A denúncia e seus aspectos procedimentais

( * ) José Wilson Furtado

Como sabemos de conhecimentos prolegomenais do direito processual penal, a denúncia constitui a petição escrita, elaborada pelo Representante do Ministério Público, (opinio delicti) e que dá início à ação penal pública. É evidente, que a máquina judiciária impulsionadora do jus puniendi, somente será acionada, depois do recebimento deste instrumento, embora, há quem entenda que a ação penal possa ser iniciada, apenas com o oferecimento da exordial. Acerca disto, quando do nefasto episódio caso Policlínica, que já abordamos, no número anterior. O Promotor de Justiça Dr. José Glauberton Alves Sá, ofereceu denúncia contra os implicados, da Policlínica, e no dia seguinte num fruto de jornalismo do excelente profissional de imprensa que é Cidrack Ratts, a matéria foi pública, isto é, a denúncia foi publicada na íntegra, passando a Grande Fortaleza, nas páginas do Diário do Nordeste. Como é óbvio, em logo, o Juiz Antônio Eduardo Pompeu de Sousa Brasil, titular da 2ª Vara do Júri, num despótico, procurou um outro de imprensa, no caso o jornal “O Povo”, e de forma aviltante, declarou que não considerava a ação penal iniciada, e como se isto não bastasse, num forma espinafrante, declarou que a denúncia era considerada conto papel higiênico, o que revoltou toda a classe do Ministério Público gerando o afastamento do promotor Titular daquele juízo, e por força de portaria especial, nos designamos para aquele munus público. Ora é evidente, que o jus puniendi do Estado somente começa a imperar com o recebimento da vestibular acusatória, e perfilhada no arquétipo semântico do art. 41 do Código de Processo Penal, sob pena de inépcia da inicial.

De forma proficiente, o Professor José Frederico Marques, em conferência proferida no curso de aperfeiçoamento de Direito Penal,promovida pelo Instituto dos Advogados de S. Paulo, elucida que a ação penal: “é o direito de invocar-se o Poder Judiciário para aplicar o direito penal objetivo; e como dela se serve o Estado para tornar efetivo o seu ministério Penal, a ação é também um monumento da persecução criminal. A ação penal exsurge exatamente no momento em que o órgão legal, propulsor da pretensão punitiva invoca ao órgão da jurisdição, a aplicação da devida norma legal objetiva. É oportuno lembrar que a pretensão é sempre anterior à ação e a ela preexistente. (José Frederico Marques, conferência transcrita na Revista Justitia da Associação Paulista do Ministério Público,vol 8). Quando do oferecimento da denúncia não é dado ao Ministério Público, como acontece no Direito Penal Alemão, o direito de escolher, quais dos implicados que deva figurar na peça oficial, isto porque o que prevalece em se tratando de ação penal pública é a regra da oficialidade. O Ministério Público é órgão oficial encarregado do pode-dever de perseguir o delinqüente, e no linguajar aureolado de Carnelutti, é uma parte “oficial” ou um juez que se hace parte (Francesco Carnelutti, Principi del Processo Penale, pág. 451, Napoli, 1960, idem in Questiones sobre El processo penal,tradução espanhola de santis.) Por força do seu munus denunciandi o Promotor de Justiça, como mui bem elucidou Jorge Figueiredo Dias, o Ministério público é obrigado a oferecer a denúncia e proceder acusação por todas as infrações de cujos pressupostos factuais e jurídicos tenha tido conhecimento tenha logrado recolher, na instrução indícios suficientes. Vale ressaltar que, como enfatizamos em nossas tradicionais aulas de pós-graduação da Unifor, que o Ministério Público monocrático, ao receber peças de informação(informatio delicti), terá uma função tricotômica de atribuições quais sejam; a) oferecer denúncia – se o fato for típico (fumus bonni juris e Periculum im mora): b) oferecer parecer requerendo diligência imprescindíveis à denúncia, vez que a peça vestibular acusatória oficial, não depende do alvedrio do Ministério Público; c) pedir que passará sob o crivo do princípio da obrigatoriedade paradigma do art. 28 do Código de Processo Penal.

