A crise da Democracia Representativa – O Paradoxo do Fim da Modernidade

Professor Doutor José Luiz Quadros de Magalhães
Diretor Geral do Centro de Estudos Estratégicos em Direito do Estado
Professor do mestrado e doutorado da Universidade Federal de Minas Gerais,
da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
e do Centro Universitário de Barra Mansa

Um dos temas mais discutidos no âmbito das ciências sociais é a democracia. Podemos no decorrer da história encontrar uma grande e rica viagem do seu sentido, desde sua inicial construção no pensamento e na prática da antiguidade até as sofisticadas e variadas discussões sobre a democracia participativa, a democracia dialógica e a construção do estado democrático de Direito.

Assistimos nestes tempos de profundas transformações a crise da democracia liberal, da democracia social e a insuficiência da democracia representativa além da apropriação do discurso democrático pelo poder econômico privado, concentrado nas mãos de poucos, incluindo o importante poder de controle e manipulação da mídia global. No mesmo momento, entretanto, percebemos claramente o surgimento e fortalecimento de alternativas. A globalização das comunicações, a Internet, a mídia alternativa, as TV s comunitárias, os jornais locais, as rádios comunitárias, enfim toda uma gama de informação democrática alternativa, que, uma vez organizadas em rede (e obviamente não me refiro aqui as falsas redes meramente reprodutoras de um conteúdo produzido por uma única fonte, mas em uma rede democrática, sem centro, multi paradigmática, uma rede de comunicações entre diversas culturas, que se unem em torno de princípios – e não conceitos – comuns) o mundo pode ser transformado em direção a um processo dialógico de construção permanente de uma grande democracia global.

Partindo de um conceito de democracia participativa e dialógica, podemos ir percebendo outros impasses contemporâneos. Um desafio muito claro está na necessidade de democratizar o que no senso comum ainda é aceito como democracia, ou seja, desenvolver mecanismos que possam fazer com que a democracia representativa, vitima do marketing, da concentração econômica e da opinião pública possa ser mais democrática do que ela já conseguiu ser no passado. Os exemplos do comprometimento e da necessidade de adaptar esta democracia representativa de forma que ela possa ser democratizada estão claros a nossa volta, pois se acentua nos momentos de graves conflitos de interesses como no caso da segunda guerra do golfo. Várias indagações surgem a partir da constatação de fatos:

I – na Espanha o Primeiro Ministro Aznar decide contra mais de oitenta e cinco por cento da opinião pública espanhola apoiar a guerra e os espanhóis se perguntam se vivem em uma democracia;

II – nos Estados Unidos o presidente manipulando uma mídia concentrada e controlada pelo poder econômico privado consegue o apoio de setenta por cento da população para uma guerra injustificada perante a opinião pública mundial. Os norte-americanos, em sua maioria, tem certeza que vivem em uma democracia (na realidade americana percebemos como é mais importante a crença na democracia do que sua efetividade);

III – nos países islâmicos governos alinhados com os EUA são obrigados pelas manifestações públicas a mudar seu discurso para acalmar os ânimos que podem, se mais exaltados, ameaçar o seu poder não democrático.

Diante destes três fatos da história contemporânea podemos nos perguntar: democracia e opinião pública são conceitos complementares. Responder sim a esta questão seria de uma insuportável simplificação, ao passo que ao justificar o não, poderemos sempre parecermos parciais.

Entretanto, há um ponto central nos três fatos acima enumerados: o atendimento da opinião pública não é sinal de democracia, não se confunde com democracia e pode ser usado contra a democracia, enquanto de outro lado a opinião pública pode forçar a democratização e limitar o autoritarismo. A construção de uma sociedade democrática e o funcionamento de processos democráticos dialógicos exigem uma análise extremamente mais complexa da sociedade, das instituições, da cultura, da história e do momento histórico vivido, do que simplesmente a sua redução ao normal funcionamento de um parlamento, de eleições periódicas e da realização de consultas populares através de referendos e plebiscitos, ou pesquisas de opinião.

Um outro aspecto referente a construção do senso comum sobre democracia está no discurso econômico: a cultura jornalística ocidental como a construção teórica simplificadora de alguns manuais de Direito, reproduzem, ainda hoje, o conflito do pós segunda guerra de maneira simplificada e parcial. Desta forma é comum encontrarmos afirmativas de que países onde não há a adoção de uma economia capitalista[1] não podem ser democráticos, mesmo que tenham eleições periódicas com grande participação popular.

