A Corrupção no Setor Privado (Reflexões a partir do ordenamento espanhol à luz do direito comparado)

Adán Nieto Martín
Professor Titular de Direito Penal na

Universidade de Castilla – La Mancha.

Tradução de Damásio de Jesus.

INTRODUÇÃO
A corrupção é, sem dúvida, um dos delitos mais característicos do mundo globalizado. Por isso, não é de estranhar-se que os órgãos supranacionais tenham criado nos últimos tempos diversos instrumentos com a finalidade de estabelecer estratégias comuns. No âmbito europeu, destacam-se as diversas iniciativas da União Européia (UE) e o Convênio do Conselho da Europa Contra a Corrupção de 27.1.1999, e, dentre elas, a partir da ótica do Direito espanhol, surpreende singularmente a formulação de um delito de corrupção no setor privado, figura delitiva que o legislador espanhol está obrigado a introduzir em nosso ordenamento, pois, ainda que não tenhamos aderido ao Convênio do Conselho da Europa, a Ação Comum da UE impunha a inclusão dessa figura delitiva antes de terminado o ano de 2000[2].

Salvo erro ou omissão da minha parte, nem o legislador, nem a doutrina reconheceram a obrigação de incluir um delito com essas características. Além disso, não é exagero indicar que a expressão corrupção privada é quase desconhecida no dicionário de termos jurídico-penais espanhóis. No máximo, faz-se menção a ela somente no momento de proceder a uma classificação dos diversos tipos de corrupção. Nessa situação, a metodologia mais eficaz consiste em analisar os diversos ângulos que essa tipologia de condutas apresenta no Direito comparado, para, a seguir, questionar e refletir acerca de sua possível projeção – de lege lata e lege ferenda – no Direito espanhol. Ocorre que, ainda que a corrupção privada, tal como está definida na Ação Comum, resulte em uma figura delitiva singular, algumas de suas conseqüências ou manifestações alcançam relevância penal ou a possuem em outros setores do ordenamento, como o Direito da Concorrência ou o Trabalhista, por meio de sanções civis ou administrativas.

No Direito comparado, de acordo com o útil relatório do Max Planck Institüt sobre a corrupção[3], podem ser encontradas até quatro perspectivas diferentes da corrupção privada: a) a trabalhista; b) a que é efetuada a partir do Direito da Concorrência; c) a que é centralizada nas implicações penais do processo de privatização da administração e, finalmente, d) a que considera os aspectos patrimoniais da corrupção.

A CORRUPÇÃO PRIVADA NO DIREITO COMPARADO

Na França (art. L 152.6 do Código de Trabalho) e na Holanda (art. 328 do CP), a corrupção entre particulares é abordada a partir da ótica do Direito do Trabalho. O suborno de empregados constitui uma conduta que atenta contra o princípio de lealdade nas relações trabalhistas. Provavelmente, esse é o raciocínio compartilhado também no RU após a Prevention of Corruption Act de 1906, que compreende tanto a corrupção privada quanto determinados casos de corrupção pública, pois, na lógica desse texto legal, o nexo comum entre ambos os tipos de corrupção é a deslealdade com o superior, seja autoridade, funcionário público ou empresário privado[4]. Esse primeiro modelo acarreta fundamentalmente três conseqüências na conformação dos tipos penais. De um lado, sujeitos ativos somente são os “empregados”, mas não logicamente os empregadores; sob outro aspecto, o consentimento do empresário supõe a atipicidade do comportamento, pois onde este admite ou tolera as gratificações ou subornos não se pode falar de deslealdade. E, finalmente, ao se situar a infração do dever funcional que está intrínseca em todo ato de corrupção[5] na relação genérica de lealdade entre empresário e trabalhador, o ato a cumprir é definido em termos extraordinariamente amplos: “pour accomplir ou s’abstenir d’accomplir un acte de sa fonction ou facilité par sa fonction”[6].

