A democracia começa em casa

Já dizia o mestre Florestan Fernandes que é muito difícil promover a transição de uma democracia para poucos para uma democracia para muitos. Aparentemente, todos são favoráveis a uma passagem desse tipo, desde que não se toque em suas vantagens (já que, segundo eles, não se trata de privilégios). Aposentadorias integrais, desejáveis para todos, são obtidas por poucos. Pensões complementares, financiadas quase integralmente por estatais, parecem normais aos que se beneficiam delas. Por outro lado, empresários sonegadores reclamam dos impostos (que quase não pagam), enquanto funcionários públicos irresponsáveis acham ruim de seus horários de trabalho (que quase não cumprem).

Apesar de tudo isso, da aparência de caos, estamos avançando. O simples fato de discutirmos, claramente, as reformas que o Governo anterior não conseguiu colocar na pauta de debates da sociedade já é um enorme avanço. E os que possuem um pouco mais começam a achar razoável pagar uma taxa para que nosso País não continue ostentando os tristes recordes de desigualdade e exclusão social que o caracterizam, com os índices de violência que não agradam ninguém. Embora a relação não seja direta, é bastante provável que a incorporação de camadas maiores da população às benesses de uma sociedade moderna implique diminuição da insegurança sentida pelos mais ricos. Afinal, como confessava um grande empresário, o custo da blindagem dos automóveis importados está cada vez mais alto… Talvez até por economia valha a pena colaborar para o sucesso dos planos do Governo.

É bem verdade que, em alguns aspectos, ainda temos práticas que remontam ao período anterior ao da Revolução Francesa. Um bom cargo, principalmente nas áreas em que se lida com dinheiro, pode representar a solução de todos os problemas financeiros do titular, da família e até de alguns amigos chegados. Continuamos vendo fiscais que usam informações privilegiadas para chantagear os cidadãos, tanto em pequenas questões municipais (camelôs irregulares que pagam para serem tolerados, bares em áreas proibidas, que não são vistos pelas subprefeituras), quanto estaduais e até federais. Isso quando não montam de uma vez um esquema de “alto atacado”, criando dutos de grande espessura para canalizar nosso rico dinheirinho para contas abertas aqui ou lá fora.

Na verdade, a esperteza, o pequeno roubo, são coisas tão disseminadas em nosso País, fazem de tal maneira parte da vida cotidiana das pessoas, que o anormal, o não natural, parece ser a honestidade. Síndicos de prédios são obsequiados com dedetização grátis em seus apartamentos quando combinam algo do gênero para o edifício todo. O mesmo vale para pintura e outros prestadores de serviço. Produtores em editoras são assediados com ofertas que giram em torno de 5% para escolherem certas empresas de fotolitos ou gráficas. Compradores de grandes empresas, estatais ou não, são mais cortejados do que a Gisele Bündchen.

Não seria o caso de, ao mesmo tempo em que avançamos na democratização do Estado brasileiro e de seus cidadãos, investirmos com determinação contra essas práticas pré-capitalistas (embora vicejem com vigor no capitalismo)? Fico pensando se não valeria a pena elencar uma série de atributos que, não digo o síndico do nosso prédio, mas o presidente do nosso clube, chefe de departamento na universidade ou da nossa associação de classe deveriam possuir, para evitar, digamos, situações constrangedoras, como aquelas por que passam os que não sabem escolher homens certos para as funções adequadas.

Honestidade é, sem dúvida, um pré-requisito, mas não o bastante. Gostaria de pensar em alguém com talento comprovado de líder, com uma obra realizada, com tempo para se dedicar às atividades associativas, para que não se sinta tentado a usar o cargo apenas para alavancar sua própria vida profissional periclitante. Seria bom alguém que emprestasse prestígio ao cargo e não tivesse que tomar emprestado o prestígio do cargo. Alguém que não tivesse o “rabo preso” e que não fizesse o gênero autoritário truculento, autoritário esclarecido ou maquiavélico assumido, mas acreditasse efetivamente na distribuição de tarefas, na responsabilidade coletiva e nas conquistas que visem o interesse coletivo. Difícil alguém assim? Não tanto. É procurar com cuidado, deixar o comodismo de lado e sair do muro. Já dizia Aristóteles que uma das principais características da democracia é “governar por turnos”, evitar continuidade, a perpetuação de um grupo que se apropria do poder e o torna a continuidade de sua casa. A democracia implica ter coragem para mudar.

Jaime Pinsky
Historiador, professor titular da Universidade de Campinas – Unicamp, é editor e autor de vasta obra

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