A essência de um Núcleo de Prática Jurídica

André Macedo de Oliveira

Professor substituto da Faculdade de Direito da UnB e Advogado
É orientador do Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade de Direito da UnB

Com o advento da Portaria nº 1.886, de 30 de dezembro de 1994, do Ministério da Educação e do Desporto, que fixou as diretrizes curriculares e o conteúdo mínimo dos cursos jurídicos, o estágio de prática jurídica passou a integralizar o currículo e a ser essencial para a obtenção do grau de bacharel em direito. As atividades práticas, antes abarcadas pela disciplina prática forense, passaram a ser desenvolvidas pelos alunos, de forma simulada ou real, com supervisão e orientação do Núcleo de Prática Jurídica de cada faculdade.
Conforme disposto no artigo 10, parágrafo primeiro, da Portaria, o Núcleo de Prática Jurídica tem que ser caracterizado com instalações adequadas para desenvolver atividades referentes à magistratura, advocacia, Ministério Público, demais profissões jurídicas e para atendimento ao público. Essas atividades, exclusivamente práticas, de acordo com o artigo 11, consistem em atuação em audiências e sessões, redação de peças processuais, visitas a órgãos judiciários, prestação de serviços jurídicos e técnicas de negociação coletivas, arbitragens e conciliação, todas, controladas, orientadas e avaliadas pelo núcleo de prática jurídica. Para Roberto Aguiar, a Portaria procurou enfrentar um dos mais graves problemas dos cursos jurídicos. Esse estágio era ministrado de forma que aos alunos não era dada uma efetiva prática, ao mesmo tempo em que essa preparação era feita para o bacharel se tornar advogado, esquecendo-se que os bacharéis se encaminham também para outras áreas jurídicas, como a magistratura e o Ministério Público (1996, p. 140).
Ademais, determina o parágrafo segundo, do artigo 10, da referida Portaria que as atividades de prática jurídica poderão ser complementadas mediante convênios com a Defensoria Pública e outras entidades públicas judiciárias e sindicais que possibilitem a participação dos alunos na prestação de serviços jurídicos e em assistência jurídica, ou em juizados especiais que venham a ser instalados em dependência da própria instituição de ensino superior.
Essa mudança no ensino jurídico é apenas meio e não um fim. A caminhada regulamentadora foi dada, cabendo a cada Faculdade de Direito a sua efetiva concretização. Uma Portaria não modifica um curso por inteiro. O perfil do estudante dentro do Núcleo deve ser direcionado para o trabalho com questões jurídicas mais complexas, de forma a acompanhar as novas demandas e transformações sociais. É preciso acompanhar e avaliar a rotina de cada discente para alcançar o verdadeiro sentido dessa transformação nos cursos jurídicos. Faz-se necessária uma abordagem interdisciplinar do Direito e não apenas unidisciplinar. O bacharel em direito não pode ficar distante da realidade social. Há que se fazer presente uma consciência crítica da sociedade em que o bacharel participa, não focando apenas o macro, mas sim as microcenas, lembrando o professor de Ciência Política da Universidade de São Paulo, Paulo Sérgio Pinheiro (1991, p. 45). O bacharel tem que sair para o campo de trabalho sabendo identificar tanto os personagens que vivem de pão quanto os que vivem de bolo, pois estes últimos querem o melhor, o diferente, o mais potente. Para os que vivem de pão, poder aprender a ler e a escrever já é uma grande conquista (HOBSBAWM, 2000, p. 127). Esse quadro tem que ser mostrado para o aluno não só na sala do giz, mas também na sala de campo, ou seja, no Núcleo de Prática Jurídica.
No atendimento ao público no Núcleo, direcionado para pessoas carentes, os estudantes têm que focar não apenas a causa jurídica do seu cliente. O olhar do aluno tem que ir além da separação, divórcio, reclamação trabalhista, para, sobretudo, observar o quadro social do seu atendido. A visão de assistência jurídica há que ser substituída por assessoria jurídica, que, na visão do professor Mauro Noleto, tem por escopo ampliar a reflexão teórico-prática para além dos conflitos estritamente individuais, superando as fronteiras do conhecimento unidisciplinar e conservador característico do paradigma legalista (1999, p. 95). O diálogo com as comunidades e não apenas a visão individual do atendimento, aqui se encontra o ponto basilar do Núcleo de Prática Jurídica. Não apenas o individual, mas, fundamentalmente, o social.
O atendimento ao público realizado no Núcleo de Prática Jurídica não se confunde com Defensoria Pública. Núcleo de Prática Jurídica não é Defensoria Pública. Na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 134, temos que a Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados. A Lei Complementar nº 80, de 12 de janeiro de 1994, que organiza a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios dispõe que a Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe prestar assistência jurídica, judicial e extrajudicial, integral e gratuita, aos necessitados, assim considerados na forma da lei. Esgota-se, assim, no plano constitucional e infra-constitucional, a característica da Defensoria, ficando evidenciada a tarefa do Estado de atender aos menos favorecidos.
