Indaga-se: na ocorrência de dolo, fraude ou simulação, nos tributos sujeitos ao lançamento por homologação, quando ocorre o termo inicial do prazo de decadência?
Dispõe o parágrafo 4º do art. 150 do CTN:
“§ 4º Se a Lei não fixar prazo à homologação, será ele de cinco anos a contar da ocorrência do fato gerador; expirado esse prazo sem que a Fazenda Pública se tenha pronunciado, considera-se homologado o lançamento e definitivamente extinto o crédito, salvo se comprovada a ocorrência de dolo, fraude ou simulação.”
Por essa ressalva, fica estabelecido que, em havendo a comprovação da ocorrência de dolo, fraude ou simulação, não ocorrerá a homologação tácita e nem o crédito tributário estará extinto ao se expirar o prazo de cinco anos contado do fato gerador, sem que a Administração Fazendária tenha se manifestado. Nesses casos, então, não há de se falar em lançamento por homologação.
Comprovando-se então que o sujeito passivo agiu com dolo, fraude ou simulação, a Fazenda Pública efetuará o lançamento de ofício em substituição ao lançamento por homologação, conforme prevê o art. 149, VII do CTN. [01]
Entretanto, nem o art. 149 nem o 150 do CTN delinearam de forma explícita o termo inicial do prazo extintivo para se constituir o crédito tributário, questionando-se assim a regra a se obedecer nestas circunstâncias.
Há quem defenda [02] que a parte final do dispositivo constante do § 4º, do art. 150 do CTN, é uma exceção que não se poderia aceitar porque, em termos práticos e jurídicos, estaria desvirtuando o instituto da decadência formulado pela ciência do direito.
Não obstante isso, muitas são as teses doutrinárias levantadas que procuram explicar a natureza e a extensão deste prazo extintivo do crédito tributário. Senão vejamos:
I) Prazo indefinido, não correndo nenhum prazo extintivo
Essa tese encontra amparo no princípio de direito administrativo da indisponibilidade do interesse público, levando a doutrina moderna a discutir e contestar a possibilidade de existir a decadência do crédito tributário. [03]
Essa interpretação, todavia, não tem guarida na doutrina pátria dominante, sob o fundamento maior de estar ferindo o princípio da segurança jurídica.
II) Prazo de 20 (vinte) anos, com base no art. 177 do Código Civil de 1916
Com a edição do Código Civil, de 2002, o dispositivo correspondente vem assim descrito:
Art. 205. A prescrição ocorre em 10 (dez) anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor.
Esse entendimento é refutado por parte da doutrina, entre outros, nesse sentido: “tomar de empréstimo prazo do direito privado também não é solução feliz, pois a aplicação supletiva de outra regra deve, em primeiro lugar, ser buscada dentro do próprio subsistema normativo, vale dizer, dentro do CTN”. [04]
III) Prazo de 05 (cinco) anos, segundo a regra do inciso I do art. 173 do CTN
Grande parte dos doutrinadores [05] e da jurisprudência [06] tem o entendimento de que, na hipótese em estudo, deve-se seguir a regra geral disposta no inciso I do art. 173 do CTN, que disciplina que o prazo de cinco anos é contado não do fato gerador, mas do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido realizado. Nesse sentido, conclui Luciano Amaro: [07] “essa solução não é boa, mas continuamos não vendo outra, de lege lata”.
Souto Maior Borges, [08] todavia, apregoa que “nenhuma das propostas de interpretação ofertadas pela doutrina tradicional deve ser acolhida”, sendo uma das saídas a sua contemplação estar prevista em lei ordinária das pessoas contempladas pela Constituição. Se não, a solução, no entender do citado autor, estaria somente no Poder Judiciário, o único constitucionalmente competente para criar uma norma individual.
IV) Prazo de 05 (cinco) anos, disciplinado no art. 173, I do CTN, porém, contado da ciência pelo Fisco dos fatos omitidos
Embora o entendimento majoritário da doutrina, assim como da jurisprudência de nossos tribunais, esteja firmado no sentido de que nestes casos a regra a ser seguida é a disposta no art. 173, I, do CTN, a interpretação que ora defendemos tem amparo também nesse dispositivo legal, diferenciando-se, no entanto, quanto ao momento em que se inicia a contagem do prazo decadencial.
