Há vários meses, os usuários dos serviços de transporte aéreo no Brasil assistem a tentativa de fusão entre as duas maiores empresas do setor, cuja iniciativa teve origem no próprio governo, seja no âmbito de alguns de seus ministérios, seja em órgãos de fomento à indústria nacional, como o BNDES.
Em conjunto, Varig e TAM respondem por mais de 70% do transporte interno de passageiros no País, percentual este que certamente é mais elevado para determinadas rotas não atendidas por empresas concorrentes, como a Gol ou a Vasp. A nova empresa – que de acordo com a modelagem apresentada pelo Banco Fator, teria o governo (leia-se, os contribuintes), via BR Distribuidora, BNDES, etc., como um dos principais sócios – é vista, pelo menos oficialmente, como a única alternativa para se evitar a falência da Varig e, de um modo mais geral, do setor de transporte aéreo nacional.
Em que pese a óbvia necessidade de o País contar com um sistema de transporte aéreo comercial eficiente, cabendo, portanto, a intervenção do Estado nos casos em que haja a possibilidade de desorganização e ruptura da indústria como um todo, a fusão Varig-TAM não somente não é a melhor solução para a crise no setor de aviação nacional, como também constitui uma violação das leis de defesa da concorrência no País, com graves implicações em termos da redução do bem estar social.
De fato, a fusão determinará a forte diminuição da concorrência no setor de transporte aéreo nacional, gerando elevada probabilidade de que a empresa fusionada (Varig TAM) exerça o poder de mercado criado a partir da concentração, isto é, aumente seus preços, reduza sua oferta – não somente em termos de números de vôos, mas também sob o prisma das rotas (cidades) atendidas – e diminua a qualidade de seus serviços, por meio, por exemplo, do incremento das conexões numa determinada rota.
Tais efeitos, com impactos negativos evidentes sobre o nível de bem estar dos consumidores dos serviços de transporte aéreo no Brasil, não são meras hipóteses, a serem verificadas ou não no futuro. Pelo contrário, diariamente os consumidores dos serviços de transporte aéreo oferecidos por estas duas empresas já enfrentam a redução da freqüência dos vôos e o aumento do número de conexões, ou seja, os chamados efeitos anticompetitivos derivados do excesso de concentração econômica em um determinado mercado.
Assim, a concretização da fusão significa que a população brasileira está sendo chamada para evitar prejuízos aos acionistas e credores da Varig, seja porque recursos públicos serão injetados na nova empresa, seja porque os usuários dos serviços da nova empresa e do setor aéreo em geral deverão pagar maiores tarifas e obter menor nível de qualidade de serviços a médio e longo prazo, dada a redução da competição e a posição dominante da empresa fusionada.
E o que é pior: uma parte do governo exige que as empresas assinem um compromisso de irreversibilidade em relação à fusão que viola a lei antitruste nacional, posto que atos de concentração que gerem uma empresa com participação de mercado superior a 20% devem ser necessariamente submetidos à aprovação do CADE (art. 54 da Lei 8.884/94): não é possível, do ponto de vista jurídico, a assinatura de um acordo de irreversibilidade para uma fusão que ainda deverá ser aprovada – ou não – pelo órgão de defesa da concorrência nacional. Ao contrário, em situações em que as participações de mercado das empresas envolvidas numa fusão são muito elevadas, o CADE exige das mesmas um acordo de reversibilidade da operação, como nos casos Ambev e Nestlé-Garoto, garantindo que a decisão do órgão, que por levar meses em função da complexidade da análise, possa ser efetiva.
Poder-se-ia argumentar que, na ausência da fusão, a Varig iria falir, de modo que, de uma forma ou de outra, o número de empresas atuantes no setor seria reduzido.
Ainda que esta possibilidade viesse a se concretizar – já que a falência da empresa não deve ser vista como algo inexorável, a julgar pela existência de fortes resistências internas dentro da própria Varig contra a fusão e de propostas a ela alternativas -, a solução de mercado seria mais eficiente do ponto de vista social. Isto porque, de um lado, os prejuízos decorrentes da eventual falência da Varig seriam compartilhados, como em qualquer caso semelhante em economias de mercado, pelos sócios, credores e trabalhadores da empresa, e não pelos contribuintes, que jamais partilharam dos lucros da Varig no passado; e, de outro lado, o processo de livre competição pela captura dos “ex-usuários” dos serviços da falida Varig por parte das empresas remanescentes (Gol e TAM, por exemplo) e das possíveis novas entrantes implicaria benefícios para os consumidores – como tarifas promocionais, maior qualidade dos serviços, etc. -, além de possibilitar que as empresas aéreas mais eficientes viessem a conquistar, naturalmente, maiores parcelas de mercador.
Em outras palavras, a eventual falência da Varig não iria desestruturar o mercado brasileiro de aviação comercial, nem tampouco gerar uma situação de fragilidade “estratégica” que ferisse os interesses do País (isto é, da população brasileira) para o setor. Ocorrendo a falência da empresa, poderia haver alguns problemas em termos de rotas não atendidas e de redução da freqüência de vôos no curto prazo (aliás, fenômenos que já estão ocorrendo como função do acordo operacional entre a Varig e a TAM). Entretanto, a medida em que a empresa devolvesse seus aviões e liberasse espaço de infra-estrutura (em aeroportos e uso de rotas, por exemplo), as empresas concorrentes rapidamente absorveriam os passageiros (e pelo menos parte dos funcionários) da Varig, corrigindo, pelo processo de livre competição, o eventual excesso de oferta do setor, sem que houvesse necessidade do uso de recursos públicos e da criação de uma empresa com posição dominante no setor de aviação do País, capaz de implementar práticas anticompetitivas e ferir os interesses da população (os consumidores), pelo exercício de seu poder econômico.
Finalmente, supondo que o processo de fusão, a despeito de seus efeitos nocivos sobre o bem estar social, seja concretizado com o aporte de recursos públicos, seria desejável que, como contrapartida, a nova empresa fosse obrigada, no momento apropriado, a abrir o seu capital, democratizando sua propriedade. Tal contrapartida pela ajuda pública estaria totalmente alinhada com os objetivos sociais do atual governo Lula, além de servir de estímulo ao fortalecimento do mercado de capitais nacional. Esta medida não deveria se limitar ao atual auxílio do governo para a Varig, mas sim se constituir numa diretriz a ser empregada em todas as situações em que empresas nacionais viessem a pedir socorro ao contribuinte, sobretudo por intermédio do BNDES.
Jorge Fagundes é doutor em economia pela UFRJ