A segunda aproximação é proporcionada pelo Direito alemão (§ 299 StGB)[7] e pelo austríaco
(§ 10 UWG). Aqui, o ponto de vista relevante, o bem jurídico protegido, não é outro senão a tutela da concorrência. Concretamente, trata-se de sancionar um ato de concorrência desleal[8]. Nesse âmbito, a infração do dever funcional situa-se no contexto das obrigações dos operadores econômicos do mercado. Na formulação típica, essa conceituação da corrupção privada manifesta-se da seguinte forma: a corrupção somente será relevante enquanto afetar fornecimentos de mercadorias ou prestações de serviços que se efetuam num regime de concorrência; o caráter supra-individual do bem jurídico protegido faz com que o consentimento do empresário seja irrelevante; dado que a concorrência desleal é uma instituição destinada a tutelar tanto os participantes do mercado quanto a comunidade, esse delito é um crime privado[9], salvo naqueles casos em que o comportamento afeta de forma relevante os interesses públicos (§ 301 StGB). É significativo, contudo, que, a partir da formulação do bem jurídico protegido, os sujeitos ativos continuam sendo somente empregados ou encarregados. Coerente teria sido também incluir os próprios empresários no círculo de autores. A concorrência altera-se de igual forma quando é o proprietário da empresa quem solicita ou recebe a oferta de contraprestação econômica em troca de preferir, de maneira desleal, o fornecimento de serviços ou mercadorias de um determinado concorrente. Dissimuladamente, a lealdade nas relações trabalhistas também está presente na conformação do tipo. A esse modelo responde claramente a Ação Comum da UE, e igualmente o preceito (art. 36: suborno de empregados e encarregados) da proposta de eurodelitos efetuada pelo professor Tiedemann[10]. Em ambas, o bem jurídico protegido é a concorrência. Se bem que, nas duas propostas, se continua a não incluir o empresário como sujeito ativo.

A terceira aproximação a esse fenômeno pode ser efetuada a partir dos conceitos de privatização e distanciamento do Direito Administrativo. Convivem, nesse ponto, duas situações diferentes. A primeira é a que nos apresenta o Direito sueco, no qual, desde 1978, existe um tipo unitário de corrupção, que compreende tanto a corrupção privada quanto a pública[11]. Essa opção se baseia em um argumento de política criminal que pode ser compartilhado por todos, uma vez que se sustenta em uma análise econômica do fenômeno da corrupção: esta sempre gera ineficiência econômica e custos excessivos que acabam onerando os cidadãos, seja como administrados, seja como consumidores. Mas a opção sueca não pode ser compreendida completamente sem considerar-se o respeito que a esfera pública tem nesse país, o que faz com que as formas de gestão públicas tenham sido adotadas pela empresa privada, além de ser o setor público particularmente amplo.

Este último argumento – tão “nórdico” – tem difícil amparo, tendo em vista o ocorrido nas duas últimas décadas na maioria dos países da UE, onde a tendência é justamente o contrário: reduzir o setor público por meio do processo de privatizações, delegar a prestação de serviços públicos e a realização de tarefas públicas às empresas privadas, “fugindo do Direito Administrativo” mediante a sujeição de determinadas atividades desenvolvidas pela administração ao Direito comum[12]. Essa espécie de confusão entre o público e o privado provocou, em países como a Alemanha, uma redefinição do conceito de funcionário público (§ 11 StGB), cujo objetivo é, sobretudo, incluir dentro desse termo os particulares que, por encargo da administração, realizam funções públicas[13]. Na Áustria, e a partir de uma perspectiva complementar, formulou-se um tipo penal específico, no qual se sanciona a corrupção de empregados de empresas públicas [§ 305.1 (2) e § 307.1 (2) ÖStGB][14]. Nos antigos países socialistas essa é a preocupação que inspira as reformas ocorridas nos últimos anos. O interesse pela criação de um delito de corrupção no setor privado provém do desmantelamento do setor público e do conseqüente horror vacui perante a anomia jurídica-penal em que ficam os outrora funcionários públicos. Político-criminalmente, os argumentos colidem com os dos suecos: onde tudo era público, é difícil indicar os motivos que farão com que os trabalhadores atualmente privados tenham um cenário penal tão diferente[15].

A aproximação ao fenômeno da corrupção privada não estaria completa se não se fizesse menção a uma última perspectiva: a patrimonial. Os fundos que saem de uma empresa para subornar um empregado público ou privado supõem um prejuízo patrimonial, a partir do ponto de vista econômico de que somente se admite como contraprestação econômica a expectativa patrimonial que supõe a promessa de o funcionário público ou privado poder considerar-se compensado. Igualmente, em contrapartida, na empresa cujo representante recebe o suborno, no mínimo, existe o perigo da administração desleal por parte do administrador subornado, que ao encontrar-se em uma situação de conflito de interesses, pode preterir os interesses patrimoniais de sua empresa. Esse problema, até tempos muito recentes, somente encontrou resposta na jurisprudência, que em alguns países, como a Áustria, considerou que os fatos, tanto por parte do “que dá” quanto do “que recebe”, constituem um delito de administração desleal[16]. Como se pode comprovar, a pergunta que surge dessa perspectiva é em que proporção os delitos de “administração desleal” devem contribuir para a função social de lutar contra a corrupção[17]. O legislador italiano acaba de responder afirmativamente a essa pergunta. Na recente reforma do Direito Penal Societário, ele incluiu, como tipo especial de administração desleal, o delito de “infidelita a seguito di dazione o promessa di utilitá” (art. 2634 c.c.)[18],[19].