Nesse sentido, comprovando-se a ocorrência de dolo, fraude ou simulação, nos procedimentos de lançamento efetuados pelo sujeito passivo, o prazo decadencial somente poderá iniciar o seu transcurso a partir do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o Fisco tiver possibilidade de verificar a ocorrência do fato gerador omitido da obrigação tributária, ou de sua ciência.
Naturalmente que essa tese é repudiada pela grande maioria dos juristas e doutrinadores, tendo como principal argumento de estar-se indo de encontro aos princípios da segurança, certeza e estabilidade que norteiam as relações jurídicas.
Inicialmente, ressaltamos que nenhum pioneirismo nem espírito fiscalista há em defender essa tese doutrinária, há muito já levantada e estudada. [09] Procuramos, assim, desenvolver neste trabalho fundamentos outros, a nosso ver, consistentes e amparados na legislação regente.
Para uma melhor explanação e compreensão do assunto, procuramos responder a algumas indagações bastante comuns e freqüentes quando se está diante do referido tema. Senão vejamos:
1ª) por que o início do prazo de decadência deve começar somente no primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o Fisco tomou conhecimento da ocorrência do fato gerador, omitido por ato doloso, fraudulento ou simulado?
Em preliminar, é importante frisar novamente que, se comprovada a ocorrência de dolo, fraude ou simulação nos procedimentos de lançamento efetuados pelo sujeito passivo, não se há de falar em lançamento por homologação e sim, em lançamento de ofício, conforme preceitua o art. 149, VII, do CTN. Tratando-se, então, de lançamento de ofício, a regra de contagem a ser seguida, no que se refere ao prazo decadencial, está disciplinada no art. 173, I, do mesmo diploma legal.
Nesses termos, devemos analisar então o que reza o inciso I do art. 173 do CTN:
Art. 173 – O direito de a Fazenda Pública constituir o crédito tributário extingue-se após 5 (cinco) anos, contados:
I – do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o LANÇAMENTO PODERIA TER SIDO EFETUADO. (Grifo não é do original).
LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO, consoante descreve o art. 142 do CTN, [10] é um procedimento administrativo, tendente a VERIFICAR A OCORRÊNCIA DO FATO GERADOR da obrigação correspondente, (…). Ou seja, para se efetuar o lançamento tributário, torna-se imprescindível que a autoridade administrativa tenha conhecimento da ocorrência da hipótese de incidência tributária, isto é, do fato gerador da obrigação tributária.
A prática dolosa do sujeito passivo de omitir a ocorrência do fato gerador tem como objetivo principal o de impedir ou retardar que a autoridade fazendária tome conhecimento da ocorrência do fato gerador da obrigação tributária, com a intenção de não pagar o tributo devido.
Em sendo, no entanto, dolosamente omitida a ocorrência do fato gerador, é impossível, em condições normais, ao agente do Fisco VERIFICAR A OCORRÊNCIA DO FATO GERADOR, do qual surgiu a obrigação tributária, para, então, poder constituir o crédito tributário sonegado, por meio do lançamento de ofício.
Desse modo, considerando que na modalidade de lançamento por homologação, por expressa disposição legal, [11] é dever do sujeito passivo, quando da ocorrência do fato gerador da obrigação tributária, realizar todos os procedimentos de lançamento que antecedem ao exame do Fisco (CTN, art. 142), o que faz com que a autoridade fiscal competente possa ter notícia da ocorrência do respectivo fato gerador; [12] e, ainda, considerando que o lançamento de ofício é um procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação tributária (CTN, art. 142), dúvidas não há de que o lançamento de ofício somente poderá, ou poderia, ser efetuado pela Fazenda Pública quando esta tiver, ou tivesse conhecimento da ocorrência do fato gerador.
2ª) aplicando-se essa regra do prazo decadencial, não se estaria tornando indefinido o prazo para se constituir o crédito tributário?
O brocardo jurídico dormientibus non succurrit jus, com o significado de que o direito não socorre a quem permanece inerte durante um determinado espaço temporal, traduz com perfeição o instituto da decadência, que está firmado nos pressupostos da inércia e do tempo.
