dissimulam a natureza ou a origem de valores advindos direta ou indiretamente de infração penal, são tipificados como crimes de branqueamento de capitais. Os modos de mascarar a origem ilegal são os mais diversos possíveis, passando por engenhosas estruturas, tais como empréstimos fictícios, pela manipulação de preços e por operações simuladas de compra e venda de serviços ou produtos.
Já no contexto do IRPJ, em paralelo à lei penal, surgem dos contratos simulados as mencionadas figuras do pagamento sem causa e/ou a beneficiário não identificado, fortes no artigo 61 da Lei 8.981/95. Dessa situação, dependendo da forma de tributação, podem surgir novos desdobramentos. De um lado, a infração administrativa prevista no artigo 299 do Regulamento do Imposto de Renda (glosa da despesa não comprovada e indevidamente aproveitada) e, de outro, mais uma repercussão penal, nos moldes da Lei 8.137/90, que define os crimes contra a ordem tributária.
A cobrança do Imposto de Renda Retido na Fonte para esses casos, que possui uma alíquota extraordinária de 35%, e ainda incide sobre uma base reajustada, tem como teleologia normativa penalizar o desvio de recursos da pessoa jurídica, independentemente da motivação. Os contornos são de substituição tributária, porém o objetivo não é exatamente este: temos aqui uma norma tipicamente indutora de conduta, com uma alíquota atípica, e não uma técnica de antecipação ou facilitação de arrecadação. Quanto à glosa da despesa inexistente, nada mais natural que assim seja executada pela autoridade fiscal diante da inexistência de provas documentais ou da efetiva comprovação dos motivos do dispêndio.
Já no âmbito da legislação penal-tributária, o desígnio normativo é atingir, através dos comandos da Lei 8.137/90, aquelas condutas que manifestam informações dissimuladas à Fazenda e cujo objetivo for a redução ou a supressão artificial do tributo. É o caso, conforme citado nas hipóteses de branqueamento de capitais, da inserção de custos ou despesas inexistentes quando da apuração do IRPJ pela sistemática do lucro real.
Nessas situações, a Lei 9.430/96, em seu artigo 44, conjugada com a Lei 4.502/64, estipula uma severa punição tributária em forma de multa de ofício qualificada. São os casos em que o percentual é majorado para 150% do valor do tributo sonegado, desde que mediante prática de fraude, sonegação ou conluio, constatadas pelo Fisco. Na mesma linha, seguindo o artigo 83 da Lei 9.430/96, cabe a representação fiscal para fins penais ao Ministério Público, ao qual caberá a análise e possível denúncia para os mesmos atos ilícitos, mas sob o espectro estritamente do Direito Penal.
Verifica-se, portanto, o grau de complexidade a ser enfrentado diante de circunstâncias que, simultaneamente, geram efeitos tributários e penais. A grosso modo, na maior parte das situações, a convivência é pacífica e colaborativa, fundada em arranjos que propiciam uma solução alinhada com os valores protegidos pela nosso sistema jurídico. Já naqueles casos em que forem constatados conflitos de maior complexidade, caberá ao Poder Judiciário encontrar soluções justas, coerentes e que melhor se amoldem aos princípios do Direito Penal e do Direito Tributário.
Autor: Diogo Cabeda é auditor fiscal da Receita Federal.