A democracia independe de controle e cabresto para crescer

por Eduardo Mahon

Quis custodiet ipsos custodes?
Juvenal

A preocupação do momento é a custódia da democracia. Nada, no meio jurídico, foi mais debatido neste ano que se despede, que a democracia custodiada. Dois temas são particularmente mais recorrentes: a polêmica criação de um conselho regulador de jornalismo e os poderes investigativos do Ministério Público. Portanto, o ano foi fértil para refletirmos sobre a dinâmica democrática à qual perseguimos e queremos ver consolidada. De um lado, contando com resistências corporativas e desconfianças sociais, está o projetado conselho de jornalismo e, de outro, o festejado alargamento das atribuições do Ministério Público, analisado numa querela jurídica no Supremo Tribunal Federal. Os dois temas merecem o cuidado de civil em campo minado.

Quis o governo, numa manobra infeliz, criar órgão burocrático cujo enfoque não é o jornalista e sim o jornalismo – aí reside o problema da custódia da democracia. A restrição, controle, limitação e policiamento não gravitaria em torno da postura do profissional-jornalista e sim do mérito de suas matérias, controlando indiretamente o conteúdo do jornalismo. Seria benfazejo à atividade jornalística, como qualquer outra, contar com um conselho estadual e federal fortalecido a regular a profissão, em defesa das prerrogativas do profissional da comunicação. A Ordem dos Advogados do Brasil atua nesse sentido, lançando mão dos estatutos legislativos específicos para ir ao encontro do advogado perseguido ou preterido, da mesma forma que atua como fiscal da ética do profissional, reprimindo atos que julga indecorosos à postura pretendida.

Os exames de admissão profissional e tribunais de ética, inclusive, são tendências vanguardistas em muitos conselhos profissionais que, diante da enxurrada de bacharelados da última década, poderão regular o mínimo de perícia necessária à atividade liberal, como forma de garantia social aos bons préstimos profissionais daquele bacharel habilitado por seu respectivo conselho.

De outro lado, temos um Ministério Público que surge no formato policialesco, com a estrela da lei no peito. Escorado no vácuo constitucional sobre a possibilidade de investigar crimes e, ainda, munido da ovação populista, temos o ‘fiscal da lei’ insistindo em bancar o ‘fiscal da sociedade’, novo equívoco jurídico. Parafraseando modelos alienígenas, onde o sistema de investigação criminal é completamente diverso, utilizando-se de analogias com outras formas investigativas, comparando atribuições e manejando brechas legislativas com as mais criativas artimanhas, temos novamente nítida a ameaça ao sistema democrático de divisão de atribuições e pulverização de poderes como regra de controle. Poder investigar quem propõe a ação é um sofisma muito arriscado para nublar os faróis despertos da democracia.

Conceder a uma das partes processuais colher provas contra um cidadão presumivelmente inocente, sem o contraditório e de forma sigilosa, e usá-las posteriormente no processo judicial a influir no convencimento judicial, é regra de exceção, retrocedendo a prática ministerial à mais retrógrada penumbra da inquisição. Usar a “sociedade em perigo” como salvaguarda legal a fim de fiscalizá-la é, na verdade, a materialização do o pesadelo do Big Brother fictício.

Juvenal, há quinze séculos, acometido pelo medo do controle despótico da opinião e do poder, já indagava – quem fiscaliza o fiscal? quem guardará os guardas? Outra não pode ser a lição histórica que nos informa a observação desapaixonada a não ser que qualquer forma de tutelar ou custodiar a democracia, resulta na antinomia democrática, a ditadura. É preciso ter a máxima cautela na preservação de nosso sistema democrático que vem espelhado na liberdade de imprensa e na divisão de poderes e distribuição de atribuições. Para crescer e robustecer, a democracia independe de controle, repudia cabrestos e dispensa salva-pátrias.

Eduardo Mahon é advogado militante em Mato Grosso e Brasília e professor de Processo Penal.

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