Assim, a contagem do prazo extintivo, quando se comprove procedimento doloso, fraudulento ou simulado do sujeito passivo, inicia-se tão-somente quando demonstrado que o Fisco ficou inerte, isto é, “sabia e não agiu no tempo predeterminado em lei.” Ou seja, para que tenha início o prazo decadencial tem que se verificar, além do marco inicial do tempo definido em lei, o pressuposto da inércia do titular do direito, sem o qual não há se falar em início de qualquer prazo extintivo.
Desse modo, não basta tão-somente o transcurso de um prazo, para se querer alegar a ocorrência do instituto da decadência em análise.
O pressuposto temporal de cinco anos está claramente definido na norma legal (CTN, art. 173, I). O elemento inércia, no caso em análise, é a tendência do titular (detentor) de um direito manter-se no estado em que se encontra, ou seja, parado, sem executar qualquer ação na sua busca. Assim, para que ocorra a inércia torna-se indispensável que o titular do direito tenha tido conhecimento de que o direito existe ou ocorreu, sem o qual não se pode alegá-la. [13]
Desse modo, considerando que o instituto da decadência apenas ocorre se estiverem presentes os dois pressupostos: a inércia do titular do direito e o transcurso do espaço temporal definido em lei, na sonegação fiscal, por exemplo, a inércia da Fazenda Pública somente estará caracterizada após o conhecimento dos fatos omitidos dolosamente. Estando configurada a inércia do titular do direito, aí sim, inicia-se a contagem do prazo decadencial, segundo as regras do art. 173, I do CTN.
Torna-se relevante, assim, destacar que não estamos defendendo, neste trabalho, hipótese de incaducabilidade do direito de constituir o crédito tributário por decurso de tempo, e sim que só há se falar em prazo extintivo de algum direito se presentes os pressupostos necessários à sua ocorrência, quais sejam, a inércia do titular do direito e o espaço de tempo definido em lei.
3ª) em uma análise comparativa com outros ramos do Direito, quando se inicia o prazo extintivo, na ocorrência de vícios omitidos?
Em outros ramos do Direito, observamos que existem hipóteses em que a contagem dos prazos extintivos não se inicia a partir da ocorrência do fato, e sim, tão-somente do momento em que se tiver conhecimento deles ou quando o titular do direito tiver condições plenas de agir. Vejamos:
1. No Direito Penal
O Código Penal, [14] nos termos de seu art. 107, IV, 2ª figura, descreve que a decadência é uma das causas de extinção da punibilidade. Já o seu art. 103 disciplina que o direito do ofendido de se queixar ou de representar decai, se não o exerce dentro do prazo de 6 (seis) meses, contado do dia em que soube quem é o autor do crime.
Em outras palavras, o prazo decadencial apenas se inicia do momento em que se tem conhecimento da autoria do crime, não decaindo o seu direito enquanto isso não acontecer. E, ainda, segundo Damásio de Jesus, [15] se o ofendido é menor de 18 anos, e não pode exercer o direito, “o prazo de seis meses não corre contra ele. Se ele não tem o direito, é claro que não pode perder o que não possui”.
2. No Direito Civil
No Código Civil, há disposições prevendo que o prazo extintivo apenas tem seu início com a ciência do vício ou aparecimento do vício ou defeito (CC, arts. 445 e 618), [16] e, ainda, se um negócio jurídico é realizado com simulação, então nulo, não está sujeito à extinção pelo decurso do tempo (CC, art. 167 c/c art. 169). [17]
3. No Direito do Consumidor
Da mesma forma, no Código de Defesa do Consumidor, [18] verificamos que os prazos extintivos tão-somente têm seu início quando for evidenciado o defeito, ou ainda, a partir do conhecimento do dano e de sua autoria.
4. No Direito Administrativo
No direito administrativo podemos citar, entre outras, a Lei nº 9.784, de 1999, [19] que disciplina que comprovada má-fé na prática de atos administrativos que decorram efeitos favoráveis para os destinatários, o prazo decadencial para a Administração anular o ato não é contado da data em que ele foi praticado, e sim de quando é descoberto.
