A Constituição Federal e o direito penal garantista

Sergio Abinagem Serrano

PROMOTOR DE JUSTIÇA EM GOIÁS
ESPECIALISTA EM DIREITO PENAL, PROCESSUAL PENAL E CRIMINOLOGIA; MEMBRO DA BANCA EXAMINADORA DE CONCURSO PARA INGRESSO NA CARREIRA DO MINISTÉRIO PÚBLICO

I – A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

1.1. A Constituição Federal Brasileira: norma rígida.
A rigidez de nossa Carta Magna em vigor é conseqüência da dificuldade evidente em modificá-la, muito maior do que as leis ordinárias, por exemplo.
Da rigidez constitucional surge como conseqüência o princípio da supremacia da constituição.
Pinto Ferreira menciona, neste contexto que tal princípio “é reputado como uma pedra angular, em que assenta o edifício do moderno direito político”
A Constituição Federal de 1988 é rígida e, como nos ensinamentos de José Afonso da Silva, “Toda autoridade só nela encontra fundamento e só ela confere poderes e competências governamentais. Nem o Governo federal, nem os governos dos Estados, nem os dos Municípios ou do Distrito Federal são soberanos, porque todos são limitados, expressa ou implicitamente, pelas normas positivas daquela lei fundamental. Exercem suas atribuições nos termos nela estabelecidos.
Por outro lado, todas as normas que integram a ordenação jurídica nacional só serão válidas se se conformarem com as normas da Constituição Federal.
II – O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E O GARANTISMO
2.1. Sendo rígida as normas constitucionais, as leis infra-constitucionais em vigor para serem recepcionadas pela Constituição Federal devem estar de acordo com seus fundamentos, bem como, as que devam ingressar no ordenamento jurídico, notoriamente com o fato de sermos, conforme declarado expressamente pelo Constituinte de 1988, um Estado Democrático de Direito.
Estados de Direito, evidentemente todos o são. O que nos difere é que o nosso Estado é democrático, não concebendo assim, leis que ferem os princípios de um Estado Democrático, cujo Poder emana diretamente do povo e por ele é exercido, ou através de seus representantes.
O Direito Penal que por um lado define as condutas delituosas, concedendo ao Estado, caso ocorra um fato típico e antijurídico descrito anteriormente pela lei penal, o direito a iniciar a persecução penal, por outro, é garantia individual do limite estatal de intervenção no direito de liberdade do agente que, em tese, tenha cometido um delito.
O Brasil viveu muitos anos sob regime ditatorial, sendo quinze anos da era Vargas e outros vinte e um anos de regime militar(entendo que com a ascensão de Tancredo Neves ao Poder, mesmo que por via indireta pôs fim ao regime de 1964), trazendo conseqüências culturais centralizadoras na sociedade, cujos reflexos danosos para a implementação da democracia, da cultura democrática levará muito tempo.
A busca de valores de igualdade, fraternidade, dignidade e liberdade, são próprios de uma cultura democrática, como regime que confere ao povo a detenção do Poder, que o exerce diretamente ou através de seus representantes(art. 1º, p. único da CF).
Em um Estado Democrático, este é quem deve promover e fazer valer o seu Poder para a efetivação dos valores acima expostos(art. 3º, da CF).
Quando se afasta de tais preceitos, a democracia permanece apenas no sentido formal, ou seja, uma elite dominante manipula os conceitos de democracia, elaborando leis que os perpetuem no Poder, mesmo que eleitos diretamente, visto que o processo eleitoral é viciado por sucessivas modificações das regras eleitorais, que variam de acordo com os interesses das oligarquias que detém o Poder econômico e igualmente o Político.
Assim, evidencia-se que o Estado Democrático de Direito é uma busca de valores, de luta pelas garantias dos direitos individuais e sociais, mas que concretamente está cada vez mais distante da cultura social.
A mídia possui um papel importante nesse contexto, trazendo programações cada vez mais formativos de opinião do que informativos à opinião pública.
Com o fracasso da efetivação real dos valores de igualdade e dignidade da pessoa humana, diante das grandes diferenças sócio-econômicas, a conflitiva sociedade de consumo, necessita de pessoas formadoras de opinião nos setores de comunicação que, ao invés de trazerem debates e discussões dos reais problemas sociais, permanecem sempre na superfície da problemática.
No campo penal, com o agravamento dos crimes cometidos pelas camadas inferiores da população, excluídas do processo de produção e conseqüentemente da capacidade de consumir, não se vê debates nas grandes redes de televisão, sobre a importância de medidas que tragam de volta, os controles primários da sociedade, como forma eficaz de prevenção da ocorrência dos delitos, tais como: reforma urbana, evitando-se que a propriedade urbana seja objeto de especulação e tenha efetivamente uma função social, conforme determina a Constituição Federal(art. 5º, XXIII), diminuindo-se o déficit habitacional, o que traria moradia digna; redistribuição das riquezas produzidas no país, diminuindo-se as distâncias sociais nas camadas da população, buscando os valores de igualdade, próprias de um regime democrático real; a reforma agrária, com o fim da especulação dos latifúndios improdutivos; a reforma tributária, com a efetiva taxação das grandes fortunas, como meio de alcançar maior distribuição da renda no país e a diminuição dos inúmeros impostos que só atingem a classe média; a educação valorizada, com a reciclagem dos professores e a melhor remuneração desses profissionais de ensino; uma efetiva política de saúde pública e de saneamento; a reforma política, com a fidelidade partidária e um Código Eleitoral novo, que dispusesse sobre todas as formas de eleições existentes, majoritárias e proporcionais, incluindo-se as formas de propaganda e distribuição de tempo aos partidos, coligações e candidatos, deixando-se esta praxe elitista de elaborar-se leis sucessivas a cada eleição, típico de países dominados por oligarquias.
Ao invés disto, em um país onde mais de 90% dos presos são pobres e miseráveis, defende-se é o retorno da pena de morte, da prisão perpétua, como se a marginalidade tivesse as mesmas oportunidades de vida que os demais cidadãos, como se escolhessem entre o bem e o mal, de forma livre e consciente, falam como se a sociedade fosse igualitária e os miseráveis não passassem de fracassados e preguiçosos, jamais discutindo as injustiças sociais, culturais e raciais, como potencializadores do aumento da criminalidade.
Em um regime que ainda possui uma polícia estruturada legalmente como nos tempos de Getúlio Vargas, com os inquéritos policiais na forma inquisitiva, além de manterem os policiais civis, como os próprios delegados de polícia, à mercê do Poder Político, podendo ser removidos a qualquer tempo, através de Portaria, em uma clara demonstração que esta polícia somente pode atuar como forma de controle social das camadas mais inferiores da população.
2.2. Na reforma constitucional as vozes do retrocesso também rondaram as garantias constitucionais do Ministério Público, diante da existência de poderosos grupos econômicos prejudicados pelas ações da Instituição Nobre, em defesa da ordem econômica e tributária e do Meio Ambiente, atuado firmemente para retirar do texto constitucional as suas prerrogativas, a fim de impor o cabresto dos neo-coronéis oligárquicos também no órgão que visa defender a ordem democrática.
O tecido social apodrecido pelas extremas diferenças sociais, causou a vinda de leis pontuais, com claras inconstitucionalidades, tais como, a lei dos crimes hediondos, que não permite a concessão de liberdade provisória(art. 2º, inciso II, da Lei nº 8.072/90), aos agentes delituosos que os tenha praticado em tese, contrariando o texto constitucional, nos termos do art. 5º, inciso XLIII, que somente proibiu a concessão de graça ou anistia a tais autores dos delitos considerados hediondos, não mencionando a Carta Magna, qualquer proibição de concessão de liberdade provisória, sendo que, as decisões que afirmam pela constitucionalidade da norma em questão, são evidentemente de conveniência político-criminal.
Mas não é somente nos delitos graves que surgem leis inconstitucionais. Igualmente ocorre na lei que disciplinou os denominados “crimes de menor potencial ofensivo”.
O artigo 76, da lei nº 9.099/95 que prevê a imediata aplicação de “pena” restritiva de direitos, sem que haja processo, pois sequer há denúncia, e portanto, sem que ocorra condenação, é uma verdadeira aberração jurídica, violando o princípio consagrado de que não haverá pena sem o devido processo legal(art. 5º, LIV, da CF), além de violar o princípio da presunção de inocência(art. 5º, LVII, da CF).
É evidente que o possível autor delituoso está negociando apenas o processo, aceitando as condições sugeridas pelo Ministério Público para não correr o risco de ver-se processado. Não há portanto, confissão de culpa(lato senso), não há processo e não há sentença condenatória, logo não pode haver aplicação de uma pena criminal.
Bastaria o legislador estabelecer a aplicação de uma fiança processual, caso fossem aceitas pelo autor do fato as condições propostas pelo Ministério Público. Cumpridas as condições pelo agente, não haveria o processo criminal e devolver-se-ia a fiança prestada e, contrário senso, o Ministério Público ofereceria Denúncia e a fiança seria revertida ao Estado, em caso de condenação, após o trânsito em julgado da Sentença condenatória.