Dessa forma, resta caracterizado que Núcleo de Prática Jurídica não é apenas atendimento ao público, mas a esta tarefa não deve o Núcleo se omitir. Cabe a cada Faculdade de Direito designar os professores orientadores dos respectivos discentes para acompanhá-los no Núcleo. Na visão do professor Roberto Aguiar, “as faculdades de Direito não podem se cingir a fornecer noções aguadas de tecnicalidades normativas. Elas devem dialogicamente construir instrumentais que propiciem um aumento de consciência de seus discentes, a fim de que eles sejam minimamente aptos para entender o contexto onde vão operar e o sentido de sua ação no mundo” (1996, p. 131).
Urge salientar a contribuição dos Núcleos para a democratização do acesso à justiça e melhoria do ensino jurídico. É certo que não basta apenas uma placa caracterizando o Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade. Por detrás de uma placa tem que haver toda uma estrutura para o discente. O atendimento tem que ser caracterizado pela qualidade e não pela quantidade de casos. O bacharel, como conhecedor de seus direitos de cidadão, tem que enxergar e tentar remediar a sede de direitos da comunidade atendida. Ensina Boaventura de Sousa Santos que “a distância dos cidadãos em relação à administração da justiça é tanto maior quanto mais baixo é o estado social a que pertencem e que essa distância tem como causas próximas não apenas fatores econômicos, mas também fatores sociais e culturais, ainda que uns e outros possam estar mais ou menos remotamente relacionados com as desigualdades econômicas” (1993, p. 113). Como conhecedor de direitos fundamentais, não está o estudante apto a comungar do seu saber com aqueles que nem sequer sabem de seus direitos de cidadão? Qual é o compromisso do bacharel em direito para com a sociedade?
É tarefa de um Núcleo de Prática Jurídica preparar o bacharel para o exercício de habilidades. A Portaria 1.784, de 17 de dezembro de 1999, do MEC, tem como referência para o perfil do graduando em direito a formação humanística, técnico-jurídica e prática indispensável à adequada compreensão interdisciplinar do fenômeno jurídico e das transformações sociais; senso ético-profissional, associado à responsabilidade social, com a compreensão da causalidade e finalidade das normas jurídicas e da busca constante da libertação do homem e do aprimoramento da sociedade; apreensão, transmissão crítica e produção criativa do Direito, aliadas ao raciocínio lógico e à consciência da necessidade de permanente atualização; visão atualizada de mundo e, em particular, consciência dos problemas de seu tempo e de seu espaço.
Portanto, não pode um Núcleo centrar-se apenas no atendimento ao público, voltando-se unicamente à atividade advocatícia. A abordagem dos estágios tem que compreender os trabalhos de Promotor, Procurador, Juiz e, sobretudo, o foco para os problemas sociais. Deve ser proporcionado um enfoque interdisciplinar em matérias legais como infância e adolescência, meio ambiente, consumidor, informática e ainda uma visão crítica do direito, uma vez que o direito, hoje, não consegue acompanhar os novos fenômenos. A Lei não acompanha a velocidade da tecnologia. Questões de genética, crimes de informática, hackers, moradia, terra e pão encontram-se num plano não acessível.
Por fim, a essência de um Núcleo de Prática Jurídica é o compromisso com a defesa dos Direitos Fundamentais e Cidadania, no sentido de uma reformulação da organização social, proporcionando direitos aos que não têm direitos e preparando o aluno para o exercício profissional.

Referências bibliográficas
Aguiar, Roberto A. R. de
1996 “A Contemporaneidade e o Perfil do Advogado,” págs. 129-141 em Conselho Federal da OAB, OAB Ensino Jurídico: Novas Diretrizes Curriculares, Brasília, DF, Conselho Federal da OAB.
Hobsbawm, Eric J.
2000 O novo século: entrevista a Antonio Polito / Eric Hobsbawm. São Paulo: Companhia das Letras.
Noleto, Mauro Almeida.
1999 “Prática de direitos – Uma reflexão sobre prática jurídica e extensão universitária,” págs. 93-105 em Direito á memória e à moradia, realização de direitos humanos pelo protagonismo social da comunidade do Acampamento da Telebrasília, Faculdade de Direito, UnB.
Pinheiro, Paulo Sérgio.
1991 “Autoritarismo e transição” págs. 45-56 em Revista da Usp., n. 9, mar./abr./maio.
Santos, Boaventura de Sousa.
1993 “Introdução à Sociologia da Administração da Justiça,” págs. 104-125 em Introdução crítica ao direito do trabalho. / José Geraldo de Sousa Júnior e Roberto A. R. Aguiar (orgs.), Brasília: UnB.

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