PRINCIPIO DA CONGRUÊNCIA

Como mui bem elucida Paulo Cláudio Tovo, em seu opúsculo, “Apontamentos e Guia Prático sobre a Denúncia no Processo Penal”, a denúncia é uma visão apriorística e, portanto, dogmática dos acontecimentos que podem configurar infração penal, assim como a sentença é uma visão crítica, a posteriori, dos mesmos acontecimentos, não podendo no entanto, esta, daquela se afastar, sob pena de violar o tradicional princípio NE CITRA PETITUM. (OBRA CITDA, pág. 34).

Aos colegas, que ora, se iniciam na instituição do Parquet alencarino, é curial lembrar que o Ministério Público representa o jus puniendi estatal e portanto não está adstrito a nenhuma vinculado ou subordinação no seu munus denunciandi, nem sequer às ordens de procuradores do Estado, do Município, de Juízes. O Promotor de Justiça que se preza, carrega a bandeira da coragem, embora saibamos que a todo momento, estamos à mercê da perseguição de poderosos e dos grã-finões do rabo preso, razão por que é bom que se acautele do tautológico vício, de no bojo da exordial libelária pedir e esperar deferimento do juízo monocrático.

Este clássico peditório do Promotor de Justiça ao juiz, na opinião de Lauro Nelson Fornai Thomé, é sem sentido, uma vez que a função do Promotor não é de agradar e sim cumprir a lei (Lauro Nelson Fornari Thomé, “Aspectos Controversos no Processo Penal Brasileiro”, Editora Sulina, ed. 1954, loc., cit., pág. 18).

“Somente duas sortes de pessoas combatem o

Ministério Público: os ignorantes porque não o

conhecem, e os criminosos porque o conhecem

bem”. (Lauro Guimarães, Revista da Associação

Paulista do Ministério Público).

“O Ministério Público não recebe ordens do Governo.

Não presta obediência aos juízes, pois age com

autonomia em nome da sociedade, da lei e da jus-

tiça”. (Pudente de Morais Filho).

O Professor Roberto Lyra, o antonomástico “principe dos Promotores Brasileiros,” muito citado pelo talentoso colega Marcus Renam Palácio de M. C. dos Santos, em suas aulas e pareceres, com maestria proficiente, nos assinala, que ao assinar uma denúncia, o Promotor de Justiça fica investido de um ato de importância e de gravidades indisfarçáveis, põe nela, como autor, sua consciência e sua responsabilidade, impelidas por um sentimento de justiça que se elabora em esfera emancipada de quaisquer submissões.

Não pode nessas condições, sofrer limitações de ordem meramente sensitivas, procrastinadoras do feito, sem ressonância alguma para o mérito da questão, e, o que mais importa, contra os preceitos legais (vide LYRA, ROBERTO “REP. ENCICL. DIREITO BRASILEIRO”, Editora Borsoi, 1968, loc, cit, vol 15, pág. 198).

DO RECEBIMENTO DA DENÚNCIA

E DA NECESSIDADE DE DESPACHO

MOTIVADO DO ÓRGÃO MONOCRÁTICO

É crucial lembrar que o juiz não pode deixar de receber a denúncia, por mero capricho, querela pueril, ou por excesso de despotismo.

Aliás, uma das maiores lições, que bem se amolda a este tópico, nos foi ofertada pelo iluminado Desembargador Edgar Carlos de Amorim, protótipo da Magistratura alencarina ad quem, que num lampejo de mestre, com denodo e galhardia assim ponderou: “A Magistratura não é lugar para megalomaníacos, ou para prepotentes. O juiz deve ser simples, porém, sério e altivo, quando preciso for.” AMORIM, EDGAR CARLOS DE, “O JUIZ E A APLICAÇÃO DAS LEIS”, Editora Forense, Rio de Janeiro, ed. 1997, loc. Cit, pág. 9). (Grifos nossos).

Quem milita nos auditórios forenses, é comum observar alguns processos, quando o juiz, num simplório despacho, às vezes, utilizando-se de um carimbo, recebe, a denúncia, e naquela oportunidade marcando data para interrogatório. Hoje, com o avanço da informática o carimbo está sendo substituído por um trecho copiado e colado no próprio rosto das denúncias sem qualquer fundamentação plausível.

O Representante do Ministério Público cearense e Professor Marcus Renam de M. C. dos Santos, em sua excelente monografia intitulada “Da Denúncia à Sentença”, publicada sob os auspícios da Associação Cearense do Ministério Público, encampa a corrente defendida pelo valoroso Desembargador Fernando Luiz Ximenses Rocha, integrante da 1ª Câmara Criminal, do TJ/Ce, no sentido de que a decisão do recebimento da denúncia deve ser fundamentada. Acerca do tema, aconselhamos leitura do artigo “DA NECESSIDADE DE MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE RECEBIMENTO DA ACUSAÇÃO”, publicado em Judiciário em Notíciais, pela Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará – Esmec, março/98 e que foi tema de uma confêrencia aos alunos do Curso de Pos-Graduação em Processo Penal, período 1999/2000, da Universidade de Fortaleza (Unifor), a convite do próprio Professor Marcus Renam, em seguimento à aula daquela disciplina.

DENÚNCIA COLETIVA

Como enfatizamos em nosso artigo, “Denúncia Coletiva”, publicada no jornal, “Tribuna do Ceará”, de 04/agosto/2000, em se tratando de autoria coletiva (concursus delinquentium) já está se tornando uma prática ritornolesca e errônea, o magistrado rejeitar a opinio delicti, sob a pálida e melíflua assertiva de que o Promotor de Justiça subscritor da vestibular acusatória, não fez uma análise pormenorizada de cada partícipe, o que nós chamaríamos de departamentalização criminógena. É lamentável dizer, que o magistrado que assim se comporta, demonstra iniludivelmente total desconhecimento dos ensinamentos doutrinários e jurisprudências pertinentes à matéria que ora abordamos. O pundonoroso Professor Vasco Damasceno Weyne, citando o magistrado Napoleão Nunes Maia, num lampejo de invejável domínio doutrinário, elimina qualquer nuvem plúmbica, que poderia existir sobre o assunto, quando de forma didática pontifica:

“É possível reduzir o rigor da exigência contida no art. 41 do CPP”. E exemplifica, inovando as dificuldades de apuração do concurso de agentes, em caso notoriamente difíceis como os de Carandiru e Candelária, para questionar e finaliza dizendo: “Na verdade o autor não hesita em reconhecer as dificuldades do tema, a partir da diversidade motivacional dos indivíduos nos crimes de autoria coletiva” (WEYNE, VASCO DAMASCENO, “OS ÔNUS DA AÇÃO”, trabalho publicado na Revista Cearense Independente do Ministério Público, nº 4, Janeiro/2000, Loc, Cit, págs. 291/291).

O Promotor de Justiça paulista, Gabriel Cezar Z. De Inellas, em trabalho publicado na conceituada Revista da Associação Paulista do Ministério Público, comunga com o nosso posicionamento e enfatiza, como uma verdadeira aula aos néscio neste aspecto:

“Alguns Juízes de Direito de primeira instância, vêm rejeitando denúncias, por entenderem que a exordial não preenche os requisitos preconizados pelo art. 41 do Código de Processo Penal.

Esquecem-se que, doutrinariamnte, tais delitos constituem o que se denomina de crimes de autoria coletiva. Sim, porque, quando se tratar de denúncia em crime de autoria coletiva, desnecessária se faz a individualização de condutas, como determinado pelo art. 41 do Código de Processo Penal”. (INELLAS, GABRIEL CEZAR Z. DE, “Da Denúncia Coletiva”, Revista da Associação Paulista do Ministério Público, Ano IV, nº 31, loc, cit, pág. 53). No mesmo sentido MARCUS RENAM PALÁCIO DE M. C. DOS SANTOS, “Crime de Autoria Coletiva”, Associação do Ministério Público, Caderno Jurídico nº 6, Editora ABC Fortaleza, pág. 14; AGAPITO MACHADO, “PROCEDIMENTOS CRIMINAIS”, Editora da Unifor, ed. 1998, pág. 41; Damásio Evangelista de Jesus, “Código de Processo Penal Anotado”, Editora Saraiva.

ESTEIRA ESCOLIAL ACERCA DO TEMA

RHC Nº 7927/MG (98/0066818-7)

FONTE: DIÁRIO DA JUSTIÇA DA UNIÃO: 14/12/98

RELATOR: MINISTRO VICENTE LEAL

PROCESSO PENAL

RECEBIMENTO DA DENÚNCIA

FUNDAMENTAÇÃO EXAUSTIVA DOS AGENTES

DESNECESSIDADE:

“Na formulação da denúncia, de crimes de autoria coletiva, não se exige que a peça acusatória pormenorize a conduta individual de cada acusado, sendo suficiente a imputação do fato típico, o que já permite o exercício pleno do direito de defesa”.

Mesmo sentido.

RHC Nº1911-MS, RHC 4240-SP.

“Crimes de autoria coletiva: desnecessidade da individualização da conduta dos autores do crime”.

O Colendo Tribunal de Justiça, em sincronia com o entendimento jurisprudencial hodierno de todos os Tribunais pátrios, seguindo a esteira escolhida do Supremo Tribunal Federal, é por demais enfático ao entender que:

“Nada mais é necessário para ser aceita a denúncia, além dos requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal. A individualização da conduta de cada partícipe é matéria discutível durante a instrução criminal.” (RECURSO EM SENTIDO ESTRITO DE SANTANA DO CARIRI RECTE: MINISTÉRIO PÚBLICO RELATOR: DESEMBARGADOR CARLOS FACUNDO.

DIÁRIO DA JUSTIÇA, FORTALEZA, 02/03/99, PÁG. 9).

RECTE: O REPRESENTANTE DO MINISTÉRIO PÚBLICO

RECDO: JUIZ DA COMARCA DE SANTANA DO CARIRI

RELATOR: O EXMO. DESEMBARGADOR CARLOS FACUNDO

ACORDA A PRIMEIRA CÂMARA CRIMINAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, POR VOTAÇÃO UNÂNIME, DAR PROVIMENTO AO RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO, POR SEUS JUSTOS E LEGAIS FUNDAMENTOS, PARA DETERMINAR O ANDAMENTO DOS CRIMES MULTITUDINÁRIOS:

“Nos crimes praticados por muitas pessoas em conjunto, a maior ou menor atuação de cada uma delas, bem como as diferenças dele, não necessitam ser descritas com minúcias ou exatidão na denúncia, pois serão apuradas, durante a instrução judicial” (STF, RHC nº 63. 009, DJU, dia 06/09/85, pág. 148/71. No mesmo sentido: RHC nº 62.331, DJU 14/6/85, pág. 9.569/70) (grifos nossos).

O mestre Nelson Hungria nos ensina que: “o crime, do mesmo modo que o fato ilícito, tanto pode resultar da ação (ou omissão) isolada e exclusiva de uma só pessoa, quanto de uma conduta coletiva, isto é, da cooperação simultânea ou sucessiva de duas ou mais pessoas. Se essas se conjugam livremente, ou se há voluntária adesão de umas às outras, visando todas ao mesmo resultado antijurídico,ou pelo menos querendo a ação conjunta de que era previsível derivasse tal resultado, não pode suscitar dúvida, do ponto de vista lógico-jurídico, que o crime seja, na sua unidade atribuível a cada uma delas, ainda que qualquer das atividades individuais, consideradas em si mesmo, não fossem bastante para produzir o “EFFECTUS SCELERIS”.

Sob o duplo prisma, psicológico e causal (dadas a coincidente confluência de vontades e relação de necessidade inconcreto entre o resultado e a conexão de atividades), impõe-se o raciocínio de que o crime pertence, por inteiro, a todos e a cada um dos concorrentes”. Nelson Hungria, “Comentários ao Código Penal”, Editora Forense, vol. 1, pág. 398, tomo II).

Dentro desta linha de artigos que estamos apresentando na Revista Cearense Independente do Ministério Público, o presente tema servirá de humílimo subsídio aos colegas que nesta virada de século estarão ingressando nos quadros do Parquet alencarino, como forma de amor à instituição que abraçamos como sacerdócio.

( * ) O autor é Promotor de Justiça e titular da 7ª Promotoria de Justiça Criminal de Fortaleza e pós- graduado em Processo Penal pela Universidade de Fortaleza – UNIFOR

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