Quando uma sociedade começa a deteriorar-se e a elite não possui um discurso ou uma proposta que de fato recupere a confiança das pessoas em suas Instituições e no sistema, uma das saídas é o estabelecimento do Direito Penal do terror, criminalizando condutas, aumentando penas, transformando delitos em hediondo, sem um estudo prévio, violando o sistema, apelando para o sensacionalismo, como se o Direito Penal fosse um instrumento eficaz para resolver problemas de raízes estruturais da sociedade. Além disso, legislações esparsas e elaboradas às pressas quebram o sistema como um todo, dificultando o conhecimento das normas por seus destinatários.
2.3. Vejamos por exemplo, o novo Código de Trânsito Brasileiro(Lei nº 9.503, de 23.09.97), Capítulo XIX, Seção II, “DOS CRIMES EM ESPÉCIE”, em seu artigo 302, preceitua que “Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor”, a pena será de detenção, de dois a quatro anos, além da suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
A culpa estrito senso, envolve, segundo os ditames clássicos, a imprudência, a negligência e a imperícia.
Evidente que todos cidadãos que dirigem um veículo nas cidades e rodovias, encontrando-se estas em boa parte esburacadas e com péssima sinalização, estarão mais sujeitos a causarem um acidente e se verem processados.
Todavia, uma pessoa que limpa uma arma de fogo, imprudentemente na frente de outras pessoas, negligenciando o cuidado de verificar se referida arma está carregada e cause uma morte culposa, será penalizada nos termos do Código Penal, como fato típico contido em seu artigo 121, parágrafo 3º, com pena de detenção de um a três anos.
A lei de trânsito destruiu no caso em tela, o sistema, que deve ser equânime. Ora, a culpa em um acidente de carro não difere da culpa de quem dispara acidentalmente uma arma de fogo, mas são punidos objetivamente de forma distinta; no primeiro caso, mais severamente, devido ao instrumento do crime.
O mesmo pode-se dizer das lesões corporais, causadas em acidente de trânsito(art. 303 do CTB), das lesões corporais causadas de forma culposa, prevista no Código Penal(art. 129, parágrafo 6º) O primeiro prevê pena de detenção de seis meses a dois anos e este último de dois meses a um ano.
A fabricação de remédios falsos, por exemplo, que passou a ter o caráter de hediondo, punirá da mesma forma e com o impedimento dos benefícios legais, aqueles que falsificarem uma aspirina e os que produzirem falsos medicamentos para câncer.
2.4. Na realidade, a busca impensada de combate à criminalidade, sem uma verdadeira busca pelo controle social primário, prevenindo o delito, serve para gerar tão somente maiores desigualdades, rotulações e estigmas para aqueles que estão fora da capacidade de consumir.
Neste sentido temos a denominada Teoria do “Libeling Approuch”(Rotulação Social ou interacionismo).
Verifica-se que nas metrópoles, quando há o surgimento de um bairro recente, não há controle social primário, redundando, devido ao fato social(miséria, desemprego, etc.), em anomia(ausência de normas) e conseqüentemente o aumento da violência.
2.5. Para melhor entendermos os valores de igualdade e sua busca, bem como, pela dignidade da pessoa humana, antes de defendermos o Direito Penal do Terror e as legislações pontuais que tudo criminaliza, sem retornar pela mão inversa, descriminalizando condutas irrelevantes, como seria o ideal em um Estado Democrático de Direito, há que entender-se sobretudo que o conceito de crime é relativo.
Primeiramente nós temos os atos(as condutas); depois temos a valoração dos atos e em terceiro lugar temos a tipificação dos atos ou das condutas.
O crime é relativo: a) se uma criança danifica sua casa, a reação do pai é branda; b) se a criança danifica um bem de um condomínio, o pai a castigará com maior rigor; c) se uma pessoa adentrar em um bar e danificá-lo haverá então crime.
Portanto, mesmo os atos serem exatamente iguais, somente algumas pessoas são tratadas como criminosas.
Tal é o relativismo do que seja crime, que alguns homens bebem em excesso e são chamados de alcoólatras, mas outros não; há homens excêntricos: alguns são internados em hospícios, outros não.
Desta forma, não há um conceito de crime, mas sim, “pré-conceito”, notoriamente em um Estado Industrial, cuja noção de valor é por si mesma, esparsa, visto ser conflitiva.
2.6. Há desta forma:
1 – desviação primária(poligenética): falta de mecanismo primário para evitar-se o crime, em uma sociedade conflitiva;
2 – desviação secundária(estigma ou rótulo): como relativisamos o conceito de crime, há que evitar-se o rótulo. Ocorre a rotulação em demasia em cidades pequenas. É um processo ritualizado que é chamado de:
3 – cerimônia degradante: ritos processuais que degradam o réu. Fotos estampadas em jornais; depoimentos na polícia. É a ritualização do processo, que fará a pessoa sofrer de forma degradante, com suas conseqüências;
4 – Instituição Total: a sociedade cria instituições onde serão as pessoas internadas e serão submetidas a uma administração formal, onde o “eu” será massacrado. É o processo da despersonalização. As pessoas perdem o nome e passam a ter um número.