Situações grotescas surgem a partir desta manipulação dos meios de comunicação: os leitores devem se recordar dos discursos recorrentes dos presidentes norte americanos no sentido de recuperar a democracia e os Direitos Humanos em Cuba. Este discurso foi repetido pelo presidente George W. Bush em 2003 quando afirmou que o seu governo não poupará esforços para resgatar os Direitos Humanos nas ilhas cubanas. Ora se procurarmos os dados divulgados pela ONU anualmente vamos verificar que Cuba detém os melhores índices na América Latina no que diz respeito ao oferecimento de direitos sociais como saúde e educação, com um índice de criminalidade muito baixo e uma população carcerária pequena. De forma diferente os EUA oferecem índices alarmantes, com uma população carcerária que ultrapassa 2.700.000 (dois milhões e setecentos mil detentos), população permanente entre os milhões que entram e que saem do sistema carcerário, com um número de condenações a morte só superado pela China. Segundo dados divulgados[2] em artigo do sociólogo da London School of Economics, Megan Comfort, dos 9.000.000 (nove milhões) de detentos liberados no curso do ano 2002, mais de 1.300.000 (um milhão e trezentos mil) eram portadores do vírus da hepatite C, 137.000 (centro e trinta e sete mil) portadores do vírus da AIDS e 12.000 (doze mil) com tuberculose, o que representa respectivamente 29%, 13% a 17% e 35% do número de norte-americanos tocados por estas doenças.[3]

O presidente norte-americano ao se referir a situação dos Direitos Humanos em Cuba talvez se referisse aos mais de 600 presos na base militar dos Estados Unidos em Guantanamo (território sob ocupação norte-americana na ilha principal de Cuba), sem direito a advogado, a um processo com ampla defesa e contraditório, sem sequer direito a uma acusação formal e submetidos a torturas sofisticadas diariamente, como a supressão dos seus cinco sentidos e a perda da referência de tempo e espaço. Muitos destas pessoas se encontram nesta situação a mais de dois anos, inclusive cidadãos norte-americanos.

Segundo o Patriot Act II nomeado de Domestic Security Enhancement Act, proposto pelo governo dos EUA, e mais duro que o USA Patriot Act, está previsto o fichamento do DNA de estrangeiros suspeitos ou de cidadãos norte-americanos suspeitos de terrorismo, prevendo ainda os pontos seguintes:

I – um cidadão norte-americano pode ser expulso dos Estados Unidos. Isto se com a intenção de se desfazer da sua nacionalidade, um cidadão norte americano se torna membro ou fornece aporte material a um grupo que os Estados Unidos tenham qualificado de organização terrorista;

II – um juiz poderá decidir que um norte-americano não merece mais ser cidadão, se sua conduta demonstrar sua intenção de não sê-lo;

III – abandono dos procedimentos judiciais que enquadram as atividades de segurança nacional permitindo detenções secretas.

Estes são alguns exemplos da nova lei proposta, que entretanto encontra alguma resistência desde a esquerda do partido democrata a direita do partido republicano.

Um exemplo recente de como a democracia representativa se torna intolerável quando esta afeta os interesses da elite econômica minoritária é o caso da Venezuela de Hugo Chaves, que guardadas as diferenças históricas nos faz lembrar do golpe de 1964 no Brasil ou do golpe de 1973 no Chile.

O atual governo da Venezuela foi eleito democraticamente com amplo apoio da população, embora tivesse contra si a grande mídia privada, o que mostra que o poder da mídia é grande, entretanto não infalível. Após o governo ser eleito (primeira eleição) convocou um processo constituinte democrático como raros na história. Foi eleita (segunda eleição) uma assembléia constituinte, a constituição foi votada e aprovada, depois submetida a referendo popular (terceira eleição). A assembléia foi dissolvida (pois trata-se de poder temporário) e foram convocadas eleições para o parlamento e novamente para presidente da república (quarta e quinta eleição). Após todo este processo o governo eleito começou a promover mudanças na economia e na sociedade que afetaram interesses de uma elite que sempre se beneficiou de privilégios deixando 80% da população na pobreza ou abaixo da linha de pobreza. Esta elite então, em nome da democracia, patrocina um golpe de estado com apoio de parte das forças armadas, depois de campanha da mídia, de sua propriedade, desmoralizando o governo. O golpe fracassou e seguiu-se uma greve na estatal de petróleo (principal fonte de recursos da Venezuela) com a intenção de inviabilizar economicamente o governo. A greve foi superada com enormes prejuízos econômicos. Agora depois de tudo a oposição tenta um plebiscito para tirar o governo, que não pôde governar como devia diante de tamanha instabilidade, mas que mesmo assim apresenta resultados sociais e econômicos positivos. A quem pertence a palavra democracia. Quem procura deter o monopólio da construção e divulgação do conceito de democracia. Os mesmos que quando a democracia, que lhes é favorável, se torna desfavorável, em nome da democracia, acaba ou tenta acabar com a democracia.

A democracia não é um lugar onde se chega. Não é algo que se possa alcançar e depois se acomodar pois é caminho e não chegada. É processo e não resultado. Desta forma a democracia existe em permanente tensão com forças que desejam manter interesses, os mais diversos, manter ou chegar ao poder para conquistar interesses de grupos específicos, sendo que muitas vezes estas forças se desequilibram, principalmente com a acomodação da participação popular dialógica, essência da democracia que defendemos, e o desinteresse de participação no processo da democracia representativa, pela percepção da ausência de representatividade e pelo desencanto com os resultados apresentados.

Desta forma os que detém determinados poderes transformam os processos a seu favor. Já trabalhamos a transformação de mecanismos que serviram a democracia norte-americana como financiamento de campanha, colégio eleitoral, bipartidarismo, imprensa privada, em mecanismos de controle e perpetuação de poder e remetemos o leitor aos nossos livros Direito Constitucional, tomo I e II, da editora Mandamentos (Belo Horizonte, 2002). Este desvirtuamento do processo democrático se aprofunda com a concentração econômica do final do século XX. Emanuel Todd, que combate a visão economicista do mundo observa o fenômeno no paradoxo da democratização de estados que viveram autoritarismos históricos enquanto antigas democracias se desvirtuam em novas oligarquias populistas e ou belicistas:

# No exato momento em que começa a ser implantada na Eurásia[4], a democracia enfraquece onde ela nasceu: a sociedade norte-americana transforma-se num sistema de dominação fundamentalmente desigual, fenômeno perfeitamente conceituado por Michael Lind em The next American Nation. Encontramos em especial, neste livro, a primeira descrição sistemática da nova classe dirigente americana pós-democrática, the overclass.

Mas não há que ter inveja. A França está quase tão avançada quanto nos Estados Unidos neste caminho. Curiosa democracia, esses sistemas políticos nos quais se defrontam elitismo e populismo, nos quais subsiste o sufrágio universal, mas as elites de direita e de esquerda entendem-se para impedir qualquer reorientação da política econômica que levasse a uma redução das desigualdades. Universo cada vez mais absurdo no qual o jogo eleitoral deve conduzir, ao cabo de um titânico confronto nos meios de comunicação de massa, ao status quo.[5]

Todd se refere na França atual a um mecanismo sociológico e político de bloqueio no qual no qual as aspirações dos 20% de baixo são bloqueadas pelos 20% de cima que controlam ideologicamente os 60% do meio. O resultado é que o processo eleitoral não tem qualquer importância prática sendo que o índice de abstenção avança de maneira sensível.

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[1] Remeto o leitor a leitura do capitulo dois do meu livro Direito Constitucional, tomo I, e dos capítulos 1, 2 e 9 do Direito Constitucional, tomo II, da editora Mandamentos, Belo Horizonte, edição de 2002.

[2] COMFORT, Megan. Manière Voir, n.71, bimestriel, octobre-novembre 2003, Lê Monde diplomatique, pag.66.

[3] National Comission on Correctional Health Care, The health status of soon-to-be-released imates, Chicago, 2002.

[4] Podemos mencionar também da democratização dos estados nacionais da América Latina e diversas novas democracias africanas

[5] TODD, Emanuel. Depois do Império, Editora Record, Rio de Janeiro, 2003, página 28.

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