COMO CITAR ESTE ARTIGO:

NIETO MARTÍN, Adán. A Corrupção no Setor Privado (Reflexões a partir do ordenamento espanhol à luz do direito comparado). Tradução de Damásio de Jesus. Disponível na Internet: . Acesso em xx de xxxxxxxx de xxxx

(substituir x por dados da data de acesso ao site)

[1] Paper apresentado no Convênio de Estudos sobre: A Corrupção Privada: experiência comparativa e perspectiva de reforma, Jesi, 12-13, abril de 2002. Trad. de La corrupción en el sector privado: reflexiones desde el ordenamiento español a la luz del Derecho comparado (Revista Penal La Ley, n. 10, p. 55 e ss., jul. 2002). Excerto do paper.

[2] Sobre a estratégia internacional contra a corrupção, vide HUBER, La lotta alla corruzione in prospetiva sovranazionale, RTDPE, p. 467 e ss., 2001; em relação à formulação dos delitos de corrupção no setor privado realizada pelo Convênio do Conselho da Europa e pela Ação Comum da UE, vide DE LA CUESTA; BLANCO CORDERO, La criminalización de la corrupción en el sector privado: Asignatura pendiente del Derecho Penal español, na obra Homenaje al Prof. Dr. José Cerezo Mir (no prelo). Concretamente, esses preceitos têm o seguinte teor literal:

Ação Comum sobre a corrupção no setor privado (Diário Oficial de las Comunidades Europeas, L 358, p. 2, 1998):

Art. 2. Corrupção passiva: “Para efeitos da presente Ação Comum, constituirá corrupção passiva no setor privado o ato intencional de uma pessoa que, diretamente ou por meio de terceiros, solicitar ou receber, no exercício de atividades empresariais, vantagens indevidas de qualquer natureza, para si mesma ou para um terceiro, ou aceitar a promessa de tais vantagens, em troca de realizar ou se abster de realizar um ato descumprindo suas obrigações”.

Art. 3. Corrupção ativa no setor privado: “1. Para efeitos da presente Ação Comum, constituirá corrupção ativa no setor privado a ação intencional de quem prometer, oferecer ou der, diretamente ou por meio de terceiros, uma vantagem indevida de qualquer natureza a uma pessoa, para esta ou para um terceiro, no exercício das atividades empresariais da referida pessoa, para que esta realize ou se abstenha de realizar um ato descumprindo suas obrigações”.

[3] ESER/ÜBERHOFEN/HUBER (HRSG.), Korruptionsbekämpfung durch Strafrecht. Ein rechtsvergleichendes Gutachten zu den Bestechungsdelikten im Auftraf des Bayerisches Staatsministeriums der Justiz, Iuscrim, Freiburg i. Br., 1997.

[4] HUBER/BECK (nota 3), p. 84.

[5] Na definição do conceito de corrupção, parto do elaborado por MALEM SEÑA, Globalización, comercio internacional y corrupción, Barcelona, Gedisa, 2000, p. 25 e ss. e p. 28: “pode-se definir aos atos de corrupção… como aqueles que constituem a violação, ativa ou passiva, de um dever posicional ou do descumprimento de alguma função específica realizados em um marco de discrição com o objetivo de obter um benefício extraposicional, qualquer que seja sua natureza”.

[6] DELMAS-MARTY; GIUDICELLI-DELAGE, Droit Pénal des affaires, 4.ª ed., Paris, Puf, 2000, p. 289.

[7] O § 299 StGB corresponde ao antigo § 12 UWG, pelo qual a Alemanha conta com um delito de corrupção privada, a partir do início do século XX. A transcendência prática desse preceito foi, contudo, escassa, devido tratar-se de um delito privado, e as empresas, seja por questões de perda de imagem ou por outras razões comerciais, decidiam não denunciar. Sua transferência ao StGB foi efetuada mediante a Lei alemã de 20.8.1997, de luta contra a corrupção, com a intenção de incrementar a prevenção geral, motivo que provocou também uma agravação das penas, e de gerar maior consciência social acerca do dano desse tipo de comportamento, que na expressão da Exposição de Motivos representa uma conduta ética socialmente desaprovada. Em qualquer caso, como surge da leitura dos primeiros comentários à Lei de 1997, essa reforma não foi objeto de atenção especial.

