Autor: Nelson A. Severo Batista (*)
A disregard doctrine, ou Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica, de acordo com Marçal Justen Filho, não foi produzida pela ciência do Direito, mas a partir do sistema da common law no Direito americano.
Dessa forma, nos idos de 1809, o juiz norte-americano Marshall, no caso Bank Of United States vs. Deveaux, houve por bem entender que deveria ser estendido aos sócios os efeitos da personalidade jurídica da sociedade da qual eram partícipes. O caso, ainda segundo os doutrinadores, não teve grande relevância na época, mas serviu de leading case para ser desenvolvida a Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica.
Pesquisando autores brasileiros, temos Waldirio Bulgarelli, que, em sua obra Concentração de Empresas e Direito Antitruste (1997, pág. 53), nos relata que nos idos de 1892 a Standart Oil constitui o primeiro trust de que se tem notícia. Em decorrência, a Suprema Corte de Ohio, em 1892, criou então outro precedente da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica, ao decidir desconsiderando a personalidade e declarando ilegal esse monopólio exercido pela Standard Oil.
No Brasil, temos Rubens Requião um dos primeiros doutrinadores a sustentar a aplicabilidade da desconsideração da personalidade jurídica no Brasil.
Efetivamente, a teoria clássica do Direito Societário estabelece que os direitos e as obrigações de uma sociedade não se confundem com os dos seus sócios.
A desconsideração da personalidade jurídica quebra esse paradigma, pois afasta a “proteção” dada pelo escudo da personalidade jurídica da sociedade, possibilitando que os sócios ou os administradores a substituam no polo passivo de uma relação processual e assim sejam diretamente responsabilizados pelos atos da empresa.
A decisão não gera qualquer efeito em relação à sociedade em si, que continua sendo a responsável principal da obrigação.
Sabe-se que a pessoa jurídica tem capacidade própria, emite declaração de vontade e contrai obrigações respeitados os termos da lei e do contrato, responde civilmente por elas, inclusive com o patrimônio próprio.
Contudo, os atos que caracterizam essas declarações de vontade e a assunção de obrigações são praticados por seus gestores, representantes e administradores ou pelos próprios sócios.
Com a natural evolução do instituto, ele acabou previsto no artigo 50 do Código Civil de 2002, que determina:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica
Como decorrência, com a publicação do novo Código de Processo Civil, a questão processual da desconsideração foi normatizada:
Art. 133. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo (Lei 13.105/2015).
Art. 135. Instaurado o incidente, o sócio ou a pessoa jurídica será citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo de 15 (quinze) dias (Lei 13.105/2015).
De acordo com esse artigo, o juiz poderá decidir, a requerimento da outra parte, ou do Ministério Público, se for o caso, que os efeitos de determinadas relações obrigacionais sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.
Mas o poder discricionário do magistrado não é ilimitado. A própria lei estabelece que a desconsideração só cabe quando houver abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial.
A questão é que os tribunais estão dando interpretações divergentes ao conceito de “abuso”. O entendimento consolidado em diversos arestos do Superior Tribunal de Justiça é que o instituto somente deverá ser aplicado nos casos em que restar comprovado o “desvio da finalidade” ou a “confusão patrimonial”.
Em se tratando de Justiça do Trabalho, após a vigência da Lei 13.105 de 16/3/2015, que instituiu o novo Código de Processo Civil, restou disposto o incidente da desconsideração da personalidade jurídica nos artigos 133 a 137, trazendo inovações quanto ao procedimento a ser realizado.
Com o advento da nova lei, o Tribunal Superior do Trabalho editou a Instrução Normativa 39, que dispõe sobre as normas do Código de Processo Civil de 2015 aplicáveis e inaplicáveis ao processo do trabalho. A referida instrução normativa estabelece, em seu artigo 6º, que se aplica ao processo do trabalho o incidente de desconsideração da personalidade jurídica regulado no Código de Processo Civil (artigos 133 a 137), assegurada a iniciativa também do juiz do Trabalho na fase de execução (artigo 878, da CLT).
Dito isso, verifica-se que a primeira inovação do processo trabalhista será o disposto no artigo 135, o qual prevê que, instaurado o incidente, o sócio ou a pessoa jurídica será citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo de 15 dias.
Ou seja, antes de deferir ou não o requerimento do credor de desconsideração da personalidade jurídica, ou antes de agir de ofício e instaurar o referido incidente, o juízo deverá citar o sócio ou a pessoa jurídica a manifestar-se, fato esse que visa impedir que sócios e empresas sejam surpreendidos com citações para pagamento de dívidas relativas a ações judiciais que sequer tinham conhecimento da existência.
Feito isso, nos termos do artigo 136, concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória, ou seja, decisão que não põe fim ao processo.
Verifica-se assim que o novo Código de Processo Civil trouxe a regulamentação do incidente da desconsideração da personalidade jurídica, eis que o sócio ou pessoa jurídica não é mais surpreendido com citação de pagamento de débito que desconhecia, uma vez que é citado a se manifestar antes do deferimento do incidente. Além disso, tem a segurança de que, em caso de deferimento, não se faz mais necessário que dispenda de valores, na maioria das vezes vultosos, para que se apresente recurso à instância superior visando a reforma da decisão que deferiu a desconsideração da personalidade jurídica.
De acordo com entendimento já manifestado pelo Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, no julgamento do Agravo de Petição 00108929820145010203:
INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DE PERSONALIDADE JURÍDICA EXECUÇÃO TRABALHISTA APLICAÇÃO. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica versado nos artigos 133 e 137 do CPC/2015, com a suspensão da execução, é aplicável ao processo do trabalho de acordo com o art. 6º da IN 39 do TST.
Dessa forma, claro está que a Justiça do Trabalho deve obedecer aos procedimentos determinados pelo artigo 50 do Código Civil, bem como pelos artigos 133/137 do Código de Processo Civil, tendo em face o determinado pela Instrução Normativa 39 do Tribunal Superior do Trabalho.
Autor: Nelson A. Severo Batista é advogado em São Paulo, formado pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP).