Para que se aborde a desconsideração da personalidade jurídica com a necessária nitidez, fundamental é rememorar alguns pontos basilares do que se convencionou chamar personalidade jurídica.
Contrapondo-se à pessoa moral do código alemão, por nós conhecida como pessoa natural, a pessoa jurídica é verdadeira ficção do direito. Trata-se de um ente dotado de autonomia, detentor de direitos e obrigações próprias, que não se confundem com aqueles de seus membros, que assumem apenas riscos limitados de prejuízo.
De sua mera conceituação já é possível averiguar que a sociedade personificada é elemento essencial ao incentivo e sucesso no exercício de qualquer atividade empresarial. Porém esta necessidade, denominada personalidade jurídica, não existe apenas para satisfazer aos caprichos do empresário. Ela foi criada, sobretudo, para que se viabilize o alcance dos fins sociais do próprio direito. Assim, uma vez abordada a premência da personalidade jurídica para as relações humanas e seu progresso, resta abordar o crucial tema da desconsideração da personalidade jurídica.
Originada na Inglaterra, país onde o direito se transmite através do costume (common law), a desconsideração da personalidade jurídica nada mais é senão a destruição dos limites que separam a pessoa jurídica de seus sócios, tornando-se possível responsabilizá-los e alcançá-los em decorrência de atos praticados em nome da sociedade personificada.
Uma vez criada uma pessoa jurídica, seu conceito será sustentado e garantido pelas instituições jurídicas apenas enquanto seja invocado e empregado para propósitos legítimos, ou seja, enquanto ele corresponder ao fim para o qual foi elaborado. A perversão deste conceito para usos impróprios, que visam perpetuar atos ilícitos, não será tolerada.
Destarte, seguindo os preceitos de direito, onde nada é absoluto, também a personalidade jurídica não é dogma inabalável e será desconsiderada para que se concretize, em tese, a Justiça.
Por se tratar de medida extrema, o uso da desconsideração da personalidade jurídica deve ocorrer tão somente depois de constatados o abuso e fraude na condução da autonomia patrimonial da empresa, elementos que permitem afirmar a existência do desvirtuamento dos fins da sociedade.
Para o direito positivo brasileiro, a desconsideração da personalidade jurídica atinge, sobretudo, o direito civil e as relações de consumo.
O Código de Defesa do Consumidor, pretendendo preservar direitos dos consumidores, utilizará a desconsideração da personalidade jurídica da empresa caso “haja abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito, violação do estatuto ou contrato social, e, nos casos de má administração, falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da empresa, desde que, em todos os casos, haja detrimento do consumidor” (artigo 28).
Todavia, a mais superficial leitura desta norma permite concluir que casos de falência ou insolvência nem sempre estão vinculados a atos abusivos ou fraudulentos, requisitos julgados indispensáveis para a decretação da desconsideração.
Assim agindo, o legislador pune duplamente o empresário. Num primeiro momento por não permitir o adequado desenvolvimento da atividade empresarial, o que leva o negócio à falência e, num segundo momento, “confiscando” o patrimônio do empreendedor para assegurar direitos do consumidor.
Bem mais sensato que a lei de defesa do consumidor é o Código Civil, que aborda o tema da desconsideração da personalidade jurídica em seu artigo 50:
“Artigo 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, o juiz pode decidir, a requerimento da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica”.
Citado artigo limita-se claramente aos casos de fraude e abuso, idéias defendidas pela teoria clássica da desconsideração da personalidade jurídica, sendo louvável a prudência e ponderação de suas palavras.
Resta salientar que legislações como a Consolidação das Leis do Trabalho e o Código Tributário Nacional, ao contrário do que defendem alguns, não se utilizam do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, limitam-se sim a responsabilizar o sócio por ato praticado em nome da empresa, o que não se confunde em momento algum com o instituto tema destas considerações.
Por fim, em que pese a relevância da pessoa jurídica, há que se reconhecer a importância da limitação de uma sociedade a partir de sua desconsideração. Contudo, cumpre repudiar excessos, como o verificado no Código de Defesa do Consumidor, que nada mais fazem senão coibir ainda mais a já aventureira atividade empresarial num país tão carente de empreendedores.
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Leandro Pesoti Netto é advogado do escritório Kanamaru e Crescenti Advogados & Consultores, especializado em direito internacional privado pela Université Paris II