Essas instituições podem ser um convento, um quartel ou uma prisão. A instituição totalizadora elimina a capacidade de crítica humana, pois o ser humano é humilhado. Só que a conseqüência é que este ser humano sairá pior do que entrou.
Há a descultura da pessoa, através do “ritual de passagem”(corte de cabelo; vestimenta própria, etc.);
5 – “Role – ingulfment”(carreira criminal): É a interação da subcultura da Instituição total. Reagindo, o indivíduo acaba aceitando, introjectando o rótulo de criminoso, tornando-se mais violento, pois ele tem que agir de acordo com a vida institucional.
2.7. Desta forma a estigmatização toma conta do indivíduo e isto desde o início das investigações criminais. Vejamos:
I – Desviação Primária – resposta ritualizada da investigação e do processo – estigma;
II – distância social, redução de oportunidades e subcultura delinqüente com reflexo na auto-imagem e passa a ter carreira criminosa.
Para recuperar-se o preso é necessário combater a estigmatização, mediante a:
a) desformalização do processo: Lei nº 9.099/95 – elimina o processo com sua suspensão(fim do ritual);
b) fim dos inquéritos: lavratura de “Termo Circunstanciado de Ocorrência”(TCO) – Lei nº 9.099/95;
c) descaracterização: é a eliminação da subcultura criminal, com o fim de prisões cautelares(preventiva), desde que, o autor colabore com o Estado; a liberdade após o flagrante em crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa;
d) minimização da política criminal(minimalismo): reduzir a prisão; criar alternativas; reduzir o processo – como a última “ratio regium”
III – CONCLUSÃO
3.1. É necessário que haja serviços de reaproximação com a sociedade, como houve com o IRESP – “Instituto de Recuperação dos Egressos de São Paulo”(extinto no governo Quércia).
Quando a sociedade deixa-se endurecer em seus sentimentos e na capacidade de debater os problemas sociais e de procurar resolvê-los, ocasionando a ruptura do tecido social, surge a contestação das regras de conduta, com a desobediência generalizada, diante da ausência de valores de ética, educação, enfim de dignidade humana. Chega-se à anomia.
3.2.. A teoria da Anomia(ausência de regras) é desautorizadora da conduta, como o movimento Heappy, onde o indivíduo busca sair do sistema para encontrar sua personalidade, sua individualidade.
Durante a 2ª Guerra Mundial, a resistência francesa utilizava-se de crianças de 10 anos para colocarem bombas em bares e restaurantes freqüentados pelos nazistas.
Quando estas crianças chegaram à maioridade passaram a viver de práticas criminosas, visto terem perdido durante a guerra a noção de regras e normas(anomia).
Anomia é, portanto, a ausência de regras e normas primárias introjectadas como valores na população. É a falta de conduta-padrão da sociedade.
3.3. Verifica-se destarte, que não será através da mídia, com programas que apelam para o sensacionalismo, aproveitando-se da miséria e da dor alheia e muito menos através de leis duras e penas de longa duração que se diminuirá a incidência do crime, mas sim, com o resgate dos valores da dignidade da pessoa humana, com acesso ao básico para que haja tal dignidade: alimentação, saúde, educação, renda e moradia digna.
O legislador necessita criminalizar condutas socialmente relevantes, terminando com os privilégios dos que cometem crimes contra a ordem econômica, tributária e não procurar atingir sempre os membros da baixa camada social com a formação da opinião pública e, ao mesmo tempo, descriminalizar as condutas irrelevantes para a sociedade, como inúmeras contravenções penais.
Deve ainda propiciar uma reforma global no processo penal, instrumentalizando os aparelhos estatais, como a polícia, informatizando-a e deixando-a livre do poder político e de suas ingerências, trazendo a figura do Juízo de Instrução, a fim de colocar fim no sistema inquisitivo do inquérito, ampliando de fato a defesa do acusado e exterminando a repetição dos atos praticados na fase policial em Juízo o que tornaria mais célere os julgamentos dos feito criminais, sendo que, o Magistrado que decidir sobre os pedidos de prisões cautelares, preventivas e que ainda decretasse arresto, seqüestro e busca e apreensão, além de outras medidas cautelares, não seria o mesmo que julgaria a causa, após ofertada a Denúncia, a qual, já estaria instruída com todos os meios de provas e passar-se-ia imediatamente à fase de julgamento.

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