Sobre a Lei contra a corrupção, vide KÖNIG, Neues Strafrecht gegen die Korruption, JR, 10, 1997, p. 297 e ss.; KORTE, Bekämpfung der Korruption und Schutz des freien Wettbewerbs mit dem Mitteln des Strafrechts, NStZ, 1997, p. 513 e ss.; MÖHRENSCHLAGER, Strafrechtliche Vorhaben zur Bekämpfung der Korruption auf nationaler und internationales Ebene, JZ, 1996, p. 822 e ss.; SCHAUPENSTEINER, Das Korruptionsbekämpfungsgesetz, Kriminalpolitik, 11/97, p. 699 e ss. Um resumo da reforma também se acha em WASSMER, Revista Penal, n. 3, p. 123 e ss.

[8] Vide, por todos, entre os diversos comentários, BLESSING, em MÜLLER-GUGENBERGER; BIENECK, Wirtschaftsstrafrecht, 3 Aufl., Köln, Verlag Dr. Otto Schmidt, 2000, § 53, marg. 48 e ss. e SCHUBERT, WABNITZ/JANOVSKY, Handbuch des Wirtschafts und Steuerstrafrecht, München, Verlag C.H.Beck, 2000, 12 Kapitel. Korruption, marg. 72 e ss.

[9] N. do T.: crime de ação penal privada.

[10] TIEDEMANN in TIEDEMANN (HRSG.), Wirtschaftsstrafrecht in der Europïaschen Union, Freiburg-Symposium, Carl Heymans Verlag, 2002, p. 287-228 e art. 36.

[11] Vide CORNILS in nota 3, p. 501 e ss.

[12] Em relação às causas políticas e ideológicas desses fenômenos, vide por todos: MARTÍN MATEO, Liberalización de la economía, Más Estado, menos Administración, Madrid, Trivium, 1988.

[13] Especificamente sobre o conceito de funcionário público em relação aos problemas mencionados, além da bibliografia citada na nota 7, vide LECKNER, Privatisierung der Verwaltung und “Abwahl des Strafrechts”?, ZStW 106 (1994), p. 502 e ss.; RANSIEK, Zur Amtsträgereigensachaft nach § 11, I, n. 2 c StGB, NStZ 1997.

[14] Além do relatório sobre a Áustria efetuado por ÜBERHOFEN in nota 3, p. 379 e ss., vide também BERTEL, Infedeltá ed accettazione di regali da parte del repressentante, RTDPE, p. 43 e ss., 1988. Na doutrina italiana, já apontava essa direção político-criminal nos anos 60: PEDRAZZI, Problemi e prospettive del Diritto Penale dell’impresa publica, RIDPP, 1966.

[15] Vide os relatórios de antigos países socialistas in nota 3, e também em relação à Rússia, que em 1997 introduziu a corrupção entre particulares no seu Código Penal (art. 204), vide SEREBRENNIKOVA in Wirtschaftskriminalität und Wirtschaftsstrafrecht, in einem Europa auf dem Weg zu Demokratie und Privatisierung (Hrsg. Grobb), Leipziger Universitätverlag, 1998, p. 232.

[16] Vide BERTEL (nota 14), passim.

[17] Confira GÓMEZ BENÍTEZ, José Manuel, Curso de Derecho Penal de los negocios a través de casos: reflexiones sobre el desorden legal, Madrid, Colex, 2001, p. 161 e ss.

[18] Vide sobre o Projeto Milittelo, RTDPE, p. 905 e ss., 2000, a idéia de incluir uma corrupção de administradores corresponde à velha proposta de MARINUCCI/ROMANO, Tecniche normative nella repressione, penale degli abusi degli amministratori di societá per azioni, RIDPP, p. 681 e ss., 1971, especialmente p. 685, os quais defendiam já nos anos 70 uma aproximação da empresa privada ao estatuto penal da função pública.

De lege lata, o art. 204 do CP russo pode se enquadrar também nessa direção, já que se situa em conjunto com dois delitos pertencentes ao marco da administração desleal no capítulo denominado “Proteção da lealdade na prestação de serviços”.

[19] N. do T.: entre nós, a corrupção ativa e a passiva no setor privado configuram delitos de concorrência desleal, definidos no art. 195, IX e X, da Lei n. 9.279, de 14.5.1996.

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