5. No Direito Processo Civil
A Lei nº 1.533, de 1951, [20] também disciplina que o direito somente extinguirá a contar do conhecimento do ato a ser impugnado.
Como já frisado, grande parte dos juristas e doutrinadores tributários repudia a tese de que o prazo da decadência, na sonegação fiscal, apenas possa iniciar-se com a ciência da Fazenda Pública da ocorrência do fato gerador da obrigação tributária, tendo como principal argumento a desconsideração de valores fundamentais, como a segurança, certeza e estabilidade, nas relações entre Fisco e contribuinte, atentando assim contra o princípio da segurança jurídica.
Pergunta-se então: em assim estando previsto nos outros ramos do direito, o que dizer quanto à desconsideração de valores fundamentais e ao princípio da segurança jurídica?
6. No Direito Tributário
É cediço que o CTN, ao dispor da ressalva constante do § 4º do seu art. 150, não admite que contribuintes que se utilizam de “dolo, fraude ou simulação venham a ser beneficiados por uma preclusão da faculdade de lançar nas mesmas condições em que o seria a hipótese de ter o sujeito passivo agido de boa fé”, como bem coloca Souto Maior Borges. [21]
Por outro lado, não se venha alegar que o tratamento diferenciado estaria no prazo decadencial de cinco anos estabelecido na regra geral, disposta no art. 173, I, do CTN, pois:
(a) além de ser este o prazo para o Fisco constituir o crédito tributário omitido ou inexato SEM a presença do dolo, fraude ou simulação (CTN, art. 149, V);
(b) é ele praticamente o mesmo prazo estabelecido no § 4º do art. 150 do CTN, para se efetuar a homologação expressa, com apenas alguns dias ou meses de acréscimo, dependendo da data de ocorrência do fato gerador do tributo, o que é irrelevante, mormente se estar tratando de dolo, fraude ou simulação;
(c) para se analisar a extinção do direito pelo instituto da decadência é imprescindível levar em consideração a presença dos pressupostos necessários à sua ocorrência, quais sejam, a inércia e o tempo, sem os quais não se pode alegá-la. [22]
Na norma escrita, todas as expressões e palavras têm sua função, não cabendo a presunção de que seja supérflua a guerreada ressalva do § 4º do art. 150 do CTN. Desse modo, o CTN, ao assim dispor, está a determinar a não-aceitação de que o contribuinte que se utiliza de dolo, fraude ou simulação, possa receber o mesmo tratamento dispensado àquele que não se utiliza desse artifício, porquanto se estará, no mínimo, ofendendo o princípio da isonomia de tratamento, ou seja, tratando os desiguais igualmente. Com certeza, quis o legislador, como nos demais ramos do direito, dar um tratamento diferenciado ao sujeito passivo que de boa-fé age daquele que assim não procede, porque se não a malograda ressalva estará totalmente supérflua e sem nenhum sentido prático.
Este tema é tratado com maior abrangência no livro do autor: A Extinção do Crédito Tributário por Decurso de Prazo, Brasília: Editora Lúmen Juris, 2007, 260 p. 2ª ed. Prefácio de Roque Antônio Carrazza e Apresentação do Min. João Otávio de Noronha.
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CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. 13 ed., São Paulo: Malheiros, 1999.
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COSTA, Antônio José da. Processo administrativo tributário, Caderno de Pesquisas Tributárias – nova série, n. 5, Coord. de Ives Gandra, São Paulo, Centro de Extensão Universitária/Revista dos Tribunais, 1999
DAMÁSIO, E. de Jesus. Direito Penal. v. 1. 19 ed., São Paulo: Saraiva, 1995.
FABRETTI, Láudio Camargo. Código tributário nacional comentado. 2 ed., São Paulo: Saraiva, 1998.
FANUCCHI, Fábio. A decadência e a prescrição em direito tributário. 2 ed., São Paulo: Resenha Tributária, 1971.
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Notas
(1) BRASIL. CTN. “Art. 149. O lançamento é efetuado e revisto de ofício pela autoridade administrativa nos seguintes casos: (…) VII – quando se comprove que o sujeito passivo, ou terceiro em benefício daquele, agiu com dolo, fraude ou simulação;